
Brasil: quanto mais eu rezo, mais assombrações me aparecem
por Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva
Os acontecimentos deste 8 de janeiro de 2023 mostram que o poço do golpe de 2016 não tem fundo. Foi o pesadelo da reforma trabalhista de Temer, seguindo-se outra previdenciária no início do governo Bolsonaro, este pródigo em crimes e destruição nacional. Quando pensávamos estar a caminho na normalidade perdida, mesmo cientes de estarmos sobre o fio da afiada navalha do bolsonarismo, somos pegos pela destruição de todos os símbolos nacionais de poder.
Tamanha barbárie causa espanto e requer uma reflexão mais profunda, caso contrário, o evento vai passar para a História como um conjunto de fragmentos de vídeos de que ninguém mais vai se lembrar. O mais incrível é que toda a violência foi perpetrada em nome do Brasil, com ajuda das autoridades que deveriam cuidar de sua preservação. Falta algo aos brasileiros. Falta liga à nossa sociedade. De que é feita a cola que não temos?
Em 1666, Londres pegou fogo. O incêndio durou duas semanas. O número de vítimas foi relativamente baixo, mas as perdas materiais foram enormes. Apresentaram-se muitos projetos de reconstrução dotados de avenidas largas e espaçamento entre os imóveis para evitar novos incêndios. Preferiu-se reconstruir Londres com o mesmo traçado cheio de vielas estreitas e sinuosas que caracterizavam uma cidade medieval.
Cento e vinte anos depois, em 1789, estourou a Revolução Francesa. Foi um espetáculo de horrores, em que a guilhotina não parava até que Charlotte Corday, cansada de tantas mortes, assassinou Jean Paul Marat em sua banheira. Apesar de tudo, a Sala dos Espelhos continuou intacta em Versailles. Ainda na França, durante o governo de Napoleão III, para evitar as barricadas de miseráveis revoltados, Paris foi reformada, recebendo vias largas e de fácil trânsito que a tornaram no símbolo de beleza que é hoje. Não obstante, a Sala dos Espelhos, bem como o restante do Palácio de Versailles, foi preservado. Aliás, não se destruiu nada, seja na Guerra Franco-Prussiana, seja nas duas guerras mundiais pelas quais passou sem um arranhão.
Em 1917, na Revolução Russa, os palácios do Czar foram preservados e nada foi tocado, mesmo com a guerra de quatro anos entre brancos e vermelhos. Não se pensou, durante o Stalinismo, em destruir a Catedral de São Basílio, muito menos as obras de arte ali contidas, apesar dos verdadeiros genocídios perpetrados pelo regime. Ninguém ousaria esfacelar a coleção de ovos Fabergé, ou qualquer dos afrescos que ornam as paredes do Palácio de Alexandre, hoje um dos mais lindos museus do mundo. Nesse caso, não se pode atribuir à cultura do povo, pois os russos tinham um grau de analfabetismo digno dos países menos desenvolvidos das américas. Também não se pode atribuir a preservação da catedral a um espírito religioso, combatido enquanto durou a União soviética. Tudo continua lá, por repúdio ou por admiração, sempre para enaltecer o belo que a Humanidade pode produzir.
O brasileiro, ao contrário, derreteu a taça Jules Rimet e depois vestiu a camisa da seleção para destruir Brasília. Usando as cores da bandeira, vandalizaram os prédios que representam os três poderes da República. Fizeram isso como demonstração de lealdade a quem, com recursos privados, deu apoio logístico e financeiro a essa tentativa de golpe de Estado. Não se trata de falta de cultura, não se trata da mais extrema ignorância acerca do que venham a ser os conceitos de Estado, Governo, nação e país. Não se pode atribuir esse comportamento à infantilidade mental que serve como base para o fanatismo. Sim, todas essas características estão presentes com força em nosso povo, mas elas não explicam sozinhas comportamento tão perverso. Mais que não entender como a sociedade se organiza, existe um sentimento maligno que faz com que se destruam bancos de praça, equipamentos infantis, botões de semáforos para pedestres e tudo o que seja coletivo, tudo cujo proprietário não se possa nomear. Incluam-se nisso a Amazônia, a Petrobras e demais estatais. Nada disso merece lealdade porque não existe uma personalização explícita.
Ardilosamente, os organizadores desses movimentos entenderam essa característica e montaram sua estratégia com base nela mesma. A seleção de futebol tem nome e existe um senso de propriedade sobre ela. A bandeira está ligada à seleção, não exatamente ao país. A Igreja Católica tem sua sede lá longe e é tocada por um papa estrangeiro. Já as igrejas evangélicas têm donos e as pessoas tornam-se leais a eles, não exatamente ao culto em si. Isso explica o movimento de repúdio contra a devoção a Nossa Senhora Aparecida, em 12 de outubro de 2022.
Ingenuamente, os progressistas vêm fomentando o esfacelamento de nossa sociedade. Sob o pretexto de favorecer o respeito à diversidade, põe a culpa de todas as nossas mazelas no Brasil como entidade. Quando dizemos que temos uma dívida impagável aos índios, ou aos afrodescendentes; quando atribuímos campeonatos negativos como o de feminicídio ou homofobia ao nosso país, estamos fomentando a raiva contra o Brasil. Estamos, o tempo todo, dando razão para que se o queira ver destruído e entregue a uma outra nação que mereça o orgulho de seu povo.
Não se trata do ufanismo dos tempos dos militares. Trata-se de entender que, enquanto índios, negros, homossexuais, pessoas com deficiência e todas as categorias que representam a diversidade de nosso povo e precisam ser respeitadas, não se sentirem formadas por simplesmente brasileiros; enquanto nossa elite se sentir mais branca, mais europeia, mais desenvolvida que o restante de nosso povo, não adianta rezar porque as demonstrações de incivilidade continuarão a nos assombrar.
Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva é economista, estudou mestrado na PUC-SP, é pós-graduado em Economia Internacional pela Columbia University (NY) e doutor em História Econômica pela USP. No terceiro setor, sendo o mais antigo usuário vivo de cão-guia, foi o autor da primeira lei de livre acesso do Brasil (lei municipal de São Paulo 12492/1997), tem grande protagonismo na defesa dos direitos da pessoa com deficiência, sendo o presidente do Instituto Meus Olhos Têm Quatro Patas (MO4P). Nos esportes, foi, por mais de 20 anos, o único cavaleiro cego federado no mundo, o que o levou a representar o Brasil nos Emirados Árabes Unidos, a convite de seu presidente Khalifa bin Zayed al Nahyan, por 2 vezes.
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“Estamos, o tempo todo, dando razão para que se o queira ver destruído e entregue a uma outra nação que mereça o orgulho de seu povo.”
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O complexo de vira-latas desbrasiliza o Brasil. Continuaremos colônia enquanto isso persistir. Enquanto formos “brasileiros”; e não BRASILESES.