Condução coercitiva de Lula foi ilegal e inconstitucional, por Lenio Luiz Streck

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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no Consultor Jurídico

Condução coercitiva de ex-presidente Lula foi ilegal e inconstitucional

Por Lenio Luiz Streck

Vimos um espetáculo lamentável na sexta-feira, 4 de março. Este dia ficará marcado como “o dia em que um ex-presidente da República foi ilegal e inconstitucionalmente preso por algumas horas”, sendo o ato apelidado de “condução coercitiva”. Sem trocadilho, tucanaram a prisão cautelar.

Nem preciso dizer o que diz a Constituição acerca da liberdade e sobre o direito de somente se fazer alguma coisa em virtude de lei, afora o direito de ir e vir. Todo o artigo 5º da CF pode ser aplicado aqui.

Mas, em um país em que já não se cumpre a própria Constituição, o que é mais uma rasgadinha no Código de Processo Penal, pois não?  Há dois dispositivos aplicáveis: o artigo 218 (caso de testemunha) e 260 (caso de acusado — Lula é acusado? Lula é indiciado? Lula é testemunha?) do Código de Processo Penal diz que

Art. 218 – A testemunha regularmente intimada que não comparecer ao ato para o qual foi intimada, sem motivo justificado, poderá ser conduzida coercitivamente.

Art. 260 – “Se o acusado não atender à intimação para o interrogatório, reconhecimento ou qualquer ato que, sem ele, não possa ser realizado, a autoridade poderá mandar conduzi-lo à sua presença”. Parágrafo único: “o mandado conterá, além da ordem de condução, os requisitos mencionados no artigo 352, no que lhes for aplicável”.

Ora, até os minerais sabem que, em termos de garantias, a interpretação é restritiva. Não vale fazer interpretação analógica ou extensiva ou dar o drible hermenêutico da vaca.  A lei exige intimação prévia. Nos dois casos. 

Mais: a condução coercitiva, feita fora da lei, é uma prisão por algumas horas. E prisão por um segundo já é prisão. Pior: mesmo que se cumprisse o CPP, ainda assim haveria de ver se, parametricamente, se os artigos 218 e 260 são constitucionais. A resposta é: no mínimo o artigo 260 é inconstitucional (não recepcionado) porque implica em produção de prova contra si mesmo. É írrito. Nenhum. Sim, sei que o Supremo Tribunal Federal disse que a condução coercitiva é possível. Mas não nos moldes do que estamos discutindo aqui. Cabe(ria) a condução nos termos do que está no CPP. Recusa imotivada, eis o busílis. Não atender a uma intimação: essa é a ratio.  E, acrescento: o STF não foi instado para falar da (in)constitucionalidade do artigo 260. Mas, mesmo que o STF venha a dizer que o dispositivo foi recepcionado, ainda assim haveria de se superar a sua literalidade garantista e garantidora: a de que só cabe a condução nos casos em alguém foi intimado e não comparece imotivadamente.

Logo, o ex-presidente Lula e todas as pessoas que até hoje foram “conduzidas coercitivamente” (dentro ou fora da “lava jato”) o foram à revelia do ordenamento jurídico. Que coisa impressionante é essa que está ocorrendo no país. Desde o Supremo Tribunal Federal até o juiz do juizado especial de pequenas causas se descumpre a lei e a Constituição.

Assim, de grão em grão vamos retrocedendo no Estado Democrático de Direito. Sempre em nome da moral publica, do clamor social, etc. Quando Procurador de Justiça, os desembargadores da 5ª Câmara e eu colocávamos a mão no ouvido para ver se ouvíamos o clamor social. Sim. Para prender, basta dizer a palavra mágica: clamor social e garantia da ordem pública. Não são mais conceitos jurídicos, e, sim enunciados performativos. É como se o juiz, usando de sua livre apreciação da prova (eis a ironia da história — 99% dos processualistas penais nunca se importaram com a livre apreciação, ao ponto de estar intacto no projeto do NCPP) — tivesse um clamorômetro ou um segunrançômetro.

A polícia diz que foi para resguardar a segurança do ex-presidente. Ah, bom. Estado de exceção é sempre feito para resguardar a segurança. O establishment juspunitivo (MP, PJ e PF) suspendeu mais uma vez a lei. Pois é. Soberano é quem decide sobre o estado de exceção. E o estado de exceção pode ser definido, segundo Agamben, pela máxima latina necessitas legem non habet (necessidade não tem lei).

Espero que tudo isso sirva de lição à comunidade jurídica. Quando há mais de 20 anos eu alertava para o fato de que o livre convencimento e a livre apreciação eram uma carta em branco para o arbítrio, muitos processualistas me recriminavam, dizendo: a livre apreciação é motivada. E eu respondia: isso é um argumento retórico. Se tenho livre apreciação, depois busco uma motivação. E mais: desde quando motivação é igual a fundamentação?  Hoje posso dizer: eu avisei.

Espero que os processualistas não vacilem quando discutirem o novo CPP. Simples assim!

Post Scriptum: Consta que na decisão que determinou a oitiva de Lula e outros, o juiz Sergio Moro ordenou que primeiro houvesse um convite para, só depois, em caso de recusa, fazer a coerção. Sendo isso verdadeiro, podemos concluir que a polícia cometeu abuso de autoridade. De todo modo, a ressalva de “fazer o convite” não tem o condão de superar a flagrante ilegalidade/inconstitucionalidade da condução coercitiva.

Lenio Luiz Streck é jurista, professor de direito constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do Escritório Streck, Trindade e Rosenfield Advogados Associados: www.streckadvogados.com.br.

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

18 Comentários

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  1. Seria legal reunir em um
    Seria legal reunir em um único lugar (post) todas as manifestações dessas “personalidades” jurídicas. Contra ou a favor (ainda não vi ninguém defendendo isso, mas estou curioso em relação a argumentos).

    Fica a sugestão.

  2. Normalmente nessas
    Normalmente nessas entrevistas observo os trejeitos e a repetição de falas.

    A necessidade de repetirem exaustivamente que a coerção era para garantir a segurança de Lula, e as carinhas de sentimentos (rsrsrs) que eles expressavam dizia tudo.

    Uns farsantes.

  3. Homem certo no lugar certo

    Eu mais três nos manifestamos aqui em que “lançamos” o Professor Dr. Lenio para a vaga no STF no lugar do Joaquim trabuco. Alguém disse que o Professor estava “muito acima” e que o STF não mereceria tê-lo como Ministro, concordei em parte, mas agora, lendo o artigo juridicamente perfeito e em que nos, progressistas,  estamos  sendo instados a sair da poltrona e dos teclados e colocar a cara tapas, digo: Seria mais estimulante se contássemos com o Dr. Lenio onde deveria estar, na cúpula do poder judiciário.

  4. O mundo jurídico inteiro sabe
    O mundo jurídico inteiro sabe disso (que a coerção à Lula foi ilegal).

    Sabe o que ocorre quando determinado ato do processo é praticado de forma ilegal?

    Eu respondo:

    Todo o processo é anulado.

    O STF terá a honradez e legalidade para anular o “lava Jato”?

    Lembram da anulação do Satiagraha?

    A legitimação no Brasil se chama Tv Globo.

    Apenas isso.

    1. concordo, assis…
      a grande

      concordo, assis…

      a grande mídia é que legitima esses “equívocos” da justiça…

       a mídia golpista  trama  a narrativa que permite

      essa legitimação, como oocorreu no mentirão-mensalão,

      tempo da inacreditável frase que marca o período:

      “condeno porque a literatura me permite”….

      literatura de quinta categoria  e dos  quinta-colunas do

      sub-jornalismo inventado nas redações da grande mídia……

  5. Moro testou a repercussão que prisão de Lula causaria

    Acredito que Sérgio Moro queria simplesmente testar a sociedade em relação à prisão de Lula. Não há dúvida mais acerca da perseguição política, jurídica e midiática que Lula vem sofrendo. Mas, o que mais assusta são os rumos que a coisa vem tomando. Parece estar se aproximando uma noite escura e tenebrosa. Os custos políticos de todo este processo podem desaguar na perda completa de legitimidade por parte das instituições, mesmo as forças militares, (para aqueles que pensam em golpe militar diferente de outros momentos hoje temos uma população armada) e em algo parecido ao que já foi o Líbano e hoje é a Síria.

    1. Realmente isso foi um teste,

      Realmente isso foi um teste, além de mais lenha na fogueira.

      Mas a história e a situação do Brasil nada têm a ver com a do Líbano ou da Síria.

      1. Moro testou a repercussão que prisão de Lula causaria

        Concordo, não parece agora. O Líbano antes de ocorrerem os conflitos da década de 1980 era chamada de “Suíça do Oriente”. Cristãos e muçulmanos partilhavam do poder. A Síria, antes dos recentes conflitos era o país de melhor qualidade de vida do Oriente Médio. Quando destruímos uma liderança popular como Lula não estamos apenas deslegitimando-o, mas a todos os grupos que o apoiaram nas útimas eleições, exatamente as populações mais pobres. E para aqueles que clamam pela demonstração de maturidade das instituições, eu afirmo – A maturidade das instituições irá até ocorrerem as primeiras mortes. E é isso que se avizinha. Um lento desabrochar de uma noite escura e tenebrosa.

        1. Perfeito comentário. Não

          Perfeito comentário. Não resta dúvida de que o ato da “sexta-feira negra” foi um balão de ensaio. O que se pretendeu foi avaliar a reação dos sensatos à desfundamentada atitude vinda da república do paraná. Creio que o tiro saiu pela culatra.

          1. É assustador!!!

            É assustador a irresponsabilidade de parte da elite. Estamos brincando com fogo e basta um rastilho de pólvora para o incêndio começar. Os historiadores, em pesquisas recentes, mostram que a maioria das revoluções começam, não porque a população passe por dificuldades, mas, pelo contrário, quando vê o pequeno progresso obtido ser solapado logo depois. A frustração é um combustível poderoso e avassalador na forja da ira das grandes massas.

    1. Errado

      Errado.

      Esse HC ai que o Moro citou trata de um latrocida confesso cuja esposa da vítima armou uma tocaia em uma loja com alguns policiais civis e na “reunião” a esposa encontrou folhas de cheque do marido morto e na conversa a campana ainda constatou contradições.

      O conduzido ficou sabendo na hora da investigação pq os policiais civis de tocaia por óbvio interviram quando viram o cheque e as contradições. Na delegacia o suspeito confessou e foi condenado a mais de 20 anos.

      No caso do Lula ele e o Brasil inteiro sabiam da historia do triplex, pedalinhos e das medidas provisórias. Ele incluvise já depos na Zelotes e se recusou no MP-SP pq o promotor disse na Veja que iria denuncia-lo independente do que falasse.

      Portanto, se conhece o endereço do “suspeito” e se sabe que ele, quando previamente intimado, comparece para depor. Por isso não existiu o elemento surpresa como no caso do latrocida confesso.

      Na investigação penal o faxineiro da delegacia sabe que existe o princípio da oportunidade, que por óbvio se aplica naquele caso, mas não a essa “investigação” sobre o Lula. O Moro sabe perfeitamente disso mas prefere ignorar e um bando de cínicos acha que a operação não é política.

      O Moro sabe tb que em relação a garantias constitucionais existe o princípio da proporcionalidade. Portanto, em cada caso o juiz deve avaliar as circunstâncias próprias para, se for o caso, mitigar ou não um direito fundamental.

      Mas se ele tá usando esse caso do latrocida confesso para “justificar” a condução coercitiva do Lula é pq ele já perdeu qualquer pudor de pelo menos tentar parecer ser imparcial.

  6. quem pode inibir os abusos jurídicos do Moro

    Todos os artigos que li até agora dizem que a condução coercitiva de Lula foi/é inconstitucional e pronto. Não há nada a fazer? Ou seja o Moro faz o que quer seja legal ou ilegal e nada acontece? Estamos todos a merce desse fanático? Não há uma instância superior que possa/deva coibir abusos jurídicos?

    Isso me apavora. Já vivi a ditadura e sei bem o que resulta disso para a população e para os movimentos progressistas.

    Alguém poderia dar uma luz nessa escuridão?

  7. Mas pra Globo foi tudo legal,

    Mas pra Globo foi tudo legal, tudo legalizado… Afinal, criou-se um espetáculo de escarnecimento público da principal liderança política do Brasil, internacionalmente reconhecida, visando a sua desconstrução.

  8. A BANANICE!

    ARTIGOS DA LEI CONTRA AS PALHAÇADAS DO MORO:

    https://www.facebook.com/democracia.direta.brasileira/photos/a.300951956707140.1073741826.300330306769305/741485049320493/?type=3&theater

    E AGORA BANANAS DE ESQUERDA?

    Isso é fora da lei, o juiz Moro precisa ser processado, e seus bens bloqueados para indenizar quem foi prejudicado. Porque a honra das pessoas, embora não tenha preço, merece ser indenizada. Se isso não é perseguição política, o que viria a ser?

    CONTRA O PSDB!

    Mas, afinal, será que as “bananas” não têm um único juiz federal de primeira instância e promotor nesse país, que possam enquadrar com o mesmo rigor as denúncias contra a globo, o Aécio, o Serra, o FHC, etc, que o Moro nem tomou conhecimento? O que estão esperando?

    Vejam como juízes são cassados em países como os Estados Unidos, e porque não cometem essas palhaçadas:

    https://www.facebook.com/democracia.direta.brasileira/photos/a.300951956707140.1073741826.300330306769305/649128891889443/?type=3&theater

    No Brasil, o primeiro passo para isso seria a aprovação da

    PEC 21/2015!

    Afinal, por que nossas BANANAS DE ESQUERDA não estão exigindo a PEC 21/2015 nas ruas, com seus movimentos sociais?

    Por que será que perderam diversas cadeiras no congresso em 2014?

    É! Fica cada vez mais difícil convencer ao eleitor, que não estão fazendo parte de todo esse teatrinho pra entregar o Pré Sal…

    Por que será que viraram “FARINHA DO MESMO SACO”?

    Como poderia ser esse o acordo:

    O PSDB faz a negociata, todos os principais políticos recebem um bolo multimilionário de ações da Chevron no exterior, e em troca ninguém do PSDB vai pra cadeia, nem é processado!

  9. é desse tipo de especialista

    é desse tipo de especialista que precismos mesmo no stf,

    segundo sugestões de alguns comentaristas…

    e com humor – essa expressão “deu o drible hermeneutico da vaca” é primoroso…

  10. Condução coercitiva de Lula

    Parece haver quase uma unanimidade de que as medidas de coerção foram anticonstitucional.

    Aí eu pergunto: quem paga pelo erro? A coisa fica a ver navios? Juristas que cometem erro ficam impune pelo fato de ser membro da Justiça?

    São questões que só num país realmente Democrático e de Direito poderia responder,ou, estou enganada?

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