Sobre a potência do gesto e sua delicada relação com a observância do tempo certo, por Luiz Henrique Lima Faria

O correr da vida é mais veloz do que supomos. Não anuncia a hora certa de agir. Ao contrário, mal sussurra. E segue seu curso de forma serena

Arte na Rua – Chile

Sobre a potência do gesto e sua delicada relação com a observância do tempo certo

por Luiz Henrique Lima Faria

Ontem, reencontrei uma fotografia de quinze anos atrás. Estávamos ali, num churrasco improvisado em uma garagem de chão batido, cercados de fumaça, bebida além da conta para alguns, risos e carne toscamente preparada. Éramos todos professores da mesma instituição, gente que carregava trabalhos e provas a corrigir e que, mesmo exaurida, ainda se permitia rir com generosidade. Havia entre nós um sentimento de partilha e de pertencimento.

Guardei aquela foto com carinho, da mesma forma que guardei as lembranças daquelas pessoas. Mas, sem perceber, deixei que algumas se perdessem de mim. Houve oportunidades de reencontro, eu sei, mas foram adiadas. Faltava tempo. Hoje, distante daquela memória, percebo que a ausência maior era outra: a consciência de que certos reencontros não se podem adiar. Porque têm seu tempo certo. E, quando ele passa, pode não haver uma segunda chance.

Atualmente, todos mudaram de cidade. Alguns mudaram o rumo da vida. Um deles já não está mais entre nós e seus afetos agora habitam apenas a memória. A vida, silenciosa e contínua, não nos avisa quando é o último tempo. Não há alarde, nem sinal evidente. Ela simplesmente segue, muda os endereços e os caminhos possíveis. E nós, absorvidos demais com urgências desimportantes, acreditamos ingenuamente que tudo poderá ser retomado mais adiante, no nosso próprio tempo. Como se o tempo nos devesse favores.

Mas o tempo não deve nada a ninguém. Ele apenas cumpre seu propósito, indiferente às nossas vontades. E quem não aprende a respeitá-lo acaba por perder não só oportunidades, mas também a chance de viver plenamente os momentos que realmente importam. O correr da vida é mais veloz do que supomos. Não anuncia a hora certa de agir. Ao contrário, mal sussurra. E, se não escutamos, segue seu curso de forma serena, mas implacável.

Quando começamos a atinar para isso, percebemos que há um tempo certo para tudo. Porque o tempo certo não é aquele marcado no relógio ou indicado no calendário, ao sabor de nossas vontades, mas aquele que se revela na sintonia delicada e melindrosa entre a intencionalidade do desejo que move o gesto e a ocasião legítima que o comporta.

Seguindo por esse rumo, podemos intuir que o tempo obedece a uma lógica previsível e inflexível. Há um tempo certo para cada coisa, mesmo que nem sempre estejamos atentos para reconhecê-lo. E talvez grande parte da tragédia humana resida justamente aí: no desencontro crônico entre o gesto e a ocasião que o tornaria justo. E, fora do compasso do tempo certo, até o gesto mais preciso pode falhar miseravelmente em sua efetividade.

Há, por exemplo, aqueles que se desculpam tarde demais, quando a mágoa já se sedimentou e o estrago se tornou irreparável. O perdão não possui um prazo indefinido. Ele exige o instante oportuno, aquele em que ainda há espaço para o entendimento e abertura para o recomeço. Depois disso, o gesto se esvazia, perde a potência e torna impossível a reconstrução da confiança rompida. Porque até o perdão, quando buscado fora do tempo certo, corre o risco de soar menos como um acerto de contas e mais como um recurso retórico, desprovido de verdade.

Sob esse mesmo entendimento, elogios só têm valor quando feitos a tempo. Quando pronunciados tarde demais, perdem sua autenticidade. O gesto até pode parecer nobre, mas chega depois da hora de cumprir sua função. O elogio verdadeiro tem seu tempo certo: é quando ainda pode fazer diferença, quando alcança o outro como impulso, não como consolo. Fora desse momento, corre o risco de parecer culpa disfarçada de generosidade.

Da mesma forma, há reprimendas que só cumprem sua função quando ditas no tempo certo. Quando adiadas em demasia, perdem o valor do cuidado e se tornam punições estéreis, ressentidas, incapazes de edificar. Um pai que hesita em orientar enquanto há escuta, um líder que se cala diante do erro por conveniência, um amigo que silencia quando a verdade poderia resgatar. Todos, talvez, tenham agido movidos por boas intenções. Mas até a benevolência, quando fora do tempo certo, se converte em negligência. Muitas vezes, a linha entre o zelo e a omissão não está no gesto, mas no instante exato em que ele se realiza.

O tempo certo para agradecer, por sua vez, é um território de natureza delicada. A gratidão que chega tarde demais corre o risco de soar conveniente, como um gesto protocolar que tenta remendar o que já se perdeu. Quando se antecipa demais, pode parecer subserviência ou mesmo uma insegurança travestida de apreço. A fronteira entre o oportunismo e a verdadeira gratidão não está nas palavras em si, mas na sensibilidade de quem reconhece, com humildade e precisão, o instante legítimo de sua enunciação.

No extremo oposto da delicadeza da gratidão, encontra-se o gesto de permanecer no comando quando já não há propósito, apenas apego, ganância e vaidade. Os sinais do tempo são ignorados, os olhos se fecham para o desgaste e, por fim, insiste-se em manter o poder como se dele dependesse o próprio sentido de existir. O tempo das homenagens já passou, e os aplausos, antes sinceros, tornaram-se constrangidos. Agora é tarde para sair de cena com dignidade. Quando se perde o tempo certo da retirada, até uma trajetória honrosa pode terminar manchada pela obstinação de quem não soube partir com elegância.

Possivelmente, eu mesmo esteja agora à beira de me perder no tempo certo de encerrar estas reflexões. Viver, no fim das contas, é essa arte sutil e exigente de reconhecer o tempo certo de cada gesto. Por isso concluo: nem mesmo os intentos mais nobres bastam por si sós, se não vêm no momento preciso. Há uma dignidade silenciosa no tempo certo que nenhuma ação tardia consegue restaurar.

Talvez seja por isso que uma única fotografia possa resgatar tanto: porque nela está contido o instante exato em que tudo ainda era possível. Não há como recuperar aquele dia. É preciso compreender que a providência do reencontro deve acontecer no tempo certo. Ou então a ausência dessa destreza só se revela quando já for tarde demais.

P.S. – In memoriam ao saudoso colega, professor Marcílio Lieberenz Falleiros, que reconheceu em vida o valor do tempo certo e que, mesmo postumamente, pelas marcantes lembranças que deixou, ainda me adverte com afeto sobre os efeitos deletérios de meus anacronismos.

Luiz Henrique Lima Faria – Professor do Instituto Federal do Espírito Santo (IFES) e Editor-Chefe da Revista Interdisciplinar de Pesquisas Aplicadas (RINTERPAP).

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3 Comentários

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  1. Não rimarei a palavra sono com a incorrespondente palavra outono. E não equacionarei meus gestos, passados ou futuros, com a grande ilusão do tempo. O tempo, aqui de onde o podemos ver e sentir, é uma convenção mecânica, determinada pela distância (entre o sol e a terra) e o movimento (de um em torno do outro). Mas o afeto é uma viagem em linha reta (que, como se sabe, não existe), sem temporalidade perceptível. A fonte do poder do afeto está em nós, cujo corpo é sujeito à temporalidade, mas infenso a limites de início e fim. O amor que se sente por alguém pode durar trinta anos, e nunca chegar a realizar-se; nem por isso deixa de ser amor, e, frequentemente, só faz aumentar nesse tempo de não-realização, e pode chegar ao fim dos tempos ainda nessa condição, sem deixar de ser o que foi, e é. E esta é uma experiência pessoal, ainda em curso, cuja verdade posso afirmar, sem hesitação. E sinto que, quando a fonte cessar, por inutilidade biológica e fadiga orgânica (a morte), também o amor, que todos julgam eterno, cessará. Mas o que importa isso? Algo terá deixado de existir, ou simplesmente terá exaurido sua essência, admito; mas a cessação da existência, do corpo e do afeto, não fazem desaparecer do tempo e do espaço, pois nuncva estiveram lá, mas dentro de nós, vivas; pois a morte é, também, a cessação da consciência e do conhecimento. E se não sabemos, nem tomamos conhecimento, nada aconteceu. E não há espaço, aí, para arrependimento ou desolação, pois não há mais conhecimento e consciência. Nós sofremos, com nossas perdas; mas aqueles que perdemos, de nada sabem; portanto, não sofrem. Essas coisas não existem, lá do outro lado do mistério, como diria Brás Cubas, apesar de ter escrito um livro, lá do outro lado, significando o contrário. O gesto pode ter faltado; não faltam causas, motivos, e razões, para isso. Mas sua força propulsora esteve, está, e ainda estará em nós, enquanto a vida dura, ainda que nada disso tenha se manifestado. E quando ela, a vida, não mais segue, tudo deixa de existir, nós, o mundo, e os afetos. Ao menos, neste lado do mistério. Onde já há sofrimento em demasia; não juntemos mais um, mesmo que pequeno, aos horrores que vivemos e testemunhamos.

    1. Prezado Antonio,

      Agradeço sua resposta. Suas palavras tocam com delicadeza um tema que raramente se permite dizer: a existência silenciosa dos afetos que não se realizam, mas não deixam de ser reais.

      A forma como você articula a finitude da consciência com a cessação do amor é de uma lucidez serena, quase desarmante. Reconhecer que o amor não vivido também tem peso, forma e duração é um gesto de rara honestidade.

      Recebo seu texto não como réplica, mas como um espelho sensível. Ele não responde, amplia. E, ao fazê-lo, dá dignidade ao que ficou por dizer.

      Com apreço,

      Luiz Henrique Lima Faria

      1. Pois não, Luiz, somente agora, 23/04, pude tomar conhecimento de sua resposta ao meu comentário. Fico feliz que tenha percebido minha real intenção – achei que, de certa forma, ele tinha uma conotação de refutação, o que não era o caso. É que trata-se de uma questão que tem me ocupado, esse “confronto” entre o que se sente, e o que é expresso, a ponto de ter escrito um livro sobre isso, que ainda estou tentando publicar.
        Grato,
        Antonio Uchoa Neto

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