Receita para aguardar 2021 e a reconstrução do multilateralismo, por Luis Nassif

A eleição de Biden poderá mudar o jogo. Ele é visto como internacionalista e acredita em governar, não apenas em comunicar. Terá o desafio de mudar a narrativa EUA-China para uma dinâmica mais positiva.

O que esperar de 2021? O trabalho “2021: O ano crucial para a ordem social mudanças transformacionais de ordem global”, de Colin Bradford, do Brookings Institution – publicado pela instituição – traz algumas pistas relevantes para serem analisadas.

1. Um novo multilateralismo surgindo a partir das redes sociais

As tensões atuais são resultados da falha real ou potencial das economias em oferecer resultados sociais politicamente sustentáveis. Este fenômeno gerou Donald Trump nos Estados Unidos e Boris Johnson no Reino Unido. E é o drama das economias em desenvolvimento, fonte de agitação social na Europa Ocidental, medo do Partido Comunista da China etc.

Tudo isso provocou a ascensão o nacionalismo populista autoritário e o caminho fácil de apelar para a força nacional e mobilizar a população em torno da bandeira da segurança.

O caminho difícil a percorrer é aproveitar este momento de hiper-conetividade, revelado pela Covid-19, para entender a relevância da cooperação multilateral para a saúde e a recuperação econômica no curto prazo e para a transformação sistêmica no médio e longo prazo.

Não há volta para a velha normalidade e as prioridades sociais e políticas centradas nas pessoas serão vitais para restaurante a confiança nos mercados e na governança. O multilateralismo precisa ser reinventado para criar respostas inovadoras a essas novas prioridades sociais, mesmo sabendo-se que  as prioridades domésticas são as mais relevantes.

2. A estagnação da governança global

O isolacionismo de Trump gerou um caos pela falta de uma lógica interna. A cúpula do G-7, que será nos EUA, foi adiada. E Trump insinuou que iria convidar a Russia para voltar ao G7, assim como Austrália, Brasil, Índia e Coreia do Sul para se somar ao G7 e transformar a China em ponto-chave.

Russia e Canadá e o alto escalão da União Europeia são contra a entrada da Russia. E a Alemanha participa de um processo de cúpula UE-China para concluir uma negociação de sete anos do Acordo Abrangentes sobre Investimento.

Além disso, os impasses entre Turquia e Rússia, India e China, Coreia do Sul e Japão, cria empecilhos para o andamento do G20.

3. As eleições nos EUA serão cruciais

Sem uma virada na política dos EUA, não haverá futuro para a governança global e o multilateralismo, nem para a coordenação global do “recoupling” (a agenda para vincular crescimento econômico ao progresso social). Se Trump for reeleito, haverá o fim do multilateralismo criado em 1945. Se as relações EUA-China continuarem tóxicas haverá o enfraquecimento do consenso global sobre a Agenda 2030 e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável,. As despesas militares vão disparar, atrapalhando os esforços para aumentar os investimentos nas pessoas.

4. Mudando o jogo com a China

A eleição de Biden poderá mudar o jogo. Ele é visto como internacionalista e acredita em governar, não apenas em comunicar. Terá o desafio de mudar a narrativa EUA-China para uma dinâmica mais positiva.

Não será tarefa fácil. Mesmo com Biden eleito, a idéia da América em primeiro ainda é muito forte, mesmo que não seja dominante no público americano. Por outro lado, a centralização de poder nas mãos do presidente chinês Xi Jinping, a crescente assertividade do Partido Comunista da China, a nova geração dos diplomatas chineses “guerreiros lobos”, a lei de segurança em Hong Kong, indicam mudanças amplas na China, tensões estratégicas que não serão eliminadas meramente desligando a barreira retórica de Trump.

É fundamental que Estados Unidos e Europa reconheçam na China um polo de liderança. E a China precisa ir além da era de Bretton Woods e entender a importância dos compromissos sociais acertados após a Segunda Guerra e que foram ampliados por práticas históricas. Esses compromissos são essenciais para arranjos que aceitam diferenças culturais e que exigem adesão continuada aos direitos fundamentais da humanidade.

A China terá que comprometer-se a cumprir e fazer cumprir as bases de um sistema baseado em regras.

5. Gerenciamento de tensões para uma ordem global do século 21

Existe uma tensão fundamenta entre o primado dos valores individualistas no Ocidente, com os valores comunitários no Oriente. Tentou-se utilizar o Banco Mundial e o FMI para universalizar os valores ocidentais, baseados em valores individualistas de liberdade, direito de propriedade, liberdade e soberania, fases opara a economia de mercado, a sociedade competitiva, a democracia e o estado-nação.

Há evidências de que o fundamentalismo de mercado gera resultados que não são politicamente sustentáveis. Sociedade competitivas, baseados no darwinismo social, deixa muitas pessoas vulneráveis e as democracias se tornam caldeirões para a polarização política e para o enfraquecimento do estado-Nação.

Já fazem parte do discurso político dos países ocidentais os valores sociais, o respeito pelas diferenças culturais, a igualdade do acesso público ao essencial para a subsistência.

O desafio para o Ocidente é perceber que híbridos de individualista e valores sociais são a chave para enfrentar as crises sociais internamente e melhorar diálogos públicos internacionalmente.

A China terá que caminhar em direção oposta, para mais proteção aos direitos individuais, privacidade, liberdade de expressão e diversidade.

6. Os papeis do G-20 na governança global

O G-20 é uma iniciativa útil. Mas, como extensão do Bretton Woods, é focado principalmente nas relações econômicas e financeiras. É dominado por Ministros das Finanças em um mundo que têm esmagadores aspectos sociais, culturais, humanitários, ambientais e de saúde.

Na década de 2020, os líderes do G-20 precisam ter visão mais ampla e conectar com seus públicos. O foco da cúpula do G-20 precisa ser a sustentabilidade sistêmica dentro e entre países. Ponto central será a capacidade das economias e governos para oferecer inclusão social.

Claramente, a administração Bidem irá imediatamente comprometer os EUA com o Acordo de Paris Sobre as Mudanças Climáticas, a OTAN,  acordo nuclear com o Irã, o apoio para a Organização Mundial de Saúde a para o multilateralismo.

7. 2021 será crucial para mudanças em liderança e dinâmica

G-20 de 2021 será na Italia. O país terá papel significativo para mobilizar governos do G-20 para fortalecer a cooperação global. Há um novo primeiro-ministro no Japão, que terá papel importante em 2021. O Japão enfrentará eleições em setembro, assim como a Alemanha. Haverá novos lideres na Organização Mundial do Comercio e na OCDE.

Há avanços no trabalho de Angela Merkel para fortalecer as relações UE-China, E a nova administração Biden poderá orquestrar uma nova governança global, envolvendo a China de forma mais produtiva.

8. Uma estrutura alternativa para a ordem global

O Diálogo China-Oeste (CWD), fundado em abril de 2018 por um grupo de Europeus, canadenses, chineses, chilenos e americanos têm trabalhado para desenvolver “uma estrutura alternativa” a fim de “reenquadrar, reequilibrar e reconceituar as relações China-Ocidente ”para“ evitar o surgimento de outro era competitiva bipolar ”e“ pluralizar a tóxica relação bilateral EUA-China ” em uma dinâmica mais ampla que é mais multifacetada, representativa, aberta e inclusiva.

O CWD desenvolveu um conjunto de conceitos-chave para um quadro alternativo para as relações China-Ocidente. São eles:

* não existe uma única ordem global, mas várias ordens globais, em torno das quais variará o comportamento da China e dos EUA. Isso abre caminho para um maior pragmatismo e flexibilidade.

* passo fundamental será desagregar a ordem global em diferentes fóruns de negociação, para contornar tomadas de posição ideológicas.

* desvincular áreas problemáticas uma das outras, para evitar diferenças nas questões de segurança militar.

* o conceito de modernização pluralista dos países como motor de desenvolvimento, m vez da ideia de que modernização é ocidentalização.

* múltiplas narrativas para o discurso global, permitindo que a ordem global se afaste do consenso de Washington

* a noção de que todas as economias são economistas mistas, afastando-se da dicotomia entre mercado fundamentalista e economias estatais.

* mudar a noção de países aliados para coalizões de consenso, já que interesses e comportamentos de países podem variar de questão para questão.

Luis Nassif

7 Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

  1. Nassif escreveu bonito sobre o que terá que ser feito. Precisa combinar agora com o estado profundo americano e com o “ mercado “ que capturou os estados nacionais. Até parece que a queda de um império se faz de maneira tão suave. O máximo que Biden fará será conter as queimadas pela questão do clima. Lembrando que o governo democrata Obama prêmio Nobel da Paz destroçou a Líbia, continuou os ataques no Iraque, Afeganistão e com as primaveras capturou e desestabilizou o Brasil, a Ucrânia interferindo em suas caminhadas historicas etc.

    1. Minha querida Dona Vera,deixe Nassif fora disso,acreditando eu que ele tem mais o que fazer.
      Não leve-me a mal,mas que diabos é “estado profundo”.Seria o fato de nós estarmos a 5 mil metros abaixo do nível do mar? Considero-me um intelectual,certo.Mas juro aos pés da Santa Cruz,não alcancei essa história de Estado Profundo.Aguardo gentilmente suas explicações.

      1. Estado profundo é o estado dentro do estado. É o grupo de instituições, órgãos do estado e plutocratas que manda e rouba os países sem serem incomodados enquanto a gente se engana com o sistema democrático e o combate a corrupção. Você não leu a declaração do Trump dizendo que o deep state ou estado profundo americano queria tirá-lo do poder?

      2. “Estado profundo” é só o nome da moda para o que Raymundo Faoro chamou de “estamento burocrático”, na sua grande obra weberiana “Os Donos do Poder”, que é de 1958.

  2. Concordo com a Vera, os EUA jamais abrirão mão pacificamente de sua posição imperialista. Isto está no DNA deles. A visão otimista mostrada no artigo é um desejo apenas, mas totalmente fora da realidade e sem base na história dos EUA, uma nação que se alimenta da guerra, base do seu desenvolvimento.

    1. Pronto,se o senhor Bosco concorda com minha querida Dona Vera,ele vai tentar me explicar essa história cabeludissima de Estado Profundo.No aguardo.

  3. Donald Trump e seus apoiadores não eram a maioria nos Estados Unidos. Hillary Clinton ultrapassou Trump em quase 3 milhões de votos, mas ele levou a Presidência por causa dessa bizarrice que é o Colégio Eleitoral, em que ganhou por estreita margem os delegados de 4 estados tradicionalmente democratas: Wisconsin, Michigan, Ohio e Pennsilvanya, os “estados industriais enferrujados”.
    Só depois da eleição, na hora amarga dos “por quê?”, os democratas se deram conta de que Hillary não visitou uma vez sequer o Michigan nem o Wisconsin na reta final da campanha, após a convenção de agosto, porque eram estados de longa tradição democrata e os caciques do partido confiaram na repetição da história.

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador