Maira Vasconcelos
Maíra Mateus de Vasconcelos - jornalista, de Belo Horizonte, mora há anos em Buenos Aires. Publica matérias e artigos sobre política argentina no Jornal GGN, cobriu algumas eleições presidenciais na América Latina. Também escreve crônicas para o GGN. Tem uma plaqueta e dois livros de poesia publicados, sendo o último “Algumas ideias para filmes de terror” (editora 7Letras, 2022).
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Noveleta (parte IV, Fim), por Maíra Vasconcelos

Não me restou nenhum sonho: sou a pura realidade acontecendo. Venho da autodestruição dos devaneios, por isso vivo. Os sonhos ficaram para trás, deixando-me adiante. Hoje sou feita de sua força retida, tenho seu viço e seus escombros em minha pele, nela guardo a realização de todos os sonhos junto comigo. Sonhos que demoraram enorme tempo a serem construídos, ao custo disso que foi toda aquela minha vida passada. E a tardança deste tempo de uma grande-vida é tão aprumada que todos os dias eu quis o sonhar. Sonhando adiava o acontecimento concreto das coisas, e passavam-se os dias. Mas se os sonhos existem nesta realidade que sou hoje, foi morrendo que eles desgarraram-se de mim, e agora paridos chegam para ser presente. Sim. Desprezo o devaneio de um sonho porque já morri. Venho saída debaixo dos meus próprios destroços, minha voz pondera-se mais fina, e olho raios de sol com cuidado. Esses primeiros dias são apenas isso: reconstrução. Bebe-se, mas não se come, ainda. Estou abarrotada por olhar a irreconhecível cidade, e ela me enche. Tenho dificuldades e estou em fase lunar, mas aliviada de já não estar mais curvada, vou abrindo-me ainda que amuada, saindo do casco dos restos descascados. Como nascer de novo é palatável e indigesto(!). Ao vislumbrar-me, agora vestida de outro nome – Ângela, reafirmo – e em outro lugar, também sei estarei permanentemente de pé, e firme. As quedas foram acontecimentos daqueles antigos sonhares, mas já não necessito sonhar: caminho. Nesta cidade tudo é novidoso demais, sua amplidão é um susto, e meus olhos fazem fresta. Tenho tão poucos dias, desaprendi saber muito e tudo sobre o mundo, perdi a noção de, enquanto a cidade acavala-me. Tendo a esconder-me, balanço indecisa nesta nova vida, mas não quero ficar morrida e ter comigo aquele passado, devo ser mesmo Ângela, devo sair a dar passos não-sonhados. Quão difícil pode ser viver com os sonhos, e não pelos sonhos. Não com a possibilidade, mas com a certeza.

Eu-me-realizo!

Apenas porque utilizo o que chamam de: oportunidade. Tenho o oportunismo de agarrar-me a alguns dias e a um novo nome. E com aparentemente tão pouco viverei, tendo apenas dias, manhãs e noites, e uma denominação. Eu me denomino: Ângela, mulher de alguns dias. E não posso saber quantos dias terei, pois se para estar aqui, com varanda, cadeira simples e café, precisei desfazer-me de querer saber mais. Não quero. Tenho a imprecisão de poucos dias e nada comigo. Não sei com o quê se justifica meu estar(?), pergunto. Eis que então descubro: meu passado não deve realmente aprimorar-se. Eu sou presente pleno. E começo a querer ser Ângela, sem necessidades maiores, gostando de quebrar a casca do ovo e preparar-me um café bem quente. Tenho quadrados restritos aos que enfim posso pisar, a varanda adiante, a janela fechada; vou dignar-me a caminhar.

Tenho o corpo ainda mole, tudo é menos ágil e mais sonolento. Tenho o sonho saindo do meu corpo, aprumando-se querendo ser. E esta realidade é a coisa mais indecifrável com a qual me deparei. Estou numa cidade, vinda descarregada das montanhas do meu passado, também peço menos a Deus agora que sou Ângela, rezo menos e sou mais concentrada. Com ouvidos mais atentos e a boca mais firme, também experimentarei pernas mais largas e inconsequências menores. Deus está a entregar-me a justeza das coisas, por isso conversamos menos, Ele é mais correto comigo e eu já me revivi. Mas esta obra de vida não é minha, porque nunca escolhi morrer. E se tenho memória para saber que já morri, porque não sei quem foi que me matou(?). E nem ao menos posso sonhar e ver assim quem é que me deu a morte e também esta outra vida. Talvez eu seja Ângela para guardar a incompletude de ser. Tenho sempre outra dormida dentro em mim. 

Maira Vasconcelos

Maíra Mateus de Vasconcelos - jornalista, de Belo Horizonte, mora há anos em Buenos Aires. Publica matérias e artigos sobre política argentina no Jornal GGN, cobriu algumas eleições presidenciais na América Latina. Também escreve crônicas para o GGN. Tem uma plaqueta e dois livros de poesia publicados, sendo o último “Algumas ideias para filmes de terror” (editora 7Letras, 2022).

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