Daniel Costa
Daniel Costa é graduado em História pela Unifesp, instituição onde atualmente desenvolve pesquisa de mestrado. Ainda integra o G.R.R.C Kolombolo Diá Piratininga onde além de compositor, desenvolve pesquisas relacionadas a História do samba de São Paulo e temas ligados a cultura popular participando das atividades e organização do centro de documentação da entidade (CedocK - Centro de Documentação e Memória - José e Deolinda Madre). Possui especializações na área de museologia (IBRAM), arquivologia (Arquivo Nacional), Educação Patrimonial (IPHAN) e História Oral (FGV/CPDOC).
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Kolombolo Diá Piratininga e a Obra de Plínio Marcos: Um Encontro de Tradições, por Daniel Costa

G.R.R.C Kolombolo diá Piratininga e seu trabalho em defesa da preservação do samba paulista e a homenagem que ao dramaturgo Plínio Marcos

Kolombolo Diá Piratininga e a Obra de Plínio Marcos: Um Encontro de Tradições

por Daniel Costa

Com o Carnaval cada vez mais próximo, fica quase impossível não se deparar com polêmicas — principalmente nas redes sociais — sobre uma possível perda da essência da festa. Para alguns, as escolas perderam seus fundamentos; para outros, os sambas de enredo perderam a qualidade quando comparados aos apresentados em outros carnavais. É claro que, sem figuras como Silas de Oliveira, Hélio Turco e a histórica dupla Ideval e Zelão, os sambas perdem parte de sua grandeza. No entanto, afirmar que nada de relevante está sendo feito é uma questão complexa. O próprio Carnaval de rua — principalmente em cidades como São Paulo e Rio de Janeiro — parece ter entrado em um dilema: de um lado, blocos tradicionais defendem um Carnaval acessível a todos que desejam participar da folia; do outro, verdadeiras empresas, por meio de seus megablocos, não abrem mão do lucro, nem que para isso tenham que trazer atrações sem qualquer ligação real com a tradição carnavalesca. Essas questões, de grande relevância, devem ser discutidas com seriedade, fugindo do apelo imediato por likes e engajamento proporcionado pelo mundo virtual.

Mesmo com todas essas disputas, o Carnaval de rua na cidade de São Paulo segue resistindo como uma manifestação cultural e popular que, geralmente, se organiza de forma autônoma e participativa. Em um cenário onde o direito ao uso dos espaços públicos e o próprio direito à cidade são alvo de intensa disputa, os blocos surgem como importantes atores. Formados por pessoas de diversas classes, origens e identidades, eles acabam representando uma expressão significativa do direito à cidade e à democracia.

Nesse contexto, o Carnaval de rua de São Paulo também é uma forma de resistência ao autoritarismo e à privatização dos espaços públicos. Os blocos carnavalescos ocupam as ruas da cidade, transformando-as em espaços de alegria, celebração e diversidade, resistindo a uma concepção de espaço urbano cada vez mais cercado por muros e cercas.

Além das questões ligadas ao direito à cidade e ao uso do espaço público, o Carnaval de rua também pode ser entendido como uma forma de empoderamento da população. Com a maioria dos blocos organizados horizontalmente, as decisões são tomadas coletivamente. Isso representa uma forma de exercício da democracia na cidade, ao permitir  que as pessoas tenham voz e participem da construção da sua própria cultura. Como exemplo dessa construção, podemos citar uma agremiação que, há mais de duas décadas, vem lutando pela preservação do samba paulista e foi fundamental no crescimento e consolidação da retomada do Carnaval de rua na capital paulista.

Não chegamos até aqui à toa!

A ideia da fundação do que seria o Grêmio Recreativo de Resistência Cultural Kolombolo Diá Piratininga surgiu em 2002, durante uma conversa entre o historiador Max Christian Frauendorf, o compositor Renato Dias (que se desligaria do grupo em 2019) e a produtora cultural Ligia Fernandes, sobre a evolução e os rumos do Carnaval de São Paulo; desde a época dos cordões até o formato de campeonato de escolas de samba que vemos hoje.

Enquanto as escolas de samba de São Paulo ganhavam maior visibilidade e os desfiles se tornavam cada vez mais parecidos com os realizados no Rio de Janeiro, era perceptível o distanciamento de suas raízes. Grandes figuras que contribuíram para a construção do Carnaval e consolidação do samba paulista — em sua maioria pessoas pretas e oriundas das classes populares — foram gradualmente marginalizadas, ficando à margem dessa nova e perversa dinâmica. Um exemplo dessa mudança pode ser observado no processo de escolha dos sambas-enredo, onde compositores de fora passaram a disputar os sambas com membros das escolas, assim como os novos compositores que buscavam seguir a trilha iniciada por esses mestres.

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Partindo da compreensão do samba como uma expressão cultural que melhor representa o Brasil — principalmente por ser encontrado em todo o território nacional e trazer consigo seus múltiplos sotaques —, podemos afirmar que sua grandeza se deve não apenas à sua ampla execução, mas, sobretudo, à sua diversidade de vertentes; influenciadas pelas culturas locais e interpretadas através do contexto social e histórico de cada região.

E com o samba de São Paulo não seria diferente. Sotaques, ritmos, versos e danças que acompanham suas manifestações — do samba de bumbo ao cururu, passando pelo jongo e pelo Carnaval — possuem características próprias, derivadas da formação étnica, das religiões, costumes e da história política local. Ou seja, São Paulo, apesar de ser uma metrópole conhecida por absorver inúmeras culturas e apresentar essa diversidade em suas ruas e bairros, também possui uma rica cultura tradicional que se manifesta artisticamente de diversas formas.

Esses contextos, quando observados mais de perto, especialmente através das histórias das comunidades e de seus indivíduos, revelam muito da nossa identidade e diversidade cultural. E é dessa forma que o Kolombolo acredita contribuir para o desenvolvimento daqueles que entram em contato com a história e os mestres do samba de São Paulo.

Inspirado pela ideia trazida pelo dramaturgo Plínio Marcos em espetáculos como Balbina de Iansã e, posteriormente, com Histórias das Quebradas do Mundaréu; a pesquisa e as atividades do grupo tiveram como objetivo principal registrar as histórias do povo do samba paulista em suas diversas vertentes, disseminar esse conteúdo e, acima de tudo, incentivar a valorização de suas expressões, criando espaços e situações em que elas seriam a principal atração. Afinal, como sentenciou Plínio: “Um povo que não ama e não preserva suas formas de expressão mais autênticas jamais será um povo livre”.

A pesquisa sobre o Carnaval de rua para a produção de um livro foi a primeira ação promovida pelo recém-criado grêmio, composto por três integrantes e batizado de Mocambo Paulistano. O símbolo escolhido foi o galo, por sugestão de Renato Dias, e as cores, vermelha, amarela e preta, como as da bandeira de Angola, região de origem do povo banto, escravizado e trazido principalmente para o Sudeste, cuja cultura ficaria para sempre enraizada nas manifestações tradicionais paulistas.

O nome foi alterado em 2004, após a publicação de uma reportagem sobre o grupo, que resultou na manifestação de outro grêmio recreativo mais antigo que já usava o nome Mocambo Paulistano. Imediatamente, o nome foi substituído por uma junção de palavras que simbolizaria a formação étnica da região onde hoje está São Paulo, foco do trabalho da entidade: Kolombolo Diá Piratininga. Explicando: Kolombolo significa galo, em kimbundo (língua banto); Diá significa “de”, também em kimbundo; Piratininga, ou “peixe seco”, em tupi (língua do povo indígena que habitava a região), foi o nome dado ao primeiro vilarejo local durante a colonização (Vila de Piratininga, seguido por São Paulo de Piratininga).

Em 2007, a convite da Associação Sambatá — Música e Cultura, o Kolombolo passou a ocupar um espaço na Rua Belmiro Braga, em frente à Praça Aprendiz das Letras e próximo a locais que contribuíram para a retomada do samba na região, como o Centro Cultural Rio Verde e os bares Pau Brasil, Tamarineira e Ó do Borogodó. A partir daí, a agremiação começou a agregar novos integrantes e a realizar atividades com maior frequência, começando pela Praça do Samba, um evento mensal realizado em praça pública, iniciado em abril do mesmo ano.

Outro projeto de grande relevância desenvolvido pelo Kolombolo Diá Piratininga ao longo dos últimos anos foi a produção da coleção Memória do Samba Paulista; projeto por meio da qual o público pode ter acesso a obras de compositores e intérpretes como Toniquinho Batuqueiro, Ideval Anselmo, João Borba, Denise Camargo e Tio Mário. Além das velhas guardas da Nenê de Vila Matilde, Unidos de Vila Maria, Unidos do Peruche, Velha Guarda do Samba da Vila Brasilândia, o ainda inédito álbum da Velha Guarda do Vai-Vai e, por fim, os discos dedicados à Embaixada do Samba Paulista e às Tias Baianas Paulistas.

Com a consolidação do trabalho da agremiação, além da realização de atividades como o Cafezal Paulista, Dialeto Paulista, apresentações e oficinas de Samba de Bumbo; além de encontros para discutir a história do samba de São Paulo. Foi sendo forjada uma comunidade que serviria de base para fortalecer o projeto que deu início ao Kolombolo Diá Piratininga. Assim, a promoção de desfiles nos moldes dos antigos cordões carnavalescos começa a ser desenvolvida.

A convite de outro projeto cultural (A Rua do Samba), o Kolombolo levou seu estandarte pelas ruas do centro de São Paulo nos carnavais de 2006 e 2007, mas foi somente em 2008 que a entidade conseguiu realizar o seu próprio desfile, agora pelas ruas da Vila Madalena, com o tema “O Galo Pioneiro Homenageia Dionísio Barbosa”. Este desfile é considerado extraoficial pela entidade devido à ausência de uma ala de compositores incumbida de produzir o samba-tema do Carnaval.

Desse modo, o Cordão Carnavalesco Kolombolo Diá Piratininga, ao realizar seus desfiles pelas ruas da cidade de São Paulo desde 2006, passou a ser reconhecido por seus pares como um dos grandes defensores do Carnaval de rua paulistano. Inclusive, participando ativamente da construção do Manifesto Carnavalista, iniciativa surgida a partir de uma reunião de blocos e cordões carnavalescos que realizou um grande ato em 2013, reivindicando o merecido reconhecimento e legalização do Carnaval de rua da cidade. Esta iniciativa foi uma das responsáveis pelo crescimento do Carnaval de rua paulistano, que ganhou a proporção que tem atualmente; recuperando uma tradição da folia de momo em São Paulo presente ao longo do século XX e que foi se perdendo com a concretização do modelo de competição de escolas de samba, realizado na sexta e sábado de Carnaval.

Em 4 de julho de 2008, foi fundada a Ala dos Compositores, e desde então são sorteados três compositores que integram a ala para compor o samba-tema do próximo Carnaval. Desde sua fundação, a Ala de Compositores do Kolombolo Diá Piratininga tem sido um ponto de encontro de novos compositores paulistas, visando a prática da composição compartilhada e a apresentação de sambas de diferentes autores contemporâneos.

Em 2020, a agremiação encerrou seu ciclo na Vila Madalena, passando então a concentrar suas atividades no bairro do Bixiga, onde, em parceria com a Umes, que cede o espaço do tradicional Cine-Teatro Denoy de Oliveira, passou a manter os encontros da sua ala de compositores às quartas-feiras, das 20h às 22h. Em 2023, o Kolombolo Diá Piratininga saiu pela primeira vez com seu cordão pelas ruas do bairro, cantando seus vinte anos de existência e também homenageando um dos baluartes da agremiação, o compositor Antônio Carlos, o eterno Tonhão.

Embalados pelas vozes da cantora Sahra Brandão, integrante da Velha Guarda do Vai-Vai; do pai Élcio de Oxalá e pela cadência da bateria Galo de Rinha, o cordão desfilou pelas ruas do bairro, pedindo licença àqueles que, por décadas, fizeram o Carnaval na região e semearam a resistência do Quilombo Saracura. A chuva incessante que caíra naquele ano parecia ser um teste para saber se realmente o cordão era digno de tocar naquele solo, e a cada metro percorrido, os orixás e Nhô João não só abençoaram esse novo momento como abriram os caminhos para os próximos anos. Em um dia marcado pelo tempo nublado, ventos fortes e pela chuva, ao final do desfile, o céu abriu, surgindo um sol quase inclemente. Para alguns, poderia até ser coincidência; porém, para quem acredita na magia do Carnaval e dos nossos protetores, foi a recompensa após o memorável cortejo e a licença definitiva para a permanência no bairro.

Nessas duas décadas, o Kolombolo vivenciou alegrias, transformações, construções e muito aprendizado. Diversas pessoas passaram pela agremiação, desde grandes nomes do samba, passando por artistas que estavam iniciando sua trajetória e hoje pontificam pelas rodas da cidade, até aquela pessoa que, talvez pelo axé propiciado pela roda, resolveu arriscar e rabiscar alguns versos, ou aqueles que comparecem apenas para aproveitar o samba.

Cada um desses personagens, a seu modo, contribuiu na construção de um lugar que respira samba. Cabe ressaltar que o Kolombolo Diá Piratininga, enquanto espaço de resistência e difusor do samba da Pauliceia, considera como paulistas gentes de todo lugar, independentemente de onde nasceram ou sejam oriundos. A todos que abraçam a vida, respeitam, absorvem e compartilham culturas e ancestralidades nesta sofrida metrópole, mantendo acesa a chama da resistência, com sua porta aberta a todos que desejam conhecer melhor o samba feito em São Paulo. Como diz a letra do nosso hino: ninguém chega ao Kolombolo à toa.

Dando continuidade à sua missão, o cordão sairá novamente às ruas do Bixiga no próximo sábado, desta vez para homenagear o dramaturgo santista Plínio Marcos e o cinquentenário do álbum Plínio Marcos em Prosa e Samba–Nas Quebradas do Mundaréu. A marchinha composta por Mario Leite, Sergio Ballouk e Karina Adorno é um convite a relembrar a trajetória de um incansável defensor da cultura popular, especialmente do samba paulista, e um revolucionário do teatro brasileiro.

As andanças de Plínio Marcos pelas quebradas do samba paulista

Gravado em janeiro de 1974 e lançado no mesmo ano pela gravadora Chantecler, o álbum Plínio Marcos em Prosa e Samba–Nas Quebradas do Mundaréu apresentou ao grande público os compositores Geraldo Filme, Zeca da Casa Verde e Toniquinho Batuqueiro. Ao lado de Plínio, os três compositores apresentaram a síntese do samba feito em São Paulo. Indo do rural ao urbano, o álbum apresenta a multiplicidade de sotaques e sonoridades que marcam nosso samba. Como o sotaque rural de Toniquinho Batuqueiro em Ditado Antigo, o lirismo de Zeca da Casa Verde em Linda Manhã e a denúncia do racismo e da violência policial feita por Geraldo Filme em Silêncio no Bixiga. O samba de Geraldo foi uma homenagem póstuma a Pato N’Água, então apitador do Vai-Vai, que fora abatido pelo famigerado Esquadrão da Morte.

“Quem quiser saber meu nome, não precisa nem perguntar. Eu me chamo Plínio Marcos, sou pagodeiro do lugar”. O disco lançado em 1974 não foi a primeira iniciativa de Plínio para a divulgação do samba da paulicéia. Em 1971, foi lançada pela Fermata a trilha do espetáculo Balbina de Iansã, com composições de nomes como Jangada, Carlão, Toniquinho Batuqueiro, Zeca da Casa Verde e Geraldo Filme, interpretadas por Sílvio Modesto, Talismã e Grupo Barra Funda. O disco passou quase despercebido pelo público e pela crítica, apesar do relativo sucesso obtido pela montagem.

De acordo com Oswaldo Mendes, biógrafo de Plínio, a estreia de Balbina de Iansã foi uma festa: “A rua Albuquerque Lins, onde fica o Teatro São Pedro, estava cheia de gente; os guardas proibiam até a entrada de carros no quarteirão. Na porta do teatro, num palanque, instrumentistas; e na rua, desfilando, uma escola de samba”. Porém, o sucesso da primeira noite não garantiu a permanência da peça no teatro localizado na Barra Funda, sendo transferida para a quadra do Morro da Casa Verde, onde, enfim, Balbina encontrou seu público.

Quanto à aproximação do dramaturgo com os sambistas da capital, Mendes aponta a parceria estabelecida com Carlão Costa, o Carlão do Boné, com quem fundaria a Banda Bandalha, como marco inicial. O nome escolhido para a banda, segundo Mendes, remetia à figura de Nenê Bandalho, um jovem bandido metralhado pela polícia ao se render. Ainda segundo Mendes, na Bandalha cabiam todos: “Ilustres e anônimos, malandragem, senhoras de respeito, prostitutas, travestis, batuqueiros e doentes do pé. Na Banda Bandalha, quem chegasse, estava bem-chegado”.

“O samba é a forma da gente minha, falar dos seus mais ternos sentimentos. E é nesse embalo que eu vou. Vou contar do samba da Paulicéia e de sua gente, que é do tamanho do mundo, porque não se acanha de contar as histórias do seu pedaço de chão de terra firme. Com licença dos mais velhos, vamos de samba”. E assim, o espetáculo pensado despretensiosamente ficaria em cartaz por oito meses no Teatro de Arte do TBC.

Como explica Oswaldo Mendes: “O sucesso de Humor Grosso e Maldito das Quebradas do Mundaréu rendeu, em setembro de 1974, convite da Secretaria de Turismo da Prefeitura para uma série de 24 palestras-shows, intitulada Plínio Marcos Canta a História do Samba de São Paulo. Fazia parte do Projeto Universitário, que procurava despertar o interesse por uma carreira profissional, o turismo, e enfatizar a hospitalidade que se deveria dispensar aos visitantes. Uma das estratégias era aproximar os jovens paulistanos da história e da cultura de sua cidade. Humor Grosso também foi o trunfo de Plínio quando as coisas engrossaram nos anos seguintes. Em abril de 1976, ele reuniu os pagodeiros disponíveis — Geraldo, Zeca, Talismã, Silvio Modesto e Toniquinho — e começou uma nova temporada do espetáculo na Igrejinha, casa de música popular brasileira no Bixiga, na confluência das ruas Santo Antônio e Treze de Maio. Sem trabalho na imprensa e com as peças proibidas, Plínio inventava o que fazer”.

“Ôôô, seu Dionísio da Barra Funda, Inocêncio Mulata do Camisa Verde e Branco, Nenê da Vila Matilde, Vitucho, Marmelada, Jamburá, Sinval do Cambuci, Nego Braço, Carlão do Peruche, Pé Rachado do Vai-Vai, a gloriosa alvinegra do Bixiga. Pato N’Água, Vassourinha, seu Zezinho do Morro, Dito Caipira da Unidos de Vila Maria. A todos vocês que estão no samba desde o tempo do tamborim quadrado e do surdo de barrica. Tempo em que a polícia acabava com o pagode na base do chanfralho. Tempo que o negro, para sustentar samba na rua, tinha que fazer e acontecer. A todos vocês, eu peço licença. Dona Sinhá da Barra Funda, Dona Eunice da Lavapés, Donata. Senhoras de valor provado nos desfiles da avenida. A benção, tias, e licença que vou falar do samba da Paulicéia. Juarez da Cruz da Mocidade Alegre do Bairro do Limão, Eduardo Basílio da Rosas de Ouro da Vila Brasilândia, Ângelo do Vai-Vai, Feijoada e Chiclé do Vai-Vai também, alô Mestre Mala, irmão lá do Tatuapé, o dono do samba, alô-alô Renato Correia de Castro, alô-alô Sarmento. Vocês todos que são do samba, me deem licença que vou falar do samba da paulicéia. Vou contar a história de Geraldão da Barra Funda, Zeca da Casa Verde e Toniquinho Batuqueiro. Três histórias do samba de São Paulo. Vou no balanço do samba dos batuqueiros de Santa Izabel. E vou na paz de Oxalá, que me guarda e guia”.

O espetáculo que misturava piadas e causos em meio aos sambas, além de uma forma de Plínio driblar a censura pesada imposta pela ditadura civil-militar — que havia proibido várias de suas obras —, usava a improvisação, a linguagem da malandragem e a genuína cultura popular para denunciar a violência do Estado. Antes de Geraldo Filme cantar Silêncio no Bixiga, o dramaturgo vinha com uma introdução que denunciava o arbítrio vigente: “O maior artista popular brasileiro, o maior apitador de samba que já houve em São Paulo, o melhor chefe da torcida organizada do Corinthians. Ele amanheceu, uma manhã, boiando numa lagoa, comido de peixe e de bala. A notícia chegou no bairro do Bixiga na hora da Ave Maria, e o povo das quebradas do mundaréu chorou a morte do grande sambista. Geraldo, legítimo poeta do povo, chorou por todos nós nessa joia que é Silêncio no Bixiga”.

Dirigido por Emílio Fontana, o espetáculo e, por consequência, o álbum, despertaram o público para um tipo de produção musical que andava fora da mídia. A cidade que, na década anterior, havia se tornado a terra dos festivais, berço da nova MPB, de movimentos como a Tropicália e porto seguro para artistas surgidos durante a Bossa Nova, como Alaíde Costa, Johnny Alf e Claudete Soares; relegava seus sambistas ao quase anonimato, sendo reconhecidos apenas por aqueles que faziam parte ou frequentavam as escolas de samba.

Plínio Marcos em Prosa e Samba apontava para uma direção muito diferente da produção de figuras como Adoniran Barbosa e Paulo Vanzolini, os dois principais nomes do samba de São Paulo para o grande público. O disco do “quarteto” apontava para um samba negro paulista, feito por netos de escravizados, que lutavam para manter a tradição em suas comunidades, escolas e quintais. Forjando um samba urbano que não renegava o passado rural, pelo contrário, não só exaltava essa herança como procurava adaptá-la aos “novos tempos”.

Composto por treze faixas, o álbum é aberto por Geraldo Filme, grande compositor e articulador político do Carnaval e do samba paulistano, com passagem por escolas como o Paulistano da Glória, Unidos do Peruche e Vai-Vai, responsável por cinco faixas: Tiririca; Vou Sambar N’Outro Lugar; Tradições e Festas de Pirapora, samba composto para a Unidos do Peruche no Carnaval de 1971; a já mencionada, Silêncio no Bixiga; e Tebas, o Escravo, samba do Paulistano da Glória para o Carnaval de 1974.

Em seguida, entra em cena José Francisco da Silva, ou Zeca da Casa Verde, o compositor que passou por agremiações como Camisa Verde e Branco, Morro da Casa Verde e Rosas de Ouro, apresentando quatro sambas: Brasil Recebe o Mundo de Braços Abertos, samba do Morro da Casa Verde para o Carnaval de 1972. Congada e as líricas Linda Manhã e Noite Encantada completam o repertório.

Por fim, quem adentra a roda é o piracicabano Toniquinho Batuqueiro, que, assim como milhares de jovens, decidiu trocar o interior pela capital e, enquanto trabalhava como engraxate na Sé e República, travou contato com a tiririca e outras mirongas. Compositor de grande versatilidade, integrou a ala de compositores das escolas Rosas de Ouro, Unidos do Peruche e Unidos de Vila Maria. No disco, é responsável pelas faixas Ditado Antigo e Bloco do Chora Galo.

O disco ainda conta com o tema folclórico De Pirapora a Barueri, também interpretada por Toniquinho, e o instrumental Samba de Lei, com o conjunto Batuqueiros de Vila Santa Isabel, responsáveis pelo acompanhamento musical do álbum. Ao completar cinquenta anos, Plínio Marcos em Prosa e Samba–Nas Quebradas do Mundaréu continua uma obra obrigatória para quem deseja conhecer os caminhos e descaminhos do samba de São Paulo e a faceta sambista de Plínio Marcos, o bendito maldito; como bem nomeou Oswaldo Mendes na essencial biografia desse santista insubmisso.

Ao apresentar uma seleção de peças do autor, a pesquisadora e crítica teatral Ilka Maria Zanotto aponta que: “Plínio Marcos dizia-se um contador de histórias com princípio, meio e fim, e era bom nisso como poucos em nossa dramaturgia; aristotélico, sem que isso o preocupasse minimamente, mas por intuição. Esquadrinhava suas criaturas como o ourives contempla as facetas do prisma”. A primazia apontada por Ilka fica perceptível para aquele que ouvir o disco do começo ao fim. As intervenções de Plínio, como introdução aos sambas, servem como a linha que costura e traz coerência para essa pequena história do samba de São Paulo, cantada por Geraldo, Zeca e Toniquinho.

Daniel Costa é jornalista, historiador, compositor e integrante do G.R.R.C Kolombolo Diá Piratininga.

Serviço: Desfile do cordão carnavalesco Kolombolo diá Piratininga
Quando: 22/02/2025
Horário: Concentração 12 h com saída às 13 h
Local: Cine Teatro Denoy de Oliveira, Rua Rui Barbosa, 323, Bixiga.

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