
Em livro mais comentado do que lido pelos críticos, Jessé Souza aborda o pobre de direita
por Francisco Fernandes Ladeira
Entre as diferentes análises sobre o insucesso da esquerda nas últimas eleições municipais, uma das melhores explicações no debate público foi feita de forma clara e direta pelo sociólogo Jessé Souza, em entrevista ao jornal O Globo. Segundo ele, a esquerda abraçou o identitarismo – se limitando a discutir gênero e raça, sem levar em conta o fator classe – e deixou os pobres na direita. Como era de se esperar, muita gente na esquerda liberal vestiu a carapuça e deu chilique. Mas contra fatos não há argumentos.
Além da entrevista ao jornal carioca, o pobre de direita também é tema do novo livro de Jessé Souza, intitulado “O pobre de direita: a vingança dos bastardos”.
A partir da questão “por que uma parcela significativa dos pobres, os quais teriam muito a perder com Bolsonaro, representante das piores elites nacionais, votaram nele duas vezes de forma maciça?”, são traçados dois perfis básicos de pobres de direita. Ambos eleitoralmente motivados, não por questões econômicas, mas morais, sobretudo por “ressentimentos em relação a todo de humilhação sofrida”, “busca por autoestima/autoconfiança”, “reconhecimento social” e/ou “identificação”. Trata-se do “branco pobre do Sul e de São Paulo” e do “negro evangélico”.
Ao contrário do que aponta o senso comum, e até algumas análises pretensamente científicas, estes dois perfis traçados acima não votaram em Bolsonaro por mera irracionalidade, falta de inteligência, instinto de rebanho, filiação religiosa ou visão de mundo conservadora. São as necessidades de reconhecimento social desses segmentos que os fazem tão suscetíveis à pregação bolsonarista.
O branco pobre do Sul e de São Paulo, apesar do orgulho da ascendência europeia, não teve acesso aos dois capitais mais importantes na sociedade moderna: capital econômico e capital cultural, o que, naturalmente, causa ressentimento por sua situação social desfavorável.
No entanto, como não compreende como o mundo social funciona e, consequentemente, não reconhece seus verdadeiros algozes (elite e classe média), dirige sua raiva a aqueles que considera inferiores (racial e moralmente): os pretos e mestiços (fator que traz algum alívio da humilhação sentida de modo objetivo cotidianamente).
Nesse sentido, Bolsonaro – com seus discursos preconceituosos e inflamados, sempre à procura de bodes expiatórios – soube, como ninguém, fazer uso das carências do branco pobre – canalizando-as contra os mais frágeis e vulneráveis: os mais pobres que ele, os pretos, as mulheres, os gays e os nordestinos.
Isso garante ao branco pobre a compreensão do mundo social de uma forma que lhe é conveniente; e a certeza de sua superioridade moral sobre os outros, de modo a aplacar e mitigar seu sentimento de fracasso pessoal.
Assim, o apoio ao ex-capitão do exército relaciona-se a uma dupla identificação, motivada por desejo de distinção social positiva: o orgulho da origem europeia e o ódio às minorias sociais. Ou seja, Bolsonaro é o representante orgânico mais fiel do branco pobre do Sul e de São Paulo (e sua pretensa superioridade cultural em relação ao restante do país, majoritariamente negro e mestiço).
No entanto, como se sabe, não foram apenas os brancos pobres que votaram, em duas ocasiões, em Bolsonaro. Muitos negros, sobretudo os evangélicos, votaram e apoiaram o “mito” – um racista da velha escola, que faz piada com negros, associando-os, de forma constante, à animalidade. Como explicar isso?
Primeiramente, é importante ressaltar que o sofrimento do negro evangélico é muito distinto do branco pobre do Sul e de São Paulo. Devido a herança escravocrata da sociedade brasileira, o negro é oprimido e negado em sua própria humanidade.
O branco pobre se enxerga “menos” que o branco mais rico com capital cultural, porém sua humanidade e pertencimento social não são postos em dúvida. Já o negro é obrigado a enfrentar cotidianamente a ameaça de animalização – considerado por todos, ou pela maioria, como “subgente”, que pode ser morta e humilhada sem qualquer reação social.
Diante dessa realidade, para o negro evangélico, a igreja – como boia de salvação dos desamparados – oferece a única oportunidade de suprimir suas necessidades por autoestima, convívio, laços de amizade, rede de apoio, lazer, reconhecimento e distinção social.
Por outro lado, a mesma instituição que oferece uma espécie de bálsamo para quem tanto sofre, também busca controlar e manipular os corações e as mentes dos perseguidos e abandonados, a partir de uma teologia moralista tradicional e regressiva, abertamente homofóbica e machista.
É por sua inserção em uma denominação religiosa que o negro pobre passa pelo processo de “braquemento”, em que adota como seus os mesmos preconceitos utilizados para oprimi-lo. Desse modo, ele passa a ter uma distinção social positiva, baseada na dicotomia “pobre honesto” versus “pobre delinquente”.
No caso, a “delinquência” pode assumir diversas formas, não apenas o “bandido” – o “negro delinquente”; também é o LGBT+, a mulher, o usuário de drogas etc. Sem o estigma desses tipos sociais, não existe o ganho existencial em autoestima do negro “embranquecido” que se associa ao código dos brancos opressores. É isso o que explica, em última análise, a opção do negro que quer embranquecer moralmente por Bolsonaro.
Em suma, para quem é humilhado o tempo todo, como os negros são no Brasil, libertar-se desse desprezo aterrador e onipresente passa a ser sua maior necessidade, nem que seja à custa de seu irmão de cor e de infortúnio.
Com um título chamativo, “O pobre de direita” ironicamente tem despertado inusitadas críticas por parte de quem não leu o livro, mas ficou restrito ao título. Daí Jessé é acusado de elitista, odiar as classes populares, culpar o pobre pela ascensão da extrema direita no Brasil, pseudointelectual, burguês de esquerda e até diletantismo sociológico, entre outras bobagens facilmente desconstruídas por alguém que realmente leu a obra.
Evidentemente, Jessé Souza, como todo intelectual, pode e deve ser questionado. Ele não é “dono da verdade”. No entanto, o que mais se tem visto são críticas vazias como as descritas acima, deturpando as discussões sobre o conceito de pobre de direita. E, o que pior, há quem se limite a criticar o livro a partir de ataques a algumas características pessoais do próprio Jessé. Quanto mais o livro faz sucesso; mais se intensificam os ataques.
Seria essa postura de certos “críticos” o ressentimento que o próprio autor de “O pobre de direita” cita em seu livro? Talvez Freud poderia explicar isso.
Francisco Fernandes Ladeira é doutor em Geografia pela Unicamp
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Os pobres e humilhados, brancos ou negros, ingressando em uma Igreja evangélica, passam a se sentir valorizados; são chamados de “irmãos” e são apoiados concretamente: para conseguir um emprego, para se livrar de uma dependência (álcool, fumo etc.) para se curar de uma depressão… Estão aí (bem próximos) os mesmos princípios (Solidariedade e Fraternidade) responsáveis pelo sucesso inicial do Cristianismo. E posteriormente bastante negligenciados por uma Igreja católica elitizada. Já os pastores evangélicos nem precisam ser realmente cristãos. Basta parecer que são. Pois o que importa é estar do lado do verdadeiro Poder – o Poder que controla a Produção e consequentemente também a Distribuição (inclusive das armas).