A atualidade da sociologia de Glauber Rocha, por Roberto Bitencourt da Silva

A ferramenta sociológica do “tipo ideal” – proposta pela clássica teoria de Max Weber – aparece em “Terra em transe” com grande senso de oportunidade, dando maior clareza à denúncia anti-imperialista oferecida por Glauber.

A atualidade da sociologia de Glauber Rocha

por Roberto Bitencourt da Silva

É dilacerante a dor coletiva promovida no Brasil, uma dor que nos é impingida pelas prevalecentes orientações políticas, legais e econômicas que moldam muitas e decisivas relações e círculos de sociabilidade.

São orientações que pulverizam direitos constitucionais, trabalhistas, sociais, que subjugam o País à posição subserviente de uma colônia instrumentalizada pelos interesses do pólo dominante – e decadente – do capitalismo global. Todas aquelas orientações levadas a cabo pelos donos do poder, sem qualquer pudor. Desalentador. Angustiante.

É crescente o fosso entre o que temos sido, o que estamos nos tornando e o que poderíamos ser enquanto nação. Trata-se de um fosso oceânico. A dor e a tristeza são muito grandes, amplificadas na pandemia pelo negacionismo oficial e o genocídio da nossa gente. Na esteira do estado de inconformidade do autor destas linhas, melhor, em sintonia com ela, anteontem coincidiu de ser exibido no canal Brasil um dos filmes mais importantes já produzidos no país: “Terra em transe”, de Glauber Rocha. Acabei assistindo pela enésima vez.

O filme de Glauber, feito em 1967, de certa maneira, pode ser considerado um documentário da vida social e política brasileira. Proximidade com aspectos da realidade dos anos 1960, pré e pós-golpe de Estado. Mas, também consiste em uma alegoria: o Brasil (ou demais países latino-americanos) é representado pela fictícia Eldorado.

Personagens importantes da narrativa conformam arquétipos de grupos e classes sociais, com seus comportamentos e raio de interesses. A ferramenta sociológica do “tipo ideal” – proposta pela clássica teoria de Max Weber – aparece em “Terra em transe” com grande senso de oportunidade, dando maior clareza à denúncia anti-imperialista oferecida por Glauber.

A obra parece-me mais atual hoje. Ou, por outra, as tintas ficaram mais carregadas e os problemas e interesses em jogo estão mais nítidos. Antigos dilemas e desafios vão se acumulando no País, de sorte que a impressão que fica é da ocorrência de poucas mudanças de fato em aspectos decisivos da nossa sociedade.

O filme é muito instigante, ainda hoje, devendo ser assistido não somente por seu valor estético, por sua singularidade enquanto produto cultural de excelência ou como registro histórico. Além dessas virtudes inegáveis da película, “Terra em transe” igualmente contribui bastante para aguçar a percepção a respeito das dificuldades do Brasil atual. 

A composição da narrativa lida com importantes arquétipos da vida social, política e econômica brasileira. Paulo Autran personifica a grande burguesia interna associada e acumpliciada com o capital estrangeiro. O seu poder e status, os seus ganhos provêm de transações que geram a entrega das riquezas de Eldorado em benefício das potências estrangeiras e do capital internacional. Um poderoso testa de ferro. Lumpemburguesia.

Por sua vez, o personagem de Paulo Gracindo representa a figura do à época saudado burguês industrial com pretensos laivos nacionalistas, de esquerda e simpático às causas populares. Um tipo social e político que parcelas das esquerdas comunistas e trabalhistas, na virada dos anos 1950-60, haviam apostado como aliado político.

O golpe de 1964 havia esclarecido os rumos escolhidos pela burguesia doméstica, sobretudo industrial, mas Glauber Rocha não deixa de evidenciar em tons mais fortes. O personagem de Gracindo é veementemente chamado, por Autran, a assumir posição de classe e manda às favas suas fragmentárias aspirações emancipadoras para Eldorado. Argumenta Díaz (interpretado por Autran): “A luta de classes existe, qual é a sua classe?”, indaga e ensina a Gracindo. Em decorrência, o projeto burguês sob os estritos limites da dependência externa é a subjugação do país nas relações internacionais e a fome para o povo.

O quadro pintado por Glauber não deixa de mobilizar algo essencial da teoria de Marx, que é a análise do poder e da sociedade a partir da identificação dos interesses e do perfil de inserção de classe dos sujeitos individuais e coletivos. Algo insensata e completamente esquecido no Brasil de hoje, entre largas faixas da opinião pública que se reconhece progressista.

José Lewgoy encarna o líder eleitoral progressista: confortável entre os ruídos e apelos das massas e a carnavalização popular do processo eleitoral, mas destituído de vontade política para efetivamente agir em prol das mudanças sociais. Para desempenhar esse papel no filme, dar maior colorido à crítica de Glauber, impossível imaginar alguém melhor do que Lewgoy, um astro das chanchadas. O seu líder político só tem a oferecer uma caricatura de mudança.

Na ótica do diretor do filme, o povo é concebido como fonte de queixas e insatisfações, mas basicamente rendido, confuso e inerte. Um trabalhador rural, interpretado por Flávio Migliaccio, bota a boca no trombone e o farsesco sistema democrático o mata. Trabalhador com ousadia e voz própria nem mesmo os convencionais políticos progressistas aceitam bem.

O personagem do protagonista, Jardel Filho, é o pequeno burguês, o jornalista, poeta e intelectual, que atua na ambivalência entre o apoio reservado a Lewgoy e a ruptura com o sistema, por via do voluntarismo armado. Um sistema político que se fechava, após a aliança celebrada entre os personagens de Autran e Gracindo. O destino do burguês nacional de Gracindo seria o avassalamento ao capital estrangeiro, seguindo a trilha do emblemático personagem de Paulo Autran.

É claro, tem outros personagens e situações no filme. Porém, ao tomarmos “Terra em transe” enquanto fonte para reflexão sobre o nosso tempo, vemos que qualquer possibilidade social e politicamente transformadora só pode passar por algo que forme uma composição alternativa de classes, tendo em vista novo e revolucionário arranjo de poder: uma mescla do trabalhador rebelde, sem timidez e consciente das mazelas do país, com o pequeno burguês esclarecido e indignado.

Despertar essa rebeldia e indignação, articular as forças dos dois atores sociais fundamentais, fazer o encontro de ambos, são as questões-chave, ainda longe de serem resolvidas. O que envolve, entre outros, trabalho de organização e educação política cotidiana, muito além das fronteiras estabelecidas pelos marcos institucionais e eleitorais. A sociologia de Glauber continua atual. Um gênio.

Roberto Bitencourt da Silva – cientista político e historiador.

Redação

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