Evoé Zé!
por Ana Laura Prates
Conheço o Zé Celso praticamente desde que nasci. Quando eu tinha um ano, minha mãe exilou-se em Araraquara, cidade natal do Zé, para se proteger minimamente das ameaças da ditadura e criar seus dois filhos, meu irmão e eu, com um pouco de tranquilidade e segurança. Araraquara era, então, uma cidade conservadora e preconceituosa. Faz parte de sua história um caso clássico de coronelismo – o linchamento dos irmãos Brito – e a lenda urbana que daí derivou, segundo o qual uma serpente viveria embaixo da igreja Matriz, amaldiçoando a cidade. Além disso, olhando a Matriz a uma certa distância, vê-se a cabeça de uma águia.
Pois essa mesma cidade, paradoxalmente, é a cidade das belas praças, das mágicas cachoeiras e é também a morada do sol (ara-coara). É o berço de inúmeros artistas plásticos, bailarinos, atores, diretores, músicos, escritores e intelectuais. É a cidade que recebeu Sartre e Beauvoir quando de sua vinda ao Brasil. É a cidade de Inácio de Loyola Brandão e da Liniker. É a cidade de José Celso e Luiz Antônio Martinez Corrêa, este último barbaramente assassinado, com 107 facadas, vítima de um crime de ódio claramente vinculado à homofobia. Pois foi nesta cidade tão paradoxal quanto o próprio Brasil que cresci escutando as histórias envolvendo a obra e a vida do Zé, graças à faceta dionisíaca de meus pais Julio e Regina: ele pela via do TBC e do Teatro de Arena e ela pela via da filosofia e da mitologia grega.
Eram histórias sobre o Teatro Oficina, a montagem de O Rei da Vela e, principalmente, sobre o impacto de Roda Viva – primeira peça escrita por Chico Buarque – e do ataque ao Teatro Ruth Escobar pelo “Comando de Caça aos Comunistas”. Depois, a prisão, a tortura e o exílio do Zé. Eram tempos difíceis e perigosos, e a recomendação era para não comentar essas histórias que ouvia na minha casa com ninguém.
Mas foi apenas quando voltei a São Paulo, com 17 anos, que pude conhecer corporalmente o Oficina e vivenciar a presença do Zé: suas aparições, falas, performances e montagens. Como esquecer a estreia de Marcelo Drummond – companheiro do Zé por 37 anos – em “As Bacantes”? Como esquecer da apresentação com José Miguel Wisnik em pleno Teatro Municipal do “Poema do olho do cu” de Paul Verlaine e Arthur Rimbaud, traduzido pelo Zé Celso e por Marcelo Drummond e musicado pelo próprio Wisnik? E as tretas com a Igreja, em Araraquara e na PUC-SP? As palavras certas na hora certa, nas entrevistas e sempre que necessário. Como esquecer sua intervenção performática na bancada do Roda Viva – o programa da TV Cultura – que recebia em seu centro a crítica e especialista em Shakespeare Barbara Heliodora: “gostamos do mesmo rapaz – Shakespeare, no caso – mas você é a esposa e eu a amante” (assistam no Youtube!)
Éramos duplamente vizinhos. Tenho orgulho de morar do lado de cá da Av. Paulista que podemos chamar de Bela Vista, ou Bexiga, bairro onde fica a sede do incrível Teatro Oficina. O Oficina foi fundado pelo próprio Zé, Renato Borghi e outros em 1958. Nos anos 60 foi adquirida sua primeira sede, onde era um antigo teatro que, aliás, sofreu um incêndio. O prédio passou por várias reformas ao longo das décadas e em 1983 foi tombado pelo Condephaat. O teatro atual foi inaugurado em 1994, um projeto assinado por Lina Bo Bardi e Edson Elito que, em 2015 foi considerado pelo jornal The Gardian o melhor projeto arquitetônico do mundo na sua categoria. E é!
O Zé chamava o Bexiga de “a periferia central de São Paulo”. Como diz a letra do samba Tradição, de Geraldo Filme: “Bexiga hoje é só arranha-céu/E não se vê mais a luz da lua/Mas o Vai-Vai está firme no pedaço/É tradição e o samba continua”. Na verdade, o barracão da Vai-Vai foi expulso pelas obras da linha laranja do metrô. Uma das Escolas de Samba mais tradicionais de São Paulo hoje não tem barracão. Mas um sítio arqueológico de grande importância, do antigo quilombo ali existente, foi encontrado durante as escavações, bem na encruzilhada (de Exu) onde ficava o antigo barracão! O Teatro Oficina ainda resiste, apesar do litígio com o grupo Silvio Santos, que almeja construir torres de 100m ao lado do teatro, além de outros prédios na região do rio Saracura. O empresário comprou terrenos ao redor do teatro ainda nos anos 80 e desde então o Zé Celso vinha conseguindo na justiça impedir sua ocupação. A ideia, ao contrário é que ali seja criado o Parque do Bexiga. Com a ajuda de Eduardo Suplicy a Câmara Municipal de São Paulo aprovou, em 2020, por unanimidade, a criação do Parque, onde, inclusive corre o córrego do Bexiga. Mas o prefeito vetou. Atualmente um grupo de trabalho criado pela prefeitura estuda a implantação do Parque. Mantermos a mobilização é o mínimo que podemos fazer em respeito à luta do Zé pelo direito a uma cidade que desenterra suas serpentes subterrâneas.
Além da vizinhança do Oficina, meu consultório é pertinho do apartamento onde Zé morava. Durante anos, encontrava o Zé, sozinho ou com o Marcelo, no supermercado. Entre a escolha de uma abobrinha e uma beringela, sorria por estar compartilhando aquele momento prosaico com ele; mas nunca me aproximei, pois naqueles tempos eu ainda transitava intimidada pelo mundo e pelas pessoas. Mas em 2019, levei minha filha Luiza para assistir à incrível remontagem de Roda Viva, a peça, atualíssima. Saí do espetáculo tão mobilizada que escrevi um texto para essa coluna, chamado “A voz do homem velho”: “o Zé Celso está o tempo todo entre nós, nos regendo como um maestro rege a sua orquestra. Um mago, um xamã, um babalorixá de cabelos brancos, vestido de branco, falando de vez em quando: ‘descruza os braços menina, deixa sua energia fluir’”. No dia seguinte, encontrei o Marcelo no supermercado. Mas, desta vez, deixei a energia fluir e fui lá falar com ele. Contei da emoção de assistir Roda Viva com minha filha, contei que havia conhecido, desfilando na Mangueira, o Nolram – jovem ator do Acre, que puxava a apoteose de Roda Viva cantando “A história que a história não conta”. Contei que havia escrito um texto, pedi pra mostrar pro Zé. Como uma velha amiga, perguntei por sua saúde, mandei um beijo, força na luta por nossa cidade, abracei o Marcelo calorosamente. De fato, o texto foi compartilhado pelo Oficina e fiquei muito feliz!
Depois veio a Pandemia, e quando o Oficina reabriu, estive lá várias vezes. Me sentia tão próxima que quase fui ao casamento do Zé com o Marcelo dia 06/06. Lembrei, em tempo, que não era convidada. Mas assisti tudo, extasiada, pelas redes sociais. Eu poderia tentar encontrar formas de dizer da morte do Zé, mas nenhuma diria tanto quanto as palavras de seu amigo José Miguel Wisnik, que reproduzo aqui: “Zé Celso chamou pra si e pra tudo as potências da Vida. Um Messias que se bebe. A pessoa mais livre e transparente que existiu, existe e reexistirá. Seu Não ao ser vil é um tremendo Sim. Não há morte que o morra”.
Quando soube do incêndio, fiquei indignada e revoltada: assim não! E confesso que quando li as palavras de Fernanda Montenegro – “Há um pânico em todos nós, homens e mulheres, mulheres e homens que somos artistas ligados ao Teatro diante dessa dolorosa e trágica partida de Zé Celso” – entendi que também estava com medo. Parece que ele era um nosso guardião. Mas o medo é um afeto triste, e estou tentando transmutá-lo em esperança. O fogo, o elemento mais misterioso e trágico, tal qual nossa morada do sol, com serpentes, águias, encruzilhadas e luz e calor. O Zé, nossa Fênix, sempre ressuscitará!
Evoé, Zé.
Ana Laura Prates é dona de casa e mãe, psicanalista, escritora e editora. É autora, dentre outros de “Feminilidade e experiência psicanalítica” e “Da fantasia de infância ao infantil na fantasia” (Larvatus Prodeo Editora). Doutora pela USP, Pós-Doutora pela UERJ e Pesquisadora da UNICAMP. É membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano e do coletivo Psicanalistas Unidos pela Democracia (PUD)
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