A perda da crônica, por Eliseu Raphael Venturi

A perda da memória e da linguagem, de tudo aquilo que poderia segurar quando tudo pareceria, indiferentemente, levar: ao apagamento, ao esfacelamento, à morte

A perda da crônica

por Eliseu Raphael Venturi

Conforme se perdia, se desintensificava – o sentimento da crônica – era de se pensar o que estava no enleio da crônica, na trama da crônica, na carne da crônica, que era o sentimento do tempo vivido, do tempo em que se vivia, de tudo aquilo de que se poderia ter consciência e algum domínio razoável até o apagar da percepção. O que escoava.

Poder-se-ia concluir que a perda da crônica, uma crônica em crônico estado, era a perda do sentimento do tempo que se vivia, poder-se-ia dizer, um desgosto de vida, vida-luta, vida-lata, lassidão do bom combate da palavra.

Mas cada palavra era apenas um impulso elétrico de algo mais havido no corpo, a palavra era som de água vibrante, era combate de articulação, palavra não era dom nem dado, palavra era extrusão.

A intermitência da crônica era uma oscilação do fôlego-do-mundo – jamais diria pestanejo do pensar – este que segue indocumentado, vivo na velocidade das máquinas do corpo e de transporte.

Uma hesitação do trabalho do registro, da grafia, da forma gerida a barro frio, uma flutuação do móbile comunitário, da partilha, das conexões, uma contenção da palavra lançada, um cerceamento da saída e do retorno de si, uma vacilação da aposta do enunciar construído por imagens, da tentativa do compreender, do cauteloso e medido risco não sádico de ferir, da possibilidade do redimensionamento: a crônica-crônica era a suspensão do fora e o sobrestamento do possível, a interdição do que se sucederia, digo.

Este ponto era apenas um diagnóstico, uma constatação contingente, uma evidência ilusória e, afinal, uma obviedade sem prudência e sem pudores. Não havia verdade sobre a crônica porque o cotidiano não era verdadeiro, assim, no sentido de que se vivia aquele tempo simulado, de simulacros, aquele tempo embarcado.

Distanciar-se da crônica era refugiar-se do tempo, uma injustiça aos cronistas de tempos ainda mais ingratos, uma justiça aos cuidados de si – poderia haver um “si” fora do mundo, desencarnado do mundo? –, uma dúvida aos deveres da dessubjetivação administrada. O que restaria às agendas postas se ninguém mais se chocasse, se se desinvestisse toda a revolta? Um esfriamento.

Qual desativação da linguagem, que era um arranhar do simbólico, poderia retomar a potência e o possível? Negava-se a pauta, já não se era mais o mesmo, já não se deixava levar por aqueles temas repetidos à exaustão e não se deixava que a repetição exaustiva moldasse a contraface, ou qualquer vértice, ou qualquer rosto.

Havia um dever público e objetivo de se pensar, uma regra de inserção na existência e no possível. Uma obrigação cívica, era preciso um espaço para se pensar: um espaço livre da armadilha da palavra, do perigo da ambiguidade escolhida, das distâncias abissais do sentido, da má-fé da fala. Um espaço cívico, e não cínico. Haviam dado García Márquez, Machado, Trevisan, Fonseca, Bernhard, Braga, Lispector, tantos outros, tantos os recursos todos de que se precisava, e mais.

A perda da crônica no tempo passado era a perda do tempo ele mesmo, era o que se demolia. A perda da memória e da linguagem, de tudo aquilo que poderia segurar quando tudo pareceria, indiferentemente, levar: ao apagamento, ao esfacelamento, à morte. Era um golpe sutil e mordaz ao qual há muito já se acostumara. Um ataque ao espírito cronista era mais um crime contra a humanidade, um crime inapreensível pelo direito penal, um crime atípico e inatipicizável.

Era uma aspereza insidiosa que se tecia. Instalar a perda da crônica era instituir a falência do sopro, era eliminar os jogos que não apenas se poderia e se deveria jogar, porque a crônica era a certidão social da passagem, o documento do evanescente, a testemunha da rapidez; perdiam-se os costumes, os mistérios, as descobertas do mundo. A Terra se tornava plana e o símbolo da planaridade era tomado de uma projeção azimutal.

Eram tempos tristes, aqueles, cada vez mais repetitivos e insistentes. Nada mais se poderia falar do que a repetição e a resistência à repetição que era mais repetição. Repetição é encarceramento. Palavras de polidez, “happy hours” da infidelidade, citações abusivas de Hannah Arendt, atentados aos usos da alteridade, um tanto de abuso havia. As coisas iam como que ficando mescladas em meio ao estupefactante, ao inebriante, ao entorpecente, ao ultrajante, mas era um modo inóspito de manejar o que poderia ser subversivo, porque no jogo dos sinais as coisas vão se equivalendo ao ponto da indistinção. Pode-se falar qualquer coisa.

Entorpecidos, a crônica se perdia, a viabilidade da crônica era derretida e sua ductibilidade não era gentil; não se pretenderia que a crônica resolvesse qualquer coisa que senão a forma, a sua significação informativa, apenas. Era preciso recuperar o tempo, fazer uma Chamada, um Manifesto, uma Conclamação, um Pedido de Socorro endereçado a cada um e a cada ninguém; é claro que a saída não seria essa. Não havia salvação, era claro. A bem dizer, despotencializar o mal era esvaziar a significação, deixando o patético, nu, só apenas na evidência é que se buscaria o fluxo possível da crônica.

Os tempos, porém, ainda eram outros; não eram utopias, nem distopias, nem normas, nem realidades, nem simbólicos ou imaginações. Por meio de todas as explicações e normatividades, era preciso preservar o cronista dentro de si e, se não houvesse sido encontrado, era um imperativo despertá-lo, fazê-lo, emergi-lo, não sem antes tomar a precaução de destruir todas estas formas e captar aquela energia da destruição, que seria o único feixe para o qual se poderia olhar.

*Eliseu Raphael Venturi é radicado em Curitiba-PR.

Redação

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