Lula da Silva: os tribunais o condenam, a história o absolverá, por Boaventura Sousa Santos

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
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Sugestão de Jackson da Viola

do Público.pt

Lula da Silva: os tribunais o condenam, a história o absolverá

por Boaventura Sousa Santos

A campanha anti-petismo faz lembrar a campanha anti-semitismo dos tempos do nazismo. Em ambos os casos, a prova para condenar consiste na evidente desnecessidade de provar.

O processo Lula da Silva põe a nu de forma gritante que algo está podre no sistema judicial brasileiro, evidenciando procedimentos e práticas incompatíveis com princípios e garantias fundamentais de um Estado de direito democrático, os quais devem ser denunciados e democraticamente combatidos.

Totalitarismo e selectividade da acção judicial. O princípio da independência dos tribunais constitui um dos princípios básicos do constitucionalismo moderno como garantia do direito dos cidadãos a uma justiça livre de pressões e de interferências, quer do poder político quer de poderes fácticos, nacionais ou internacionais. O reforço das condições de efectivação daqueles princípios dá-se através de modelos de governação do judiciário com ampla autonomia administrativa e financeira. Mas, numa sociedade democrática, esse reforço não pode resvalar para um poder selectivo e totalitário, sem fiscalização e sem qualquer sistema de contrapesos. 

O processo Lula da Silva evidencia um judiciário em que tal resvalamento está em curso. Eis dois exemplos. É clara a disjunção entre o activismo judiciário contra Lula da Silva – célere, eficaz e implacável na acção (Sérgio Moro decretou a prisão de Lula escassos minutos após ser notificado da decisão de indeferimento do habeas corpus, do qual ainda era possível recorrer, e desde a denúncia à execução da pena decorreram menos de dois anos) – e a lentidão da acção judicial contra Michel Temer e outros políticos da direita brasileira. E não pode colher o argumento de que essa inacção foi bloqueada por manobras do poder político porque não se conhece igual activismo do judiciário na denúncia dessas manobras e em procurar ultrapassá-las. O segundo é a restrição totalitária de direitos e liberdades constitucionalmente consagradas. Num Estado de direito democrático, os tribunais têm de ser espaços de aprofundamento de direitos. Ora, o que se assiste no Brasil é precisamente o contrário. A Constituição brasileira determina que ninguém será considerado culpado até ao trânsito em julgado de sentença condenatória, isto é, até que se esgotem todas as possibilidades de recurso. A Constituição Portuguesa tem uma norma semelhante, e não se imagina que o Tribunal Constitucional português viesse determinar que uma pessoa fosse presa com o seu processo em recurso no Supremo Tribunal de Justiça. Ora, foi isso mesmo o que a maioria dos juízes do Supremo Tribunal Federal brasileiro fez: restringiu direitos e liberdades constitucionais ao determinar que, mesmo não tendo o processo transitado em julgado, Lula da Silva poderia começar a cumprir pena. Qual a legitimidade social e política do poder judicial para restringir direitos e liberdades fundamentais constitucionalmente consagrados? Como pode um cidadão ou uma sociedade ficar à mercê de um poder que diz ter razões legais que a lei desconhece? Que confiança pode merecer um sistema judicial que cede a pressões militares que ameaçam com um golpe se a decisão não for a que preferem, ou a pressões estrangeiras, como as que estão documentadas de interferência do Departamento de Justiça e do FBI dos EUA no sentido de agilizar a condenação e executar a prisão de Lula?

Falta de garantias do processo criminal. O debate mediático em torno da prisão de Lula enfatiza o facto de o processo ter sido apreciado e julgado por um tribunal de segunda instância que não só confirmou a sua condenação como ainda agravou a pena. Este agravamento obrigaria a uma justificação adicional de culpabilidade. Infelizmente, a hegemonia ideológica de direita que domina o espaço mediático não permite um debate juridicamente sério a este respeito. Se tal fosse possível, compreender-se-ia quão importante é questionar as provas materiais, as provas directas dos factos em que assentou a acusação e a condenação. Ora essas provas não existem no processo. A acusação e a condenação a 12 anos de prisão de Lula da Silva funda-se, sobretudo, em informações obtidas através de acordos de delação premiada e em presunções. Acresce que as condições de recolha e de validação da prova dificilmente são escrutináveis, dado que quem preside à investigação e valida as provas é quem julga em primeira instância, ao contrário do que, por exemplo, acontece em Portugal, onde o juiz que intervém na fase de investigação não pode julgar o caso, permitindo, assim, um verdadeiro escrutínio da prova. O domínio do processo, na fase de investigação e de julgamento, por um juiz confere a este um poder susceptível de manipulação e de instrumentalização política. Compreende-se a magnitude do perigo para a sociedade e para o regime político no caso de este poder não se autocontrolar.

Instrumentalização da luta contra a corrupção. O debate sobre o Caso Lula protagonizado por um sector do judiciário polariza o combate contra a corrupção, colocando de um lado os actores judiciais do processo Lava Jato, a eles colando o combate intransigente contra a corrupção, e do outro todos aqueles que questionam métodos de investigação, atropelos aos direitos e garantias constitucionais, deficiências da prova, atitudes totalitárias do judiciário, selectividade e politização da justiça. Essa polarização é instrumental e visa ocultar justamente atropelos vários do judiciário, quer quando age quer quando se recusa a agir. O roteiro mediático da demonização do PT é tão obsessivo quanto grotesco. Consiste na seguinte equação: corrupção-igual-a-Lula-igual-a-PT. Quando se sabe que a corrupção é endémica, atinge todo o Congresso e supostamente o actual Presidente da República. O Estado de São Paulo de 7 de Abril é paradigmático a este respeito. Conclui o roteiro com a seguinte diatribe: “a exemplo do que aconteceu com Al Capone, o célebre gângster americano que foi preso não em razão de suas inúmeras actividades criminosas, mas sim por sonegação de impostos, o caso do triplex, que rendeu a ordem de prisão contra Lula, está muito longe de resumir o papel do ex-presidente no petrolão”. Esta narrativa omite o mais decisivo: no caso de Al Capone, os tribunais provaram de facto a sonegação dos impostos, enquanto, no caso de Lula da Silva, os tribunais não provaram a aquisição do apartamento. Por incrível que pareça, da leitura das sentenças tem de concluir-se que a suposta prova é mera presunção e convicção dos magistrados. A campanha anti-petismo faz lembrar a campanha anti-semitismo dos tempos do nazismo. Em ambos os casos, a prova para condenar consiste na evidente desnecessidade de provar.

Os democratas e os muitos magistrados brasileiros que com probidade cívica e profissional servem o sistema judicial sem se servirem dele têm uma tarefa exigente pela frente. Como sair com dignidade deste pântano de atropelos com fachada legal? Que reforma do sistema judicial se impõe? Como organizar os magistrados dispostos a erguer trincheiras democráticas contra o alastramento viscoso de um fascismo jurídico-político de tipo novo? Como reformar o ensino do direito de modo a que perversidades jurídicas não se transformem, pela recorrência, em normalidades jurídicas? Como devem as magistraturas autodisciplinar-se internamente para que os coveiros da democracia deixem de ter emprego no sistema judicial? A tarefa é exigente, mas contará com a solidariedade activa de todos aqueles que em todo o mundo têm os olhos postos no Brasil e se sentem envolvidos na mesma luta pela credibilidade do sistema judicial enquanto factor de democratização das sociedades.

Boaventura Sousa Santos – Director do Centro de Estudos Sociais

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

3 Comentários

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  1. Pasargada piorou, né?
    O senso crítico e a pena do professor Boaventura continuam afiados. E este Bananão piorou muito 40 anos depois de seu estudo sobre Pasárgada, não é, Mestre? Com Pasárgada, Lula começava sua brilhante epopéia e todos os seus feitos desde então acabaram, de uma forma ou de outra, traduzindo os sonhos dos bravos habitantes reais daquele nicho “fictício”.

  2. Ave Lula

    Lula nasceu para ser mais um dos raros grandes heróis da humanidade, e o que está escrito para ser um ícone da história, só Deus pode mudar. Queiram ou não, toda essa trama porca, imunda e vergonhosa, que fizeram contra Lula, parece que foi planejada e escrita por outra trama de grau muito mais superior e totalmente oposta a essa. É como se fosse uma trama invisível, insensível e identificável, mas que atua para lado do bem. É uma engenhosa armadilha disfarçada em uma espécie de drama épico, aparentemente contra Lula, mas que produz um eficaz resultado contra a traiçoeira trama dos derrotados golpistas, da coligação do mal. Os mendicantes e dependentes da grande mídia; os foras da lei que se escondem nas polícias; os políticos que, desde sempre, são campeões da pilantragem e o empresariado canalha e marginal, que explora e tenta manter os trabalhadores em controlado regime de submissão e escravidão estão desesperados e sem chão pela inteligente limonada que Lula fez do limão que lhe serviram. Todas essas ovelhas negras que infestam essa trevosa coligação golpista e gananciosa tentam ativamente e incessantemente obstruir e impedir, a todo custo, o acesso do povo humilde e excluído ao desenvolvimento social, cultural e econômico. A elite rentista, preguiçosa, antipatriota e eterna derrotada  sempre tentou alinhar acordos escusos, maldosos e covardes inspirados na ambição e ganância de suas insaciáveis busca de poder e dinheiro, à custa do suor sacrificado da população trabalhadora. Perderam todas e queiram ou não, eles terão que engolir que Lula nasceu para ser mais um dos raros brasileiros que integra a galeria dos grandes heróis da humanidade e isso jamais será apagado, porque ele nasceu para ser um ícone da história universal e Deus é o único poder, que poderá mudar o que já está escrito e consagrado. Deram mais um tiro no pé e amargaram mais uma vez o amargo do fracasso da derrota, da inutilidade de suas vidas e ainda elevaram Lula ao patamar mais alto de sua consagrada história. Queiram ou não, por onde passou, Lula sempre foi o centro da luz e os raios luminosos dessa energia são refletidos com espetacular potência, pela maioria esmagadora do nosso povo. E justamente essa vitoriosa irradiação, de alcance incalculável, é que estará sempre invadindo, incomodando e desequilibrando a consciência de cada um de seus preconceituosos perseguidores e detratores.

    Ave Lula!

     

  3. Ainda temos que escrever essa historia

    Reformar o ensino do direito no Brasil passa por uma reforma geral e irrestrita da constituição da sociedade brasileira.

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