Manoel Bomfim, o intelectual que desenhou um futuro que jamais chegou

Sem ser historiador ou sociólogo, conseguia imprimir uma visão moderna em um país em que viceja o senso comum primário e selvagem.

Descobri Manoel Bomfim em algum momento de 1994. Era Semana Santa, comprei o livro “América Latina, Males de Origem” e levei para ler nos feriados. Mudou para sempre minha maneira de ver o Brasil.

No início do século 20, o diagnóstico de Bomfim era absolutamente contemporâneo, ainda mais naqueles anos de pacotes econômicos e de imposição da ultrafinanceirização.

Certa vez, conversando com o professor Antonio Cândido ele me disse que seu pai havia chamado a atenção para Bomfim ainda nos longínquos anos 30. Depois, soube que no final dos anos 60 (ou seria 70), Darcy Ribeiro relembrou Bomfim.

A partir da leitura, tornei-me um militante da causa de Bomfim. E creio que os artigos que escrevi na Folha ajudaram a convencer Francisco Weffort a incluí-lo em uma coleção Brasilianas editada pelo Ministério da Cultura; além de ter convencido o influente crítico Wilson Martins sobre sua relevância, depois de ter escrito um prefácio crítico em uma obra relançada de Bomfim.

Nesse momento em que os sociólogos e historiadores se empenham em desvendar oi mistério de uma formação que, em pleno século 21, resultou em Michel Temer e Jair Bolsonaro, seria relevante relembrar Bomfim

https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1994/4/03/dinheiro/9.html

http://www1.folha.uol.com.br/fsp/1994/3/02/dinheiro/7.html

Valho-me do prefácio de Ronaldo Conde Aguiar à edição de 2006 do livro “O Brasil na História: Deturpação das tradições / Degradação política”, de Bomfim, escrito originalmente em outubro de 1926 e publicado em setembro de 1929.

O sergipano Bomfim tinha formação de psicólogo. E foi o primeiro a se insurgir contra as teorias raciais. Depois, enveredou por diversos temas, inclusive na história e na sociologia. Sem ser historiador ou sociólogo, conseguia navegar por todas as formas de conhecimento e imprimir uma visão moderna, civilizada, em um país em que, até hoje, viceja o senso comum primário e selvagem.

Vamos a alguns trechos relevantes do prefácio:

  • O atraso brasileiro (e dos países latino americanos) era o produto mais evidente da exploração econômica das colônias pelas metrópoles e dos escravos e trabalhadores pelos senhores e proprietários.
  • Evidenciando a sua formação médica, o sergipano utilizou o conceito de parasitismo social para caracterizar as relações entre nações hegemônicas (parasitas) e nações dependentes (parasitados) e entre classes dominantes e classes dominadas. Numa época em que o conceito de imperialismo estava ainda em aberto,1 o conceito de parasitismo permitiu a Bomfim desenhar um quadro explicativo sobre a dominação.
  • Bomfim foi, na rea lidade, o primeiro pensador social a evidenciar que o Estado bra sileiro era o produto da transposição do Estado português para a colônia. “O Estado”, disse ele, “era um corpo alheio à nacionali dade, vivendo à custa da colônia, alimentando toda a metrópole.
  • A saída, argumentou Bomfim, seria um amplo projeto de educação básica e pública que, além da instrução formal, ensinas se também ao brasileiro o sentido da cidadania (ou seja, “a cons ciência de seus direitos e deveres”), transformando os indivíduos em agentes conscientes das mudanças sociais (“do progresso necessário”).
  • No Brasil, notou Bomfim, o Estado jamais representou ou defendeu os interesses gerais da sociedade, mantendo ao mínimo as ações de “utilidade pública” — ou seja, os “gastos sociais”, como dizemos hoje — em favor das despesas com a manutenção da máquina governamental e, principalmente, tal como acontece ainda hoje, com o pagamento dos empréstimos externos.
  • Para demonstrar tudo isso, Bomfim realizou uma demolido ra análise do orçamento de 1903, evidenciando, conforme destacou o jornalista Luís Nassif, “há quanto tempo a classe política brasileira perdeu a noção de nação”. Para um orçamento de 330 mil contos, 122 mil contos (37% do total) representavam os gastos com o funcionamento do governo e 133 mil contos (40%).
  • No meu artigo, mencionada por Aguiar, destaco uma frase de Bomfim: “”Mesmo os mais ousados entre os homens públicos, os mais revolucionários, são tão conservadores como os conservadores de ofício. (…) Amanhã será tudo como ontem (…) Parece um paradoxo, tão estranho é: pouco importa a luta, os conflitos, levantes e revoluções que tenham trazido o indivíduo ao poder: uma vez ali, ‘sentindo as responsabilidades do governo’, o verdadeiro homem se revela: tudo parou, o revolucionário de ontem desaparece, as gentes ponderadas e graves podem se aproximar.”.
  • Daí considerar — bem antes de Caio Prado Júnior, cujo livro de estreia é de 1933 — que o futuro da nação brasileira já estava, em linhas gerais, “delineado” no seu passado, nas etapas anteriores da sua formação, todas elas marca das, a ferro e fogo, por tensões entre dominadores e dominados — ou, para sermos mais atuais, entre globalizadores e globalizados.
  • Em relação a Tiradentes, figura até hoje decantada nas soleni dades oficiais, Bomfim argumentou que a consagração do “pobre homem de São João del-Rei”  foi a maneira pela qual a historiografia oficial fez desaparecerem os verdadeiros mártires e pioneiros da independência brasileira, valorizando, no entanto, um movimento (a Inconfidência Mineira. RCA) inconsequente e passivo. “Foi nos esconderijos de tais histórias que desapareceram os verdadeiros precursores, aqueles cuja existência, mesmo com a derrota que lhes tirou a vida, tornou impossível a submissão a Portugal.” E mais: “que mal Tiradentes podia fazer ao bragantismo? Nenhum”. Tiradentes transformou-se numa espécie de contestador tolerado pelas elites, pois, a rigor, não questionou a fundo nem levantou-se en arnas contra o poder opressor dos dominantes.

Voltarei a escrever sobre o livro, à medida em que for sendo lido.

Luis Nassif

2 Comentários

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  1. Vou tomar a liberdade de registrar aqui link de exposição q fiz ano passado em curso de extensão, precisamente sobreh o pensamento desta referência do pensamento social brasileiro, que buscou entender o Brasil e a América Latina a partir de nossas especificidades, sem apreço a fórmulas importadas. Grande Manoel Bomfim! Ótima lembrança e txt esclarecedor, Nassif.

    https://www.youtube.com/live/s2IDmbpVoro?feature=share

  2. Bravo, Nassif. Trabalho com Bonfim em minhas aulas de Sociologia, Antropologia e História da Educação, e há interesse imenso de estudantes para com ele e a atualidade de sua obra. Sobretudo na temática Racismo e Educação no Brasil.

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