O técnico e o incapaz, por Ana Laura Prates

Há tempos tenho argumentado que racismo e capacitismo têm a mesma origem comum: o supremacismo branco e sua concepção de homem capaz e normal

O técnico e o incapaz

por Ana Laura Prates

Chegamos, meu filho Gabriel de 22 anos e eu em uma das unidades do laboratório Delboni onde havíamos agendado alguns exames para ele. Plena quinta-feira no meio da manhã, afinal é janeiro e estamos de férias. Não temos pressa, mas estamos apreensivos com o aumento de casos de COVID-19. Meu filho tem Síndrome de Down, e essa informação seria completamente desnecessária, não fossem as ocorrências que vou contar a seguir.

Na entrada do laboratório, somos recebidos por uma moça simpática, que mede nossa temperatura, aperta o botão “preferencial” e nos entrega a senha, enquanto fala com tom de voz infantilizado: Oooooiiii! Como você chaaaaamaaa? Quantos anos você teeeem, Gabriel? Noooossaaa, já está moço, hein?! Gabriel responde baixo e de forma lacônica – como sempre ocorre em ocasiões nas quais se sente subestimado – enquanto eu contenho minha irritação buscando uma resposta adequada e compreensiva, pensando: “antes isso…pelo menos se dirigiu diretamente a ele”. Parece que estava prevendo o que viria depois. Nos sentamos em um canto, aguardando nosso número “preferencial” ser chamado. Esperamos muito tempo e nada. Eu já estava quase indo perguntar o que estava acontecendo quando nosso número apareceu no painel: “Desculpem a demora – disse outra moça simpática. Gabriel mostrou os documentos, e fomos encaminhados para o primeiro andar onde ele seria chamado pelo nome. Com uma hora de atraso entramos na sala do primeiro médico. Havíamos ido naquela unidade especialmente para encontrá-lo: façam o ecocardiograma com o Cacá! – havia nos recomentado a Dra. Lúcia, cardiologista do Gabi. Ele nos recebeu pedindo mil desculpas pelo atraso. Contamos que estávamos lá para encontrá-lo. O humor estava ótimo, apesar do atraso. Não tínhamos compromisso e o Gabi logo começou uma prosa prolixa, principalmente depois de descobrir que o Cacá é tio de uma amiga sua, também com Síndrome de Down. Falou da namorada, interessou-se pelas cores do exame, perguntou como estava o sangue dentro do coração. Estava tudo bem com o coração – em todos os sentidos, e, como sempre, saímos aliviados com a notícia e voltamos para a sala de espera.

A quarta moça simpática veio nos perguntar a razão do próximo exame. Demorou um pouco, e finalmente nos chamou. Já estávamos com uma hora e meia de atraso, mas o Cacá disse que estava tudo bem e não faz mal atrasar um pouco o almoço nas férias. Entramos na sala, a moça simpática fechou a porta e pediu para o Gabriel tirar a bermuda, afinal seria um ultrassom das veias das pernas. Ele ficou um pouco constrangido, mas argumentei que ali era um lugar de exame, e que na frente do médico e da enfermeira ou auxiliar ele poderia ficar de cueca. Ele concordou, tirou a bermuda e a moça o orientou a subir em uma banqueta, posicionando-o para o exame. Eis que intempestivamente, sem bater na porta, entrou um rapaz de jaleco branco que supus ser o médico, seguido por outro rapaz de uniforme bege. Eu estava sentada perto da porta. O suposto médico não nos cumprimentou, saltou minhas pernas, contornou o Gabriel sem dirigir-se a ele, posicionou-se diante da máquina, dirigindo-se ao que entendi ser um técnico. Falando alto, mostrava para o outro um pino ou botão mal encaixado. A moça então veio para o meu lado enquanto o técnico também se aproximou da máquina, dialogando com o médico. Em plena Pandemia de Ômicron, nesse momento éramos 5 pessoas fechadas em um cubículo de 2X2 sem janela. Eu dirigi-me a ela, perguntando em voz baixa: “Isso é um procedimento adequado?”. Claramente constrangida, ela interveio na conversa que já durava alguns minutos, pedindo para o técnico sair. Assim que ficamos na sala os 3 – Gabriel, o rapaz que confirmei ser o médico e eu – ele disse: “bom, vamos começar o exame”. Então eu saí do meu estado de estarrecimento, tomei a palavra e estabelecemos o seguinte diálogo: Eu: “Com licença, qual o seu nome?” Ele: “Fulano” – sem dizer o sobrenome. Eu: “Boa tarde Fulano, eu sou Ana Laura Prates Pacheco, mãe do Gabriel. Você acha adequado o que acabou de acontecer aqui? Esse rapaz entrar na sala de exame com o paciente posicionado, em trajes íntimos?” Ele: “Ah é que senão ele ia embora…” Eu: “Veja, mas isso não é correto, não pode entrar ninguém na sala de exame, principalmente expondo o paciente dessa forma”. Ele: “Mas ele é homem”. Eu: “Não é uma questão de gênero!” Ele: “Qual é o problema então, ele não é da limpeza, é da manutenção”. (Sim, caros leitores, ele disse isso e demorei alguns segundos para entender seu raciocínio…). Eu: “Não é uma questão de gênero nem da função do profissional. É uma questão ética, que diz respeito à relação de confiança entre médico e paciente. Você não percebe o quanto foi desrespeitoso com o Gabriel? Ele: “Ok, não vou discutir. Vamos começar o exame”

Respirei fundo e decidi que ficaria calada e depois faria uma reclamação formal ao laboratório. Mas o Gabriel não deixou. Virou-se para mim e perguntou: “Mãe, você está bem? O que você falou?”. Respondi: “Aconteceu uma coisa errada aqui, Gabi. Aquele moço que conserta a máquina não podia ter entrado aqui com você só de cueca. Só o médico pode entrar aqui. Mas a gente conversa melhor sobre isso depois”. Gabi: “Ele não podia entrar, né?!” “É claro que não. E eu te ensinei que não pode tirar a roupa na frente de desconhecidos, só médico; mas depois a gente conversa”. Dr. Fulano: “Olha se a senhora não parar de falar eu não vou mais fazer o exame”. Eu: “Pois não, vou me retirar da sala”. Levantei-me ele disse: “Não posso fazer o exame sem a senhora aqui porque ELE É INCAPAZ!”. Sim, ele disse isso na frente do Gabriel – foi o que respondi à pergunta da última moça simpática dessa aventura, que além de simpática estava perplexa enquanto eu relatava as ocorrências quando efetuei uma reclamação formal à diretoria médica do laboratório. Conforme consta na ocorrência aberta, o Gabriel é um cidadão com seus direitos e deveres. Ele cumpre com seus deveres, é responsável, vota, é honesto e educado. Como cada um de nós, ele tem habilidades e capacidades, e obviamente lhe faltam muitas outras. A mim, por exemplo, me falta capacidade e habilidade para realizar um exame de Ultrassom como o Dr. Fulano e tocar bateria como o Gabriel. Mas provavelmente eu canto melhor do que ambos e tenho uma escuta clínica afinada em muitos anos de divã que certamente eles não têm, embora o Gabriel ganhe de longe em sua capacidade e habilidade para humor, simpatia e empatia. Eu poderia ter deixado o Gabriel na porta do Delboni e ele seria perfeitamente capaz de realizar sozinho todos os passos que fizemos juntos até chegarmos na sala de exame. Aliás, se ele tivesse alguma dificuldade, teria direito a ser ajudado por alguém do laboratório, que precisa estar preparado para receber alguém analfabeto ou com deficiência visual, ou com deficiência auditiva, ou com deficiência física ou com deficiência intelectual e qualquer outra e oferecer o suporte necessário. Na entrada, quando nossa senha foi identificada como “preferencial” já havíamos sido identificados pelo sistema, embora em nenhum momento tenhamos tido qualquer preferência de atendimento, como aliás prevê a lei.

O Dr. Fulano, entretanto, ao partir da premissa de que o Gabriel é INCAPAZ, o desumanizou. Porque ele reduziu o SER de um ser humano a sua suposta incapacidade generalizada. O Dr. Fulano não conhece o Gabriel e não tem condições de julgar suas capacidades e incapacidades específicas, assim com suas habilidades ou desabilidades particulares; mas partindo de sua visão preconceituosa – que aliás revelou-se extensiva a gênero e classe social – ele objetificou uma pessoa com deficiência. Trata-se de um objeto num canto da sala, assim como os racistas nomearam as mesinhas do lado da cama: criado mudo! Pode-se entrar na sala sem olhar na cara, sem lhe dirigir a palavra, falar qualquer coisa na sua frente, sem se importar inclusive com seu corpo, nu ou não. Ele é mudo, desprovido de linguagem, INCAPAZ. Aliás, outa capacidade impressionante do Gabriel é a memória. Voltando para casa no carro, ele me falou: “É, mãe, o Dr. Fulano me chamou de incapaz, tipo burro, né?! Igual o Zezinho e o Luizinho na escola, que faziam bulling comigo e me chamavam de burro. Eu ficava muito triste. Eu tenho olhinho puxado, Síndrome de Down, mas não sou burro não”!

Há tempos tenho argumentado que racismo e capacitismo têm a mesma origem comum: o supremacismo branco e sua concepção de homem capaz e normal, como se fosse esse um padrão típico, apenas porque esse é o padrão que tem mais poder em nossa sociedade. Eu, entretanto, questionava a tradução do termo ABLEISM do inglês para CAPACITISMO. A convenção sobre os direitos das pessoas com deficiência da ONU em seu artigo 2 o define como “qualquer diferenciação, exclusão ou restrição baseada em deficiência, com o propósito ou efeito de impedir ou impossibilitar o desfrute ou o exercício em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, de todos os direitos humanos e liberdade fundamentais nos âmbitos político, econômico social, cultural, civil ou qualquer outro. Abrange todas as formas de discriminação inclusive a recusa de adaptação razoável”. O Dr. Fulano me convenceu do contrário. O temo é perfeito. O que causa espanto, indignação e preocupação, entretanto, é que essa desumanização tenha sido praticada por um médico, e um médico jovem. Que tipo de formação humana, crítica e ética estão recebendo nas Universidades? Repito: não questiono sua capacidade técnica de realizar ultrassom – a qual, inclusive, não tenho condições de avaliar. Mas um médico não deveria ser um técnico de manutenção do corpo humano tomado como máquina, porque não somos apenas máquinas que podem quebrar! Não somos mudos e nossa voz segue ecoando em sons e ultrassons!

Obs: Estou aguardando um retorno do laboratório Delboni em relação à reclamação formal aberta no dia 13/01/2022. Pela mesma razão preferi nesse momento não revelar o nome, sobrenome e CRM do Dr. Fulano. Caso não haja resposta e providências, serão tomadas outras medidas legais cabíveis.

Redação

6 Comentários

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  1. Relato perfeito. Tomar posição é fundamental em situações assim. Infelizmente para maior parcela da nossa sociedade o médico é uma entidade superior à qual devemos nos submeter. É como o policial que não pode ser contestado.

  2. A maior INCAPACIDADE aqui é a do Dr. Fulano que, supostamente legitimado por uma IES e um órgão regulador para exercer suas funções na sociedade, não é CAPAZ de exercer a função primordial que lhe confere a humanidade. Assim posto, não lhe confiro a capacidade de ultrassonografar nem um ser vjvo, humano ou não… É desolador a situação de um curso de formação para um profissional que cuida de seres humanos doentes (é esse o objeto da medicina) precisar de aulas de humanidade, o que seria um prerrogativa essencial que sustenta a própria escolha de cuidar de seres humanos. Conheço o Gabi e acredito que ele seria um excelente professor desse ser infeliz.

  3. Ótimo texto para reflexão e debate!
    Apenas um porém: porque exclui pessoas com deficiência psicossocial, tão merecedoras de respeito e contempladas com amparo pela Lei Brasileira de Inclusão quanto as demais PcD?

  4. Que tipo de formação humana, crítica e ética estão recebendo nas Universidades?
    Ana Laura, infelizmente a resposta é: “…a pior possível, mas, que obedeça ao comando e controle da indústria farmacêutica e de equipamentos diagnósticos” culjos lucros estão acima da ética, da ciência e da boa prática médica. Falo com muita vergonha de chamar de “colega” a vários recém formados atualmente, verdadeiros robôs pré-programados.

  5. Ana, estou estarrecida com o seu relato da humilhação que fizeram o Gabi passar. Ainda bem ele estava com você que não deixou passar uma agressão tão desrespeitosa a ele. Gostei muito da ligação que você fez entre o racismo e o capacitismo, são ambas discriminações por um traço e suposição de que existe um “normal” e um “diferente”. E ai vemos que tem pessoas cegas ao fato de que somos todos diferentes uns dos outros, com habilidades e capacidades diferentes como você bem descreveu em seu texto. Continuo perplexa e te parabenizo pela atitude.

  6. Atitudes como do Dr. Fulano são frequentes, raras são atitudes como a de Ana Laura. Pois o ” normal” infelizmente é a incapacidade do médico de ver o SER dos seres humanos de quem trata e a passividade das pessoas que são maltratadas e humilhadas. Não é normal essa arrogância, preconceito e sentimento de superioridade de médicos. Esse Dr. Fulano é que merece o termo de INCAPAZ.
    A prática da humilhação faz parte da nossa (falta) de cultura sobre a desigualdade social e a igualdade de direitos. Assim como a prática da passividade diante do s gestos cotidianos das humilhações que recebemos.
    Que mais Anas Lauras venham para denunciar o capacitismo e incapacidade de seres humanos exercerem sua humanidade.

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