Paul McCartney em BH e a noite de uma vida eterna, por Bruno Mateus

Escutamos música para nos sentirmos humanos. É ela que nos dá encanto e fascínio para enfrentar o assombro dos dias comuns

Paul McCartney em BH e a noite de uma vida eterna

por Bruno Mateus

Quanta vida pode haver em quase 3h? Estou no meio de 40 mil pessoas. Els esperam para ver James Paul McCartney, 81 anos, subir ao palco de um estádio recém-inaugurado na região Noroeste de Belo Horizonte. Faz calor na capital mineira, a garganta seca espera por mais uma cerveja e raras são as estrelas no céu de segunda-feira, quatro de dezembro de 2023. Estou no meio de 40 mil pessoas, mas ali parece haver muito mais. Quanta multidão cabe nestes metros quadrados?

Todos aguardam o show do homem que aos 20 e poucos ajudou a definir os rumos da música pop, da mente por trás de “Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band”, do cara que compôs as linhas de baixo mais legais da história, do menino que saiu da portuária Liverpool com três amigos para entrar numa aventura mágica e misteriosa – por vezes dolorosa – que iria mudar a vida de tanta pessoas como eles jamais imaginaram. Quanta união e ruptura pode haver entre Paul, John, George e Ringo?

Paul abre a noite com “A Hard Day’s Night”, do álbum de mesmo título lançado em 1964. Em “Blackbird”, ficam só Paul, seu violão, os olhares hipnotizados e a fumaça do cigarro que logo se dissipa na noite escura. “Blackbird singing in the dead of night/ Take these sunken eyes and learn to see/ All your life/ You were only waiting for this moment to be free/ Blackbird fly, blackbird fly/ Into the light of a dark black night”. Quanta beleza pode haver em uma canção?

Paul me leva aos primórdios com “In spite of all the danger”, a primeira música por ele, John e George em 1958, quando ainda eram The Quarrymen, e rege o coro da plateia. “Lady Madonna”, “Let it be”, “Get back”, “I’ve just seen a face”, “Got to get you into my life”, “I’ve got a feeling” e “Hey Jude” aparecem e provocam o estádio. Alguns choram, outros dançam – sozinhos e desengonçados ou de rostinho colado. “Helter Skelter” é uma porrada só: suja, barulhenta e caótica, bem do jeito que Paul queria que ela nascesse em 1968.

Dos Wings e da carreira solo vieram “Let me roll it”, embalada pela Les Paul vermelha-psicodélica de Paul, a pirotécnica “Live and let die”, “Maybe I’m amazed”, linda declaração de amor para sua Linda, “Band on the run”, do clássico álbum que acaba de completar 50 anos, e outras mais. “Here Today” e “Something” são para John e George, pois eles sempre estarão. Quanta saudade pode caber em uma canção? Ao todo, Paul toca 38 canções, maravilhoso apanhado de uma obra que cobre os últimos 60 anos, que fala muito de todos nós e que ficará.

Escutamos música para nos sentirmos humanos. É ela que nos dá encanto e fascínio para enfrentar o assombro dos dias comuns. Porque a música de Paul e dos Beatles sempre tocará para além do bem e do mal. Como se estivesse suspensa entre nós, paira entre o céu e a terra, perplexa – não está em um e outro, é fantasia, apenas.

No palco, vejo Paul McCartney pela terceira vez desde aquele 4 de maio de 2013. A última, provavelmente. Embora eu já saiba o desfecho, espero ansiosamente o fim do show. Paul se senta ao piano e entoa os primeiros versos da canção. “Once there was a way, to get back homeward”… Paro e canto “Golden slumbers” num sussurro quase impossível de se ouvir: “Sleep pretty darling, do not cry/ And I will sing a lullaby”. Volto ao bairro Esplanada e, subitamente, me vejo menino na sala do apartamento 301 da rua Campinas, olhando a capa de “Abbey Road” com aqueles quatro rapazes atravessando a rua. Quanta memória pode haver em uma canção?

“Carry the weight” e “The end” são as últimas não só do show, mas dos Beatles como banda num estúdio em 1969 – em abril do ano seguinte, o quarteto se desfez, marcando o último suspiro de uma década que valeu por duas. Passado, presente e futuro se misturam. O tempo se desfaz, não é algo exato ou que mereça alguma atenção.

No golpe de um instante, Amora surge à minha frente. É manhã de quinta-feira, sete de dezembro. Não há uma nuvem sequer no azul celeste que cobre Belo Horizonte. Ela pergunta sobre o que estou escrevendo. Digo que são coisas sobre o show do Paul, aquele que está no quadro da parede da sala com os outros Beatles. “Eu quero ir”, ela diz, decidida e inocente. Nossos olhares se cruzam e rimos dos nossos planos. Quanto amor cabe em um abraço?

Bruno Mateus é jornalista de Belo Horizonte, pai da Amora e interessado pelo extraordinário das coisas comuns.

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3 Comentários

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  1. Eu aqui imaginando hoje, já sete de dezembro, e no entanto meu coração ainda vibra com todas as emoções do show mágico, do momento único. Memória que não vá se apagar! Obrigada Bruno e mais ainda ao falar da Esplanada. Eu menina na Felipe Camarão também sonhei com os garotos de Liverpool. Foi uma emoção que encheu e aqueceu a alma! É preciso que Amora e, aqui, Joaquim saibam disso! É eterno!

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