Ana Laura Prates
Ana Laura Prates é graduada em Psicologia pela USP (1989), mestre em Psicologia Clínica pela USP (1996), doutora em Psicologia Clínica pela USP (2006) e possui pós-doutorado em Psicanálise pela UERJ (2012).
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Carta aberta de agradecimento ao Emicida, por Ana Laura Prates

Leandro querido, estou com essa carta na cabeça, pronta pra ir pro papel há muitos meses. Mas nesta semana finalmente estaremos juntos!

Carta aberta de agradecimento ao Emicida

por Ana Laura Prates

Querido Leandro (permita-me chamá-lo assim já que você, embora não saiba, é um nosso amigo de casa)
Saiba que te escrevo do fundo do meu coração, como quem manda cartas de amor. Olha, Leandro, não faço parte de seus fãs globais, longe disso, mas também me pergunto onde eu estava há 10 anos atrás. Onde eu estava quando você compôs “Hoje Cedo”? Onde eu estava, para não ter entendido que não se tratava de um hit, mas de um pedido de socorro? Porque, à época, não te estendi minha mão como você fez por mim e por meus filhos anos depois?

Foi no início da Pandemia. Eu já te conhecia através dos meus jovens filhos, o Gabriel e a Luiza, que em março de 2020 tinham respectivamente 21 e 19 anos. Somos uma família musical, o pai deles é músico profissional, e eu sou psicanalista, mas também cantora farsante. A gente ouve de tudo aqui em casa. Mas confesso que não havia mergulhado no seu trabalho com a devida atenção, até que, ouvi seu álbum “Amarelo” em 2020, já durante o confinamento. Sabe, Leandro, o Gabriel tem Síndrome de Down e precisou fazer uma cirurgia cardíaca ainda bebê. Diante da gravidade da Covid-19 e do descaso absoluto das autoridades naquele momento, tomamos a decisão de aderir a uma quarentena bastante radical. Ficamos nós três em isolamento absoluto em nosso apartamento, com uma possibilidade de passarmos parte dos dias em uma cabana na praia. Sinto-me muito privilegiada, enquanto mulher clara o suficiente para ser considerada branca em nosso país, e de classe média, exercendo uma profissão que pôde ser adaptada ao modo online, o que me permitiu continuar sustentando financeiramente a minha família durante os dois anos de isolamento social.

Ao mesmo tempo, essa experiência me colocou frente a frente com minhas vulnerabilidades e minha realidade de gênero de uma forma inédita e brutal. Foi preciso revisitar várias nuances de minha longa análise para, apesar dos privilégios, poder me reconhecer também como vítima do machismo estrutural do qual eu me considerava, de modo alienado e ingênuo, mais ou menos imune. Passei por um processo bastante intenso e doloroso, mas profundamente transformador do qual sua obra participou de modo decisivo.

Em maio de 2020, acompanhando a situação específica das mulheres e começando a me dar conta do que estava se passando comigo e com meus filhos, convidei minha amiga Margarete Pedroso e iniciamos um programa semanal que foi ao ar todos os sábados até dezembro de 2020. Ele se chamou “Mulheres na Pandemia” e a cada semana ouvíamos as mais diversas mulheres: artistas, ativistas, jornalistas, transexuais, egressas do sistema penitenciário, feministas históricas, indígenas, cientistas, trabalhadoras da saúde, educadoras, mães, etc. Quanto mais escutávamos essas mulheres, mais eu ia me aprofundando em meu processo de mutação, cuja trilha sonora eram as suas músicas. A gente descia para o litoral, naquele mundo em decomposição, ao som de “Cananéia, Iguape e Ilha Comprida” e eu corria chorando ao pôr-do-sol apocalíptico e distópico naquela praia deserta te ouvindo sem parar e me perguntando se é verdade que a vida sempre vence. Preciso te contar que acho “A Ordem Natural das Coisas” uma das canções mais comoventes de todos os tempos.

Como toda boa amizade, a nossa também começou com uma pequena treta. Te conto: Eu não tenho muito interesse nem muito tempo para assistir programas de televisão. Assim, embora já tivesse te escutado no “Papo de segunda” do GNT uma vez ou outra, não é um programa que eu acompanhe regularmente. De qualquer forma, o que conhecia de você já era suficiente para saber de suas posições políticas o que me fez estranhar um pouco sua posição contrária às manifestações antifascistas convocadas por algumas torcidas de futebol no final de maio de 2020. A posição absolutamente absurda do governo e do Ministério da saúde não seriam suficientes para justificar aqueles atos? Em 06/06/2020 nosso programa recebeu as jovens Amanda Capel e Julia Maia, participantes da organização dos atos e me lembro de ter falado que não concordava com sua posição. Hoje fico me perguntando qual era minha autoridade para defender um ato no qual eu não colocaria meu corpo em jogo, como sempre fiz e continuo fazendo em outras ocasiões.

O marco mais radical que estreitou o elo de nossa relação com você, entretanto, foi o lançamento do filme “É tudo pra ontem”. Assistimos várias vezes, com lágrimas nos olhos, meus filhos e eu, ainda completamente confinados. Foi uma aula de antirracismo e o efeito em mim só foi comparável a quando assisti Jungle Fever, o filme de 1991, de Spike Lee. Lembro que saí do cinema aos prantos, completamente mexida, sobretudo com aquela maravilhosa cena improvisada com as atrizes/personagens debatendo o que hoje sei que se chama colorismo. Foi naquela sala de cinema que me dei conta de que eu era fruto do que atualmente chamamos de branqueamento. É evidente que do aeroporto pra fora eu não sou branca, mas também não sou preta retinta. O traço mais forte de minha negritude está nos meus cabelos, mas no Brasil não posso dizer que eu seja uma mulher racializada; ao contrário, sempre gozei dos privilégios da branquitude. Esse ano, na entrevista do censo, respondi sem pestanejar: parda! – essa cor que parece só existir no Brasil.

Em janeiro de 2021, sem vacina e apesar de todos os nossos esforços, em uma única exceção que abrimos para encontrarmos grandes amigos igualmente confinados, fomos contaminados e passamos pelos piores dias de nossas vidas. As fichas que faltavam cair, caíram e a partir de então “tudo tudo tudo que nóis tem é nóis” virou nosso mantra! Voltamos ao nosso confinamento até estarmos todos vacinados, tempo suficiente para surgir “Amarelo ao Vivo”, o filme. Foi em julho, estávamos novamente os três isolados, dessa vez na montanha. Nos sentamos no tapete, acendemos o fogo e assistimos, novamente aos prantos. E outra vez, e outra, e outra… Ficamos apaixonados pelos músicos e convidados, não dava para acreditar que podia ser ainda mais lindo que o álbum no estúdio.

Desde então confesso que não paramos mais de ouvir “Amarelo ao Vivo” até o Natal de 2021. Ainda ouvimos muito, até hoje, principalmente quando vamos pro nosso refúgio. Um dia, estava fazendo almoço com meu filho, te ouvindo como sempre, e ele me perguntou: “Mãe, está de noite?”. Respondi: “Claro que não, Gabi, não está vendo que está de dia?”. Passados 5 minutos, perguntou de novo: “Tá de noite, mãe?”. Fiquei preocupada! “Que é isso, Gabi?! A gente nem almoçou ainda… tá tudo bem?”. Daí ele me falou: “Então porque o Emicida falou ‘boa noite Teatro Municipal’?”. Eu respirei aliviada, o abracei e entendi que você havia entrado na nossa casa e nos levado para aquela noite no Teatro Municipal, nos despertando, protegendo e acalentando. Passamos meses naquela noite no Teatro Municipal. Lá ficamos abrigados em suas palavras e canções, com as quais posso me acostumar facinho.

Ainda antes de me despedir, preciso te agradecer também por ter revivido o mestre Belchior na canção AmarElo. Essa a gente vai te dever por muito tempo, afinal, naqueles anos eu morri, mas nesse ano eu não morro! E, também, pelo álbum incrível da musa absoluta, a querida Alaíde Costa, que você produziu com Marcos Preto, fazendo uma reparação histórica mais do que necessária.

Leandro querido, estou com essa carta na cabeça, pronta pra ir pro papel há muitos meses. Mas nesta semana finalmente estaremos juntos! Eu e meus filhos vamos assistir ao show que nos curou tantas vezes durante esses anos terríveis e tristes nos quais assistimos o genocídio ocorrendo sob nossas vistas impotentes. A arte sempre salva! A arte sempre vence! Assim, graças a você, me permito falar não às minhas cicatrizes e não deixar que elas me definam. Também preciso te dizer que você cumpre lindamente sua missão de nos devolver nossa alma! Como te disse, também sou corredora, e quero te dizer que se alguns gostam que a gente corra com a fratura exposta, vamos nos ver no pódio mesmo assim. E se a barra é pesada, a certeza é voltar tipo Pantera Negra. Afinal, sabemos que a liberdade não é permanente. Quando desanimo, lembro de você e falo pra mim mesma: Levanta e anda! E que tudo isso que a gente passou, com nossos privilégios e fragilidades seja o abre alas do verão – como tão bem interpretou a nossa querida Gal.

Olha, quero te falar ainda que você tem razão: quem tem um amigo tem tudo. E que um dia ainda vou te dar um abraço e te agradecer pessoalmente (afinal, o primeiro touchscreen foi de uma pessoa – como você bem disse com o Erasmo) e que da próxima vez que você precisar pedir socorro, esteja certo de que meus filhos e eu estaremos aqui pra te estender a mão. Afinal, aprendi com você que amor é atitude muito mais que sentimento.

Com gratidão, carinho e admiração,
Ana Laura

Ana Laura Prates é dona de casa, psicanalista, escritora, editora e ativista. Membro do Campo Lacaniano e Pesquisadora da UNICAMP.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected].

Ana Laura Prates

Ana Laura Prates é graduada em Psicologia pela USP (1989), mestre em Psicologia Clínica pela USP (1996), doutora em Psicologia Clínica pela USP (2006) e possui pós-doutorado em Psicanálise pela UERJ (2012).

6 Comentários

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  1. Belíssima carta, que sai de mãos e corações de muitos brasileiros. Sempre gostei e ouvi Emicida. E, como admiro demais sua mãe (fortaleza e esteio da família), e tenho idade pra ser sua mãe também, agradeço vê-lo crescendo, lendo, se informando, sendo flecha disparada a alvos tão importantes para quem se inspira nele. Lindo Emicida e linda carta essa sua (nossa) a ele. Grande abraço.

  2. Emicida, menos que uma janela é uma fresta por onde os privilegiados podem (eventualmente) ver como é difícil a vida “dos outros” (ver outrofobia-Alex Castro) È uma fresta larga suficiente para dar visibilidade aos oprimidos e esperança para que não desistam de imaginar o sucesso e nem deixem de lutar por sua sobrevivência miserável. Fresta, por outro lado, tão estreita que poucos privilegiados se interessarem espiar através dela. ( ver “Jornada do Privilégio” )

  3. Ana Laura,
    Li chorando e disse para minha mulher ler, ela chorou também. Que carta maravilhosa, uma linda declaração de amor. Sobre Emicida, esse NEGRO, que resolveu PROPAGAR o AMOR em tempos escrotos, BEM FEITO, agora tem GENTE que te AMAMOS.

  4. Não sei escrever tão bem, e vejo que não foi 0a única que chorou. Mas te digo que entubada por 14 dias, via mortos, e só me agarrava em :
    ” Então levanta e anda”. Depois do coma cá estou. Obrigada Emicida. Não estou totalmente recuperada; mas esse ano eu não morro. Tomara.

  5. Não sei escrever tão bem, e vejo que não fui a única que chorou. Mas te digo que entubada por 14 dias, via mortos, e só me agarrava em :
    ” Então levanta e anda”. Depois do coma cá estou. Obrigada Emicida. Não estou totalmente recuperada; mas esse ano eu não morro. Tomara.

  6. Que carta maravilhosa.Conheci Emicida há poucos anos tempo, mas tenho por ele grande admiração e respeito,pelo ser humano e pelo artista. Parabéns Ana.

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