Maira Vasconcelos
Maíra Mateus de Vasconcelos - jornalista, de Belo Horizonte, mora há anos em Buenos Aires. Publica matérias e artigos sobre política argentina no Jornal GGN, cobriu algumas eleições presidenciais na América Latina. Também escreve crônicas para o GGN. Tem uma plaqueta e dois livros de poesia publicados, sendo o último “Algumas ideias para filmes de terror” (editora 7Letras, 2022).
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Noveleta (parte III), por Maíra Vasconcelos

Caminho com a intenção. Poderia juntar-me aos espaços desta varanda, averiguar se tenho coragem de olhar a cidade. Queria hoje poder transpassar-me a, estar em outra atmosfera. E isso talvez seja possível porque tenho a ousadia das imaginações pululantes.  Não escutar a cantoria de fora é agora um desafio grande – falo basicamente dos ruídos grosseiros da cidade. Tendo a esta realidade negar. Acabo de chegar e não conhecia esses assombros, venho saída de vidas das montanhas, imaginada constantemente em seus altiplanos. Estou assustada com carros e ônibus como se fossem eles sequências de ataques futurísticos. E se são o futuro, logo esses artefatos também são o desconhecido, assim tem-se um homem agitado como frente à possibilidade do fogo pela primeira vez. Assim estou: a cidade é a minha primeira vez. Até o dia de hoje, em que cheguei lisa e encolhida a esta varanda, apenas reconhecia o verde das plantas e aquelas bolas redondas amareladas das pequenas margaridas. Tenho saudade da pelugem das minhas margaridas, comprava um ramo a cada quinze dias, elas combinavam com as montanhas de fundo. Agora, passei a ter uma varanda sem montanha, sou outra mulher e com outro nome. Não sei como me chamava quando residia em terras mais verdes, apenas tenho comigo a memória das paisagens, mudei de dias e ganhei um novo caso cotidiano. Tenho outros propósitos, mas ainda é muito cedo para sabê-los. São sete horas da manhã, deste primeiro cumprimento à varanda bem em frente à cidade, e junto aos poucos dias vividos em mim. Sou agora curta e pouco curtida. Estou deixando de pensar, desaprendi escrever e também calcular. Estou crua. Sinto ser uma espécie jaculando, e sorridente estou em meio a uma estrada que se inicia, com pernas ainda muito finas porque percorrido tenho apenas esses poucos dias. Sou tão tão nova(!). E tão nova e enluvada que já estou cansada por haver sido atirada com pele tão fina ao cinza desta cidade. Mas já vivi antes, e supostamente daquela vida anterior trago comigo um espírito forte. Dizem-me, aguentarei fina e novinha esta nascedoura peleja em plena des-formosa cidade.

Agora, prepararei um forte café, melhor que o de ontem, porque estou superando objetivos concretos. Ser arraigada não me tem serventia. Porque depois de alguns dias, quando aqui abri os olhos, em minhas mãos pulsava uma vida já assim depositada e sem escolha. Tento convencer-me de que Deus quis assim, e se Ele o fez é porque não havia outro caminho. Este é o meu, aquele é o seu, e o que vivi no passado foi o caminho de outra mulher que não é a que sou hoje, chamando-me Ângela, e confiando em Deus.

Atravesso estes poucos dias de vida. Devo pisar o mínimo que falta para chegar à varanda(?), estou vagando entre dentro e fora, olho o arredor. Estou zonza. E tem-se como barreira intransponível um vidro de janela fechada. Estou encolhida, estou sendo um processo de ovo se quebrando, a casca é a cidade, eu sou a vida que pula de dentro. Porque eu precisarei nascer de novo(?), pergunto enquanto escuto os ruídos sem agora poder distinguir, se são mesmo a surda sinfonia da cidade ou as cascas brancas despegando-se de minha pele. Abro-me porque não há escolha, fui fatalmente morta naquela outra vida que não a tenho mais e com ela perdi um nome grande. Esse outro nome que um dia o tive, pode ter sido um nome bonito, mas resta-me agora apenas a melancolia no prato. E ainda não comi, tomo o primeiro café desta nova possibilidade de dias. Sou outra existência sem lembrar-me do corpo que possuía naquele antes. E deste corpo atual só então saberei quando volte a mastigar. Transformando-me. E esta renovação é a face oculta daqueles antigos pedidos de sonhos. Deve ser esta a razão de aqui eu ser Ângela: no passado sonhei demais e quis tantos aos meus sonhos que agora estou apenas a cumprir este processo, sendo preparada para vivê-los. Sou a nascente possibilidade dos sonhos de uma vida passada realizando-se. Precisei cair para poder estar definitivamente de pé. Estou reerguida(!), caminharei sem sonhos. Apenas à executar a própria vontade de viver.

Maira Vasconcelos

Maíra Mateus de Vasconcelos - jornalista, de Belo Horizonte, mora há anos em Buenos Aires. Publica matérias e artigos sobre política argentina no Jornal GGN, cobriu algumas eleições presidenciais na América Latina. Também escreve crônicas para o GGN. Tem uma plaqueta e dois livros de poesia publicados, sendo o último “Algumas ideias para filmes de terror” (editora 7Letras, 2022).

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