Pensar com os pés
(Um elogio à corrida no dia internacional da corrida de rua)
por Ana Laura Prates
A expressão ‘pensar com os pés’, cunhada por Lacan, foi usada algumas vezes ao longo de seu ensino. Ele dizia que esse era o modo de pensar mais coerente com a Psicanálise, já que nossa práxis não é exatamente, ou pelo menos não somente, uma experiência cognitiva. Há alguma especulação sobre uma alusão à expressão de língua inglesa “walk the talk” que poderíamos traduzir mais ou menos como “bancar o que se fala”. A alusão aos pés, de qualquer forma, não é inocente para nós Psicanalistas, já que ela remete diretamente ao nosso mito fundador, o Édipo (Oidipous), que significa, literalmente, pés inchados. Sabemos que no encontro de Édipo com a Esfinge, o enigma que ele deve decifrar para vencer o monstro também faz alusão aos pés: dipous, tripous, tertrapou. O homem. No caso, Oidipous. Sua resposta remete à inscrição de sua saga na letra de seu nome próprio.
Em português, há várias expressões que podemos recolher dos ditos populares, e que usam os pés como referência: podemos andar “pé ante pé” ou “com o pé nas costas”. Também podemos “meter o pé na jaca” ou usar um “pé de apoio” para “tomar pé da situação”, sobretudo quando está tudo em “pé de guerra”. Quando mantemos um combinado, dizemos que ele “está de pé”. E quando não levantamos com “o pé esquerdo” podemos nos animar a dizer segredos “ao pé do ouvido”.
Os pés são os membros que nos sustentam, mas também são eles que nos põem em movimento. Eles são, a um só tempo, a sustentação e a leveza. São eles que nos indicam que, se por um lado passamos pela vida como viajantes, isso não quer dizer que seguimos sem rumo, deixando a vida nos levar; mas, antes, que podemos orientar nosso destino pelo gps do desejo, não sem pagar um preço bem alto pela passagem. Deixar a vida nos levar é diferente de se deixar levar pelo poema escrito pelos pés de cada um, já que como dizia o poeta: “caminhante, não há caminho, o caminho se faz ao andar”. Outro poeta também dizia que “quem sabe faz a hora, não espera acontecer”.
Essa posição ética, aprendemos em cada experiência com o inconsciente de cada um. Trata-se de uma nova relação com a palavra e com o pensamento, que implica em não mais buscar um sentido que justifique nossa relação com a vida; e implica também uma nova aposta, homóloga – embora fora do campo religioso – à aposta de Pascal: na dúvida, ajoelhe e reze! Em outras palavras, a sustentação do ato ultrapassa o pensamento cognitivo. Trata-se, portanto, da ética do bem dizer e do bem fazer em contraponto à moral das palavras ao vento.
“Pensar com os pés”. É isso o que faço, quase literalmente, quando saio correndo por aí. Há muito boas razões para correr e quase todas são verdadeiras, mas nenhuma delas justifica de todo minha relação com a corrida. É verdade que a corrida traz saúde, bem estar, vigor e forma física. É verdade que é uma prática democrática, que implica em pôr o corpo na rua. É verdade que é um modo de estar na cidade, de conhecer de outro modo os lugares por onde passamos. Mas se eu dissesse que o conjunto dessas afirmações justificasse minha relação com a corrida, não seria verdade.
Corri em praticamente todos os lugares por onde estive durante esses últimos 19 anos. Ao longo do tempo, a corrida foi se transformando em uma espécie de meditação. Quase todas as principais decisões que tomei nesse tempo, as ideias que tive, os projetos, os planos, os textos que escrevi e inclusive alguns poemas foram gestados enquanto eu corria.
Eu corro por nada e isso é o melhor.
Ana Laura Prates é dona de casa e mãe, psicanalista, escritora e editora. É autora, dentre outros de “Feminilidade e experiência psicanalítica” e “Da fantasia de infância ao infantil na fantasia” (Larvatus Prodeo Editora). Doutora pela USP, Pós-Doutora pela UERJ e Pesquisadora da UNICAMP. É membro da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano e do coletivo Psicanalistas Unidos pela Democracia (PUD)
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