Ana Laura Prates
Ana Laura Prates é graduada em Psicologia pela USP (1989), mestre em Psicologia Clínica pela USP (1996), doutora em Psicologia Clínica pela USP (2006) e possui pós-doutorado em Psicanálise pela UERJ (2012).
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Não quero ficar perto de você, por Ana Laura Prates

Ainda será preciso realizar uma análise profunda sobre nossos erros: como pudemos eleger um homem como Jair Bolsonaro Presidente da República?

Reprodução vídeo TV Globo

Não quero ficar perto de você

por Ana Laura Prates

Então chegamos na véspera daquela que será a mais importante eleição para Presidente da história do Brasil, pelo menos na chamada Nova República. Nunca antes na história deste país estivemos tão concretamente ameaçados pela instalação e legitimação de um estado sustentado pelo que Mbembe chamou de necropolítica, ou seja, um estado com “licença pra matar” sob uma falsa narrativa de ordem e segurança.

É certo que o Brasil sempre foi um país violento e injusto para grande parte de sua população. Como diz o belo samba enredo da Mangueira “A história que a história não conta”: “Desde 1500 foi mais invasão do que descobrimento. Tem sangue retinto pisado atrás do herói emoldurado”. O genocídio dos povos originários, os negros escravizados, os imigrantes e operários, as crianças, as mulheres, a população lgbtqia+, as pessoas com deficiências e os que sofrem de transtornos mentais. São muitos corpos e muitas vidas vivendo como exilados, durante séculos, em seu próprio país. A história evolui lentamente para quem tem pressa, para quem é alvo e para quem tem fome. Mesmo assim, em seu ritmo cruelmente lento, alguns avanços ocorreram, alguns marcos civilizatórios foram conquistados: demarcação de terras indígenas, reforma agrária, cotas para pessoas racializadas, Estatuto da criança e do adolescente, Lei Maria da Penha, medidas de inclusão social e redistribuição de renda, algum cuidado com a memória e com a escrita de uma história que inclua os excluídos. Coisas básicas que, aliás, estão previstas na Constituição de 1988.

Ao mesmo tempo, ainda será preciso realizar uma análise profunda sobre nossos erros: como pudemos eleger um homem como Jair Bolsonaro Presidente da República? Como psicanalista, trato esse fenômeno como um sintoma e, como tal, será preciso interpretá-lo. Há na eleição de Jair Bolsonaro em 2018 uma curiosa inversão: a elite política e econômica do país, incluindo a mídia hegemônica, considerou que poderia manipular os mafiosos (a milícia) em seu favor, desconsiderando que, historicamente, são os mafiosos que manipulam os políticos. Acharam que Bolsonaro seria apenas uma espécie de bobo da corte e que, portanto, as atrocidades que ele sempre disse não deveriam ser consideradas: era tudo da boca pra fora. Ledo engano! Os números da Pandemia provaram que a política de morte foi de fato o carro chefe deste governo. Tenho discordado daqueles que consideram Bolsonaro burro ou psiquicamente frágil. Ao contrário, eu o considero extremamente inteligente e sagaz. Seu cinismo é racional e instrumental. Bolsonaro está articulado a uma rede internacional com objetivos bastante definidos e métodos elaborados, dentre eles o que mais se destaca é a manipulação do discurso e a produção de narrativas falsas. Trata-se, nitidamente, de um projeto perigosíssimo de tomada de poder no “admirável (e distópico) mundo novo”. Se ainda houver planeta Terra até lá, porque a necropolítica também é inimiga do meio ambiente e da segurança alimentar.

Para além das fábricas de fake News tão comentadas e analisadas, os últimos debates têm sido a prova da gravidade do que está em jogo nesse projeto macabro.  A angústia provocada no expectador, e até mesmo nos jornalistas, atesta a montagem perversa encenada por Jair Bolsonaro e seus assessores. Para que ocorra um debate, é preciso que haja diálogo. Como num jogo de tabuleiro, é preciso que haja dois jogadores dispostos a aceitar regras mínimas para que a disputa possa ocorrer, no caso, uma disputa de narrativas. Cada um fala a partir de um lugar, agencia certa aparência, calculando o efeito de sua fala sobre o adversário, mas também sobre o expectador/eleitor. Frases de efeito, slogans, táticas como ironia, metáforas fáceis, ocultamentos, ênfases, silêncios, tom de voz, uso do tempo, fazem parte do jogo.   Há formatos de debates mais engessados que tornam o jogo burocrático e aborrecido e outros mais abertos como os mais recentes, que supostamente permitem que algo da retórica possa se manifestar – como realmente observamos nos debates entre candidatos aos governos estaduais.

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O que assistimos, atordoados, nos dois últimos debates entre Bolsonaro e Lula foi algo de outra ordem, o que inviabiliza um verdadeiro debate, tornando-o impossível. Não se trata apenas de repetições exaustivas, manipulação de números, ofensas e descalabros com os quais, infelizmente, já estamos acostumados pois fomos submetidos a esse método durante os quatro anos de governo. Na cena do debate com apenas um interlocutor, entretanto, esse método trona-se uma verdadeira tortura, pois cria um curto-circuito no qual as palavras perdem seu valor. O exemplo mais notável é a acusação que Bolsonaro faz a Lula como um disco furado: “Mentiroso!” O que restaria a Lula, a não ser responder: “Mentiroso é você!” Ocorre que em nível de enunciado, as afirmações de equivalem e, portanto, retorna ao emissor: “Não, mentiroso é você!” Ora, a tática é justamente essa: criar uma ilusão de algo especular, como se um fosse o reflexo do outro e eles se equivalessem, reforçando a leitura imaginária que beneficia Bolsonaro: “dois lados”, “polarização”, “tudo igual”, etc.

Se a política é o nome desse jogo, Bolsonaro com seu método joga fora as peças e o tabuleiro junto. Não aceita as regras porque não lhe interessa respeitá-las. Desmente o tempo todo, sistematicamente. É como se nossa sociedade estivesse vivendo um gaslighting coletivo, um tipo de assédio no qual o abusador diz que não está acontecendo o que a vítima está vendo ou ouvindo, fazendo-a duvidar de seu juízo ou de sua sanidade mental. Ainda mais grave do que isso, Bolsonaro ataca a próprio campo da fala e da linguagem e sua relação com a verdade (ainda que relativa). A linguagem, justamente o que nos humaniza. Em sua boca, a palavra é desgastada e degradada até um ponto em que, além de perder seu poder de comunicação, perde também – e isso é bem mais grave – seu valor de ato, rompendo o laço social que sustenta qualquer discurso.

No debate da Bandeirantes, Bolsonaro chegou ao cúmulo de tocar no corpo de Lula. Ontem, no debate da Globo, ele novamente tentou desestabilizar Lula, chamando-o para perto e dizendo: “Fica aqui rapaz!” Lula deu as costas e respondeu: “Não quero ficar perto de você!” Essa resposta foi um ato por que rompeu a falsa equivalência entre ambos, e como ato, certamente terá seus efeitos. Não há dois candidatos. Não são dois lados. Que todos nós, amanhã, quanto digitarmos 13 e confirmarmos, em nome da democracia e da rede de solidariedade que construímos nesta companha; em nome do verdadeiro diálogo, em nome da dignidade e da força da palavra que nos torna humanos. Que amanhã, ao confirmarmos nosso desejo decidido por um recomeço ao depositarmos nossos votos na urna eletrônica, possamos fazer eco à fala de Lula: “Bolsonaro, não quero ficar perto de você”!

Ana Laura Prates é dona de casa, psicanalista, escritora, editora e ativista. Membro do Campo Lacaniano e Pesquisadora da UNICAMP.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected].

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Ana Laura Prates é graduada em Psicologia pela USP (1989), mestre em Psicologia Clínica pela USP (1996), doutora em Psicologia Clínica pela USP (2006) e possui pós-doutorado em Psicanálise pela UERJ (2012).

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