Ana Laura Prates
Ana Laura Prates é graduada em Psicologia pela USP (1989), mestre em Psicologia Clínica pela USP (1996), doutora em Psicologia Clínica pela USP (2006) e possui pós-doutorado em Psicanálise pela UERJ (2012).
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Pensar com os pés (Um elogio à corrida no dia internacional da corrida de rua), por Ana Laura Prates

São eles que nos indicam que, se por um lado passamos pela vida como viajantes, isso não quer dizer que seguimos sem rumo, deixando a vida nos levar

Pensar com os pés
(Um elogio à corrida no dia internacional da corrida de rua)

por Ana Laura Prates

A expressão ‘pensar com os pés’, cunhada por Lacan, foi usada algumas vezes ao longo de seu ensino. Ele dizia que esse era o modo de pensar mais coerente com a Psicanálise, já que nossa práxis não é exatamente, ou pelo menos não somente, uma experiência cognitiva. Há alguma especulação sobre uma alusão à expressão de língua inglesa “walk the talk” que poderíamos traduzir mais ou menos como “bancar o que se fala”. A alusão aos pés, de qualquer forma, não é inocente para nós Psicanalistas, já que ela remete diretamente ao nosso mito fundador, o Édipo (Oidipous), que significa, literalmente, pés inchados. Sabemos que no encontro de Édipo com a Esfinge, o enigma que ele deve decifrar para vencer o monstro também faz alusão aos pés: dipous, tripous, tertrapou. O homem. No caso, Oidipous. Sua resposta remete à inscrição de sua saga na letra de seu nome próprio.

Em português, há várias expressões que podemos recolher dos ditos populares, e que usam os pés como referência: podemos andar “pé ante pé” ou “com o pé nas costas”. Também podemos “meter o pé na jaca” ou usar um “pé de apoio” para “tomar pé da situação”, sobretudo quando está tudo em “pé de guerra”. Quando mantemos um combinado, dizemos que ele “está de pé”. E quando não levantamos com “o pé esquerdo” podemos nos animar a dizer segredos “ao pé do ouvido”.

Os pés são os membros que nos sustentam, mas também são eles que nos põem em movimento. Eles são, a um só tempo, a sustentação e a leveza. São eles que nos indicam que, se por um lado passamos pela vida como viajantes, isso não quer dizer que seguimos sem rumo, deixando a vida nos levar; mas, antes, que podemos orientar nosso destino pelo gps do desejo, não sem pagar um preço bem alto pela passagem. Deixar a vida nos levar é diferente de se deixar levar pelo poema escrito pelos pés de cada um, já que como dizia o poeta: “caminhante, não há caminho, o caminho se faz ao andar”. Outro poeta também dizia que “quem sabe faz a hora, não espera acontecer”.

Essa posição ética, aprendemos em cada experiência com o inconsciente de cada um. Trata-se de uma nova relação com a palavra e com o pensamento, que implica em não mais buscar um sentido que justifique nossa relação com a vida; e implica também uma nova aposta, homóloga – embora fora do campo religioso – à aposta de Pascal: na dúvida, ajoelhe e reze! Em outras palavras, a sustentação do ato ultrapassa o pensamento cognitivo. Trata-se, portanto, da ética do bem dizer e do bem fazer em contraponto à moral das palavras ao vento.

“Pensar com os pés”. É isso o que faço, quase literalmente, quando saio correndo por aí. Há muito boas razões para correr e quase todas são verdadeiras, mas nenhuma delas justifica de todo minha relação com a corrida. É verdade que a corrida traz saúde, bem estar, vigor e forma física. É verdade que é uma prática democrática, que implica em pôr o corpo na rua. É verdade que é um modo de estar na cidade, de conhecer de outro modo os lugares por onde passamos. Mas se eu dissesse que o conjunto dessas afirmações justificasse minha relação com a corrida, não seria verdade.

Corri em praticamente todos os lugares por onde estive durante esses últimos 19 anos. Ao longo do tempo, a corrida foi se transformando em uma espécie de meditação. Quase todas as principais decisões que tomei nesse tempo, as ideias que tive, os projetos, os planos, os textos que escrevi e inclusive alguns poemas foram gestados enquanto eu corria.

Eu corro por nada e isso é o melhor.

Ana Laura Prates é dona de casa e mãe, psicanalista, escritora e editora. É autora, dentre outros de “Feminilidade e experiência psicanalítica” e “Da fantasia de infância ao infantil na fantasia” (Larvatus Prodeo Editora). Doutora pela USP, Pós-Doutora pela UERJ e Pesquisadora da UNICAMP. É membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano e do coletivo Psicanalistas Unidos pela Democracia (PUD)

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.

Ana Laura Prates

Ana Laura Prates é graduada em Psicologia pela USP (1989), mestre em Psicologia Clínica pela USP (1996), doutora em Psicologia Clínica pela USP (2006) e possui pós-doutorado em Psicanálise pela UERJ (2012).

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