Crítica de Divino amor, por Érico Andrade

Se o filme Divino Amor fala da religião, é para mostrar que a fusão entre o público e o privado que se desenha no Brasil a passos largos (2027 já não parece ser tão distante), pode assumir todos os arquétipos de controle social em nome de uma única perspectiva moral.

Enviado por Antônio Nelson

Crítica de Divino amor

por Érico Andrade

As cores que compõem as tomadas no interior da casa de Joana (personagem principal do filme e interpretada brilhantemente por Dira Paes) reproduzem aquelas que estão presentes nos diversos e variados panfletos evangélicos distribuídos nas ruas com mensagens da bíblia.

A composição da luz permite que se misturem a graça e o pecado no interior de um mesmo ambiente. O propósito desses cenários ganha ainda mais nitidez quando a dificuldade crônica de Joana de engravidar é superada logo depois que ela deixa “a luz do espírito santo” lhe penetrar. A janela é aberta e o contraste entre a luz e a penumbra, presente nas outras cenas, esvai-se de todo o ambiente e Joana nua – posicionada com a sua vagina em face da janela e apoiada sobre um travesseiro – recebe o que mais tarde irá se configurar como um suposto milagre. Ou, como ela diz: “Deus a tocou”.

A discussão sobre a religião não pode se dissociar dos limites da fé. Até aonde a nossa fé vai? Para ser poderosa ela tem que ser total. É sobre o reino da fé que Divino Amor constrói uma narrativa sobre o totalitarismo. A dimensão total está presente – na sua forma mais lapidar – na cena em que o diretor Gabriel Mascaro parece recuperar o clássico filme de Orson Welles (O Processo) para mostrar o quanto somos pequenos diante da onipotência da burocracia.

No filme de Orson Welles a personagem principal se depara com uma sala de extensão quase infinita composta de não menos incontáveis mesas com máquinas de escrever. No filme de Mascaro há a cena em que Joana move-se sobre um guindaste cujo enquadramento mais distante permite ver a imensidão (incapaz de se conformar à totalidade na tela) de processos.

O império da burocracia é a expressão máxima do totalitarismo. As referências ao Admirável Mundo Novo e à 1984 são incontornáveis.

O foco na burocracia associado à onipresença da religião não é um casamento incomum. É da estrutura do totalitarismo se apropriar dos espaços de poder. Das regras. A burocracia consiste em regras, como dizem algumas personagens do filme, que não apenas normatizam o comportamento como punem aqueles que as transgridem. São as regras que colonizam o cotidiano e ditam; o sexo (o que é permitido fazer), o gozo (mesmo numa troca “abençoada” de casais só se pode ejacular no interior da esposa para resguardar que os filhos sejam fruto da união do casal), os níveis das orações necessários para se atingir a graça divina.

Os arquétipos que perpassam as cenas de Divino Amor não são criações de um futuro distópico.

Eles são o presente. O drive thru, as portas de controle, o cartório, a imagem fotográfica do reconhecimento (os diversos porta-retratos), as casas iguais, o concreto, as festas em que pessoas ficam em transe, as regras para o gozo. O filme mobiliza a religião não apenas para mostrar a ameaça, que longe de estar no futuro nos habita no presente, do domínio religioso sobre a vida pública. Ele fala do domínio de um modo de vida que se presentifica na velocidade para a resolução de problemas complexos, nas festas encomendadas para a padronização do divertimento, na indiferença esmagadora da burocracia, no moralismo venal que transforma as relações afetivas na mimese dos códigos morais (como acontece especialmente em seitas religiosas como o Divino Amor).

Se o filme Divino Amor fala da religião, é para mostrar que a fusão entre o público e o privado que se desenha no Brasil a passos largos (2027 já não parece ser tão distante), pode assumir todos os arquétipos de controle social em nome de uma única perspectiva moral. E, nesse sentido, a fé só importa quando ela compõe a engrenagem da opressão. É por isso que a possível divindade do filho de Joana, cujo pai resta não identificado, não é objeto de fé de nenhuma outra pessoa porque longe de aceitar o diferente, mesmo na forma de um suposto milagre, a religião quando assume o poder é para imprimir a marca da monotonia e para excluir todas as identidades (lembremos de que o filho de Joana, que narra o filme, não tem nome) que não são a sua imagem e semelhança.

Érico Andrade
[email protected]
Filósofo, psicanalista em formação, professor da Universidade Federal de Pernambuco

Redação

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