Tira a mão da minha Tropicália, por Bruno Mateus

Palavras, expressões ou nomes de movimentos não possuem donos, guardiões ou senhores. Pertencem ao coletivo, são da nossa cultura, atemporais

Foto Fernando Young

Tira a mão da minha Tropicália

por Bruno Mateus

Deitei-me preguiçosamente no sofá, peguei o celular e comecei a ler um pouco mais sobre essa história que envolve Caetano Veloso, Paula Lavigne, a marca de roupas Osklen e a tentativa do casal de impedir que a grife faça uso comercial dos nomes “Tropicália” e “Tropicalismo”. Aliás, soube desse caso absurdo lendo a coluna do ótimo Gustavo Alonso na “Folha de S.Paulo” – aliás, o único escriba de um grande veículo que vi criticar a postura grotesca e nanica da dupla. 

Para contextualizar: desde o fim de 2023, Caetano e Lavigne querem que a Osklen recolha de lojas físicas e virtuais peças da coleção “Brazilian Soul”, lançada no ano passado inspirada no movimento do qual Caetano foi um dos cabeças, que estampasse os termos “Tropicália” e “Tropicalismo”. Veja: a Osklen não usou versos da música “Tropicália” sem permissão, apenas a palavra, que não tem dono. E quem cunhou o termo Tropicália foi o artista plástico Hélio Oiticica (1937-1980), que chamou assim uma de suas obras.  

Voltemos à empreitada jurídica de Caetano e Lavigne, empresária e esposa do baiano. A dupla pediu indenização de R$ 1,3 milhão por uso indevido de imagem; na semana passada, a Justiça do Rio de Janeiro rejeitou o pedido. No fim das contas, o juiz Alexandre de Carvalho Mesquita ainda condenou Caetano ao pagamento dos custos processuais e dos honorários dos advogados da Osklen. A defesa do cantor irá recorrer da decisão. Cabe ressaltar nestas linhas que o que se lerá aqui não se trata em absoluto de uma defesa da Osklen. 

Ora, a Tropicália é de Caetano Veloso? O Tropicalismo tem dono? Como bem escreveu Alonso na “Folha”, “a resposta é óbvia: ninguém é proprietário de um movimento cultural, visto que a cultura brasileira pertence ao povo brasiliano”. Tudo isso é tão insensato quanto ridículo. Um gesto avarento de pretensa posse completamente despropositada e incoerente com a genial obra de Caetano, camaleão provocador de tantas desobediências e liberdades de todas as ordens – sonoras, comportamentais, estéticas. 

Você, caro leitor, conhece o dono do hip hop? Você, prezada leitora, já tomou um café com o proprietário do movimento hippie? Seria Glauber Rocha o dono do Cinema Novo? Alguém tem as chaves do Clube da Esquina? Luiz Gonzaga é o rei do baião, mas será também seu detentor, a ponto de vetar que um restaurante utilize o termo em um letreiro para chamar a atenção dos turistas que andam sob o calor pernambucano?

Não é a primeira vez que Caetano entra nessas erradas. Basta lembrar o patético episódio em que, de mãos dadas com Lavigne, a líder da coisa toda, apoiou, em 2013, sem o menor pudor, o movimento Procure Saber, que também tinha acenos favoráveis de Gilberto Gil, Chico Buarque, Milton Nascimento, Djavan, Roberto Carlos – este, claro, não poderia faltar, pois quis não só uma indenização, mas a prisão (!) de seu biógrafo Paulo César de Araújo, autor de “Roberto Carlos em detalhes” – e Erasmo Carlos. Caê e Lavigne passaram, então, a advogar contra as biografias não autorizadas no país. 

Sim, a elite proibicionista da MPB queria que as obras passassem por aprovação prévia antes da publicação. Em 2015, o delírio tirano foi derrotado por unanimidade no Supremo Tribunal Federal, para o alívio da democracia brasileira e de escritores e pesquisadores que se dedicam a projetos fundamentais para a cultura deste país e seus tropicalismos.

Por falar em Roberto Carlos, essa aventura trapalhona de Caetano e Paula Lavigne (ok, convenhamos que, perto do senhor de Cachoeiro do Itapemirim, eles são inofensivos) contra a Osklen me faz lembrar a sanha do cantor contra um sujeito que decidiu colocar o próprio nome em sua imobiliária. O nome? Roberto Carlos Imóveis. Com o rei na barriga, o artista, em sua psicose, processou o homônimo de Vila Velha (ES), que fechou o empreendimento e, mesmo com a vitória na Justiça, teve de recomeçar sua vida prejudicada pelo compositor, que processou corretores imobiliários mais de uma vez.

Tolos são os que se embrenham nesse tipo de batalha. Palavras, expressões ou nomes de movimentos não possuem donos, guardiões ou senhores. Pertencem ao coletivo, são da nossa cultura, atemporais. As palavras também são incapturáveis, escapam pelas frestas, vãos e dedos e chegam às ruas, às rádios, às TVs e aos jornais – e, claro, às redes sociais. Você é foda, Caetano, mas entrou numa transa errada e perigosa, meu chapa. 

A Tropicália e o Tropicalismo não pertencem ao compositor, muito menos à Paula Lavigne. Em certa medida, Caetano Veloso não é dono nem de sua magistral obra, que já se descolou do homem e ganhou liberdade na amplidão.

Bruno Mateus é jornalista de Belo Horizonte, pai da Amora e interessado pelo extraordinário das coisas comuns.

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10 Comentários

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  1. Para iniciar, e não deixar dúvidas, amo os ingleses The Beatles, e os brasileiros Caetano e Oiticica. Entretanto, soa tão estranho e contraditório seus artigos sobre Ditadura, Paul MacCartney e Caetano…Aqui TB eram venerados com o codinome “Reis do iê iê”, mesmo sem tê-lo criado, e há pouco tempo somente permitiram seus hits adentrarem lentamente os YT da vida p o deleite dos fãs… Eles podem! Nos fizeram dançar e esquecer os horrores e terrores ditatoriais. Já Oiticica explicitou em arte plástica o desejo do resgate nacional, tão menosprezado, q TB nunca tinham ouvido falar (Brazil?), mas nas rádios e bailinhos só davam eles… Enquanto Caetano,Gil,Chico, Gal, Rita etc. vocalizaram o desejo do retorno da nossa Democracia e sua liberdade de expressão (de cantar e “afastar o cálice”). Vários tiveram que “partir num rabo de foguete”, sob choro d Marias e Clarices no solo pátrio. Paul & Cia.não vieram, mas Caetano e tantos outros foram p lá, no UK, Chile, Uruguai, States… Exílio sofrido e Saudade do País Tropical. Viva a Cultura Brasileira!

    1. Desculpe Romilda, mas não vejo contradição alguma, antes pelo contrário. Li os 3 textos de temáticas bem distinta e sinto neles uma harmonia profunda; escritos num estilo elaborado sem ser chato ou gorduroso. Não conhecia o autor, mas juntos me passam a ideia de um escritor já numa fase madura, um analista cuidadoso, onde os significados e as palavras adequadas são descritos e escolhidas na medida certa. Até o merecido puxão de orelhas no criativo Caetano chega no momento certo e na intensidade adequada. Errar é humano e uma visão crítica do cidadão Caetano nesse evento não diminui seu brilho artístico e o fará pensar. Nesse texto particular, o Bruno Mateus disse tudo que eu gostaria de ter escrito, mas certamente não faria com o mesmo brilho. Um abraço.

    1. Também acho que é “coisa de Paulinha” que o sr Veloso se deixa levar.

      Como a mídia compra seus barulhos (eles e outros da mpb) eles ganham tudo na dona justa.

      No caso torço pela briga.

  2. Faltou o caso de um pequenino comerciante de São Gonçalo, RJ, que tinha o apelido de Xuxa há décadas e foi processado pela des-animadora infantilizada.

  3. Perfeito. Texto esclarecedor e coerente. Esses artistas se acham o dono do mundo. E,muitas vezes encontram a conivência dos magistrado.

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