Carta para Karina Buhr, por Mariana Nassif

Por Mariana Nassif

Querida Karina,

Te abraço, se você assim desejar. Às mulheres abusadas, estupradas, resta a falta de contorno e conforto no corpo, esse que é tido como templo, inclusive do orixá. Deixo um espaço enorme no coração pra te receber, em segurança, porque como bem disse a mestra Adriana, do Ilu Oba, em sua conta do Facebook, “não sei como Karina Buhr está viva”.

Daqui onde estou, escuto baixinho uma resposta que passeia entre os devaneios sobre como é possível sobreviver aos doloridos abusos, o estupro que não acontece apenas no corpo, sobretudo na alma, e a dúvida dolorida que questiona, quase que o tempo todo, “será mesmo que isso é viver?”.

Não precisava, Karina, ter se preocupado em assinalar que este enredo não diz respeito ao candomblé e à umbanda: especialmente neste ano, que foi tenebroso em tantos aspectos, outros silêncios se romperam e apontaram outros líderes, estes homens que, não bastando a toxidade de seu masculino, ainda escarneiam em cima da esfera do sagrado, num abuso de poder quase impenetrável, como se a aura religiosa os fosse privar de algo – e, confesso, é aflitivo perceber que, sim, muitas vezes o endeusamento continua e nós, as mulheres, caminhamos com a culpa, a vergonha, as dores fincadas em cada fresta e, ainda, sob a ansiolítica espera por sermos atacadas, chamadas de mentirosas, carentes, sei lá o quê. Não é a umbanda, o candomblé, o espiritismo ou os haribôs: é o machismo em sua forma mais grotesca e segue bizarro tentar esquivar o olhar deste fato, tamanho pedido de transformação que ele traz e faz.

Entendo também teu silêncio durante todos esses anos, Karina. O que as pessoas que têm a sorte de não ter experienciado abusos e estupros ao longo da existência não sabem é que essas histórias passeiam de forma tortuosa e incerta pela mente, num jogo de proteção psicológica-revela-não-revela, como se quiséssemos nos proteger de algo que, para ser curado, precisa ser trazido à tona. Isso leva o tempo necessário para que as curas se mostrem e, aqui sim, acredito no potencial milagroso do invisível, e desejo que minha mãe Iansã sopre os bons ventos daquilo que expurga, limpa e transforma, e que você se sinta enfim em paz. Quando as lágrimas e o medo fizerem menção, lembre-se de ser passagem, e não morada, dessa dor. Talvez ainda seja cedo para assimilar que é possível, mas afirmo, após cerca de 34 anos após meu episódio, que um dia esse dia chega.

Ele chega e a gente tem ainda mais vontade de viver e de cuidar e de seguir porque já conseguiu. Que você permita que seu choro seja frágil, sabendo-se não fraca. Que tolere as insônias exageradas sob referências escabrosas de amor e que tenha piedade e empatia de si mesma quando duvidar de qualquer mudança que possa ser feita neste caminho: o amor não passa nem perto daquilo, e tem algumas pessoas por aqui que são especialistas em reapresentar versões agradáveis e viagens sutilmente alucinantes pra gente lembrar de responder que sim, agora está tudo bem, e essa ser uma verdade um tanto mais presente do que as chagas profundas que estes episódios promovem.

Brava Karina, finalizo esta carta com o olhar direcionado aos teus olhos, piscando lenta e profundamente, na certeza de que não sou só eu, mas muitas e muitos de nós, os que estamos em teia, em rede, em família, a construir e reprogramar este mundo para que não se esqueça e não se repita, parafraseando a militância da ditadura que, não deixa de ser, vem esquematizada no mesmo sistema de abuso por aqueles meninos mimados e com cheiro de enxofre da 5a série C.

Amor, Karina, no lugar de força, é o que emano pra você. Pode quebrar, pode chorar, pode fragilizar: agora, só não vê quem não quer e, com isso, você tem proteção pra arrumar sua história de dentro pra fora.

Te abraço de novo, se você assim permitir.

 

Mariana A. Nassif

Mariana A. Nassif

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