Paulo Kliass
Paulo Kliass é doutor em economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal.
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Arcabouço Fiscal: chantagem e catastrofismo, por Paulo Kliass

O flagrante excesso de draconismo previsto na regra colaborou para que ela tivesse uma vida mais curta do que o imaginado por seus criadores.

Arcabouço Fiscal: chantagem e catastrofismo

por Paulo Kliass

            A dinâmica do debate a respeito da questão fiscal se assemelha às séries que pipocam por todas as telinhas, sempre apresentadas ao público com várias temporadas e muitos episódios. Se considerarmos que os principais roteiristas do tema sempre estiveram pagos e contratados pelos interesses do financismo, não é difícil perceber quais os desenhos e os paradigmas que estiveram presentes nas propostas oficiais desde o início da década de 1990.

            Ao contrário das intenções da maioria dos constituintes eleitos em 1986 e que trabalharam no projeto da nova Carta Magna adotada oficialmente em 1988, as classes dominantes brasileiras em quase todos os momentos preferiram se orientar pelos comandos emanados do establishment financeiro internacional. Eram os tempos do esmagamento político e ideológico promovido pelos organismos internacionais, pelas principais instituições universitárias vinculadas ao universo empresarial e pelos grandes meios de comunicação em todos os continentes. Enfim, era a época de ouro do neoliberalismo e do então chamado Consenso de Washington. A doutrina ganhava contornos mais chiques com a sigla em inglês TINA – “there is no alternative”, para dizer que esse era o único caminho possível.

            Para além das recomendações de privatização das empresas estatais, de redução da dimensão do setor público ao seu Estado mínimo e de liberalização generalizada das atividades econômicas, havia uma orientação expressa pela implementação de políticas e regras visando a austeridade fiscal. Ao longo desses quase 40 anos, o Brasil cumpriu com boa parte do seu “dever de casa”, para mencionar a famosa expressão tão ao gosto dos articuladores e lobistas vinculados ao povo das finanças. Na verdade, foram os sucessivos governos que levaram à frente tais medidas de natureza conservadora, cada um ao seu ritmo e com suas devidas particularidades.

Austeridade fiscal vem de longa data.

            Assistimos ao longo processo de venda de empresas públicas e de economia mista de diversos ramos da economia, da colocação em marcha das medidas de desregulamentação de amplos setores e da adoção de medidas de arrocho na política econômica, em especial na área fiscal. Nesse último caso, um marco importante deu-se com a aprovação da Lei Complementar nº 101/2000, que ficou conhecida como a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). Ela pretendia estabelecer regras mais duras para a dinâmica e a orientação da política fiscal, com definição de atribuições das relações do governo com o Tesouro Nacional e também das formas de relacionamento e obrigações dos tesouros estaduais e municipais.

            Surgem aí as determinações oficiais de busca de superávit primário, o cumprimento das metas de indicadores de endividamento público e a orientação generalizada de um viés de ajuste pelo lado de cortes nas despesas. Por outro lado, de alguma maneira, foram lançadas também ali as bases para uma abordagem que apontava para a criminalização da política fiscal. Ao longo das primeiras décadas de vigência da nova legislação, a orientação para penalizar entes federados e gestores públicos atingiu especialmente os governos estaduais e os municípios. Mas a pressão sobre o governo federal aumentou de intensidade a partir da chegada de Lula ao Palácio do Planalto em 2003. O ápice de tal apologia à austeridade veio com o golpe perpetrado contra Dilma Roussef, cujo processo de impedimento foi iniciado com aquilo que a grande imprensa cunhou irresponsavelmente como “pedaladas fiscais”.

            No final daquele mesmo ano em que Michel Temer assume a Presidência da República, tem início uma nova temporada na questão fiscal. Em dezembro de 2016 é promulgada a Emenda Constitucional nº 95, estabelecendo o teto de gastos. A partir do chamado “novo regime fiscal” ali estabelecido, o Brasil estaria condenado a atravessar 20 longos anos sem que nenhum aumento no volume de despesas primárias fosse permitido. Entre 2017 e 2036 o total de gastos orçamentários não-financeiros só poderiam ser corrigidos de acordo com a inflação de cada exercício ao longo do período.

Teto de gastos foi catastrófico.

A aprovação de tal dispositivo pelo Congresso Nacional revelou-se uma vitória das alas mais extremistas do financismo e pavimentava a rota para a privatização das empresas estatais e para a transferência ao capital privado da responsabilidade por oferecer à maioria da população as políticas públicas previstas na Constituição. Os “especialistas” papagueavam a torto e a direito a tese de que o orçamento não era capaz de dar conta das obrigações previstas na Constituição. O mais impressionante é que tais ideias equivocadas e oportunistas voltam a circular nos tempos atuais pelas bocas de integrantes do governo.

            O flagrante excesso de draconismo previsto na regra colaborou para que ela tivesse uma vida mais curta do que o imaginado por seus criadores. A relação entre os poderes Executivo e Legislativo, por mais que houvesse uma figura como Paulo Guedes como superministro da economia no governo de Jair Bolsonaro, acabou construindo meios para se escapar às restrições de gastos. Essa dinâmica era ainda mais evidente em anos de eleições, quando a lógica da sobrevivência das lideranças políticas acaba falando mais alto do que eventual obediência aos ditames da ortodoxia financista. Assim, buscava-se a cada momento encontrar uma solução casuísta para agradar às bases do governo no parlamento sem que o teto de gastos fosse formalmente revogado.

            A derrota de Bolsonaro em outubro do ano passado colocou um sério freio nas pretensões da extrema direita em se perpetuar no poder por meio de mecanismos golpistas e autoritários. A vitória de Lula deu-se com base em uma ampla frente contra o fascismo, mas apontava para um programa desenvolvimentista e de reconstrução do Estado e suas políticas públicas. Durante a campanha, o candidato a um terceiro mandato presidencial sempre se manifestava pela revogação do teto de gastos, com a promessa de fazer 40 anos em 4. No entanto, durante o período de transição, ele foi convencido pelo futuro Ministro da Fazenda de que a melhor estratégia seria apresentar uma PEC, onde a revogação do teto de gastos estaria condicionada à apresentação de um novo arcabouço fiscal pelo novo governo.

Lula 3.0: revogar teto de gastos e romper com austeridade

            Naquele momento pode-se dizer que teve início uma nova temporada da série sobre a questão fiscal. A prioridade concedida por Fernando Haddad às negociações com o Presidente do Banco Central e com demais representantes do sistema financeiro culminou no Projeto de Lei Complementar PLP 93. Trata-se de um novo modelo de austeridade fiscal – menos calamitoso do que o teto de gastos, é verdade – mas nem por capaz de atender as reais necessidades de crescimento e desenvolvimento que a maioria do País tanto aguarda. Como o Ministro da Fazenda se recusou a ouvir as propostas de economistas não alinhados com a nata das finanças ou as sugestões das centrais sindicais e demais entidades do campo democrático e progressista, a proposta do governo Lula 3.0 terminou por ser aquela de interesse apenas dos grandes bancos.

            Além disso, no afã de carimbar seu passaporte de bom mocismo junto às elites endinheiradas, Haddad colaborou para a criação de um clima enganador de uma suposta urgência urgentíssima para aprovação das novas regras ficais. A PEC dava um prazo até final de agosto para o governo apresentar ao poder legislativo sua proposição. Haddad exigiu que a matéria fosse concluída a toque de caixa, sem nenhum debate e a Exposição de Motivos acompanhando a proposição foi assinada em 17 de abril. Tamanha pressa revelou-se sem necessidade alguma e a matéria segue até agora no interior do Congresso Nacional, em um jogo de empurra entre as versões aprovadas na Câmara dos Deputados e no Senado Federal. E nem por isso o Brasil quebrou.

            No episódio atual, percebe-se uma tentativa de reanimar o clima de chantagem e catastrofismo que sempre envolveu o tratamento da questão. Por um lado, o Presidente da Câmara dos Deputados, Artur Lira, se utiliza pela enésima de seu poder na definição de pautas e prioridades para reforçar a chantagem junto a Lula e obter cargos na composição ministerial e no segundo escalão do governo. Por outro lado, cresce um descontentamento generalizado com o texto, uma vez que os próprios parlamentares da base e da oposição percebem os prejuízos de entrar em ano eleitoral sem a possibilidade de se utilizar das despesas orçamentárias em suas regiões.

            O financismo e os grandes meios de comunicação alardeiam para os supostos riscos de não se aprovar a matéria rapidamente. Mentira! As regras para execução do orçamento até dezembro de 2023 já estão dadas. As diretrizes do novo arcabouço fiscal previstas no PLP 93 só entrarão em vigor para o exercício de 2024 e os seguintes. Não há razão para tamanho assanhamento – a não ser a reprodução do clima pré apocalíptico caso a medida não seja votada ainda em agosto. Tomo mundo sabe que a votação na base da tratoragem impede maior debate da matéria e dificulta a visualização de alternativas para tornar o novo arcabouço fiscal menos austero e menos prejudicial ao uso da política fiscal como instrumento de retomada do crescimento da economia.

            A versão apresentada por Haddad não contemplava as falas de Lula quanto à retirada de saúde e educação do conceito reducionista de “despesa”. A proposta enviada não abre alternativas para se aumentar a necessária e urgente capitalização de empresas estatais. O PLP 93 insiste nas regras de superávit primário e aponta a meta de zerar o déficit em 2024, ano em que haverá eleições para prefeitos e vereadores em todos os mais de 5.700 municípios do País. Assim, mesmo os parlamentares de perfil mais conservador reagem a esse tipo de restrição de dispêndios.

Arcabouço fiscal: não há urgência nenhuma!

            Além disso, o novo arcabouço fiscal continua focando na contenção das despesas como estratégia para a busca do sacrossanto equilíbrio. De acordo com a medida, os gastos só poderão crescer a um ritmo de 70% do ocorrido com as receitas. Não existe argumento plausível para tal orientação, a não ser apontar para a redução paulatina da capacidade de o Estado cumprir com suas obrigações constitucionais e atender às necessidades da maioria da população.

            O mais adequado seria aguardar o retorno de Lula de sua viagem à África para buscar um novo entendimento a respeito do tema. Imagina-se que esses quase 8 meses de governo tenha sido um tempo suficiente para cair a ficha no conjunto dos partidos da base a respeito dos equívocos presentes nos dispositivos do PLP 93. O Senado Federal já incluiu algumas medidas de flexibilização da austeridade. Esse é momento para recomeçar um debate honesto e sincero a esse respeito. Não existe urgência alguma para novo atropelo de tramitação.

            Trazer um pouco mais de serenidade, de luz e de oxigênio a essa discussão incomoda aqueles que não querem mudança alguma na medida enviada. Mas a sociedade tem todo segundo semestre pela frente para esclarecer as dúvidas e definir um modelo fiscal que rompa com os preceitos da austeridade burra e desnecessária. Lula sempre insiste na necessidade de oferecer a dimensão social à responsabilidade fiscal. Esse é o momento de incluir tal preocupação no projeto de lei em debate no Congresso Nacional.

Paulo Kliass é doutor em economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal.

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Paulo Kliass é doutor em economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal.

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