Monteiro Lobato e a questão do racismo

Comentário ao post “As obras e as polêmicas de Monteiro Lobato

Do Aletria

Monteiro Lobato: um racista fracassado – Leitor errante

A novela Monteiro Lobato há de durar alguns milhares de capítulo, mas a requentada causada pela audiência conciliatória no STJ parece demonstrar que após dois anos, a polêmica continua servindo apenas de plataforma para manifestações políticas e que nenhum dos lados se preocupou em realmente debater a questão, para justificar aquela posição agnóstica que sempre surge durante as polêmicas: ao menos serviu para discutir o assunto.

Por um lado, continuam defendendo Lobato como se o parecer do MEC que causou todo o caos fosse uma proibição da obra de Lobato nas escolas. E do outro lado, continuam ignorando a obra de Lobato para levantar a bola do combate ao racismo, sem conhecerem a obra em questão ou qualquer aspecto mais profundo da obra de Lobato.

Isso não tem nada a ver com educação e literatura.

Tudo começou em 2010, quando Antônio Gomes da Costa Neto fez uma denúncia indicando que a obra “Caçadas de Pedrinho” apresentavam expressões racistas, especialmente relacionadas ao tratamento dispensado à personagem Tia Nastácia.

A polêmica aumentou, pois a revista Bravo havia publicado algumas cartas “bombásticas” mostrando que Monteiro Lobato, entre outras coisas, admirou a Klu Klux Klan e a eugenia. Como de costume, nenhuma reflexão valiosa foi produzida pela matéria, nada além, de alimentar os movimentos que combate o racismo. Assim, a guerra contra “Caçadas de Pedrinho” virou uma guerra contra Lobato.

Paralelamente, os bastiões culturais brasileiros, partiram em defesa ao ator e a obra. A idéia de censura foi levantada e a importância histórica e cultura do autor foram usadas em sua defesa. Não creio que muitos desses autores sequer se lembrassem das leituras da infância. Afinal, não vi muitos argumentos que refutassem que os argumentos favoráveis ao racismo. A principal defesa era: Monteiro Lobato foi um homem do seu tempo.

Com esta defesa que não passa de um apelo à autoridade canônica de Lobato, a ideia do racismo inquestionável de Lobato cresceu. A polêmica ficou congelada até os últimos dias, quando o STJ realizou dois encontros malogrados para avaliar o caso. De um lado, o MEC, disposto a cumprir o recomendado pelo avaliador, do outro o IARA, que de maneira oportunista, exige que algo seja feito além do parecer do próprio MEC, pois estão certos do racismo. É claro que no Brasil, racismo é crime, então pouco entendemos qual é a posição exata da IARA, que prefere aparecer na mídia por conta de um programa do governo do que perseguir efetivamente o crime de racismo. Por outro lado, a posição extremista da IARA fica mais aparente, já que no melhor estilo “caça aos monstros” já começaram a perseguir Monteiro Lobato de maneira direta, ao “denunciarem” o racismo da obra a “A Negrinha”.

A completa falta de dialogo e o oportunismo desonesto de atitudes da IARA pode afetar um bom programa de distribuição de livros. E mais, ao invés de auxiliarem a formar leitores, esses senhores querem, no melhor estilo reacionário que caracterizou o pensamento ignorante que propiciou exatamente o preconceito que dizem combater.

É preciso conhecer a obra e o autor bem para ter a tamanha certeza que vêm demonstrando ao afirmarem com certeza que Lobato era racista, assim como a sua obra.

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Por exemplo, não há dúvida da simpatia de Lobato pela eugenia. O que é falso é que isso faz de Lobato quase um Nazista, coisa sugerida por diversos comentários que ligavam a eugenia à origem do nazismo (outra falsidade, a eugenia era apenas conivente ao pensamento nazista, não uma de suas causas). A eugenia estava naquela época ligada ao conceito da superioridade cultural europeia. Na mixórdia que justificava a eugenia, primava a ideia de que os outros povos não desenvolveram o potencial por uma inferioridade racial, justificada pelo domínio geopolítico europeu. Eram as maravilhas do darwinismo social. As leituras europeias viam o Brasil como um fracasso garantido pelo alto grau de miscigenação que ocorria aqui. A eugenia gozou de grandes simpatias pela elite intelectual, que claramente, tinhas grandes tendências europeias. É essa a eugenia que agrada Lobato, que segue a moda de seus “pares”. Nada tem a ver com a eugenia nazista, com o foco na biologia e manipulação genética. Basta olhar o a principal obra sobre eugenia, “Admirável Mundo Novo” de Aldous Huxley. A sociedade daquele mundo não só faz o controle genético, mas utiliza drogas e a cultura para criar sua “utopia”. Livros não são permitidos, hábitos de consumo reforçados e os intelectuais convidados ao exílio voluntário. Lobato também não dissociava a cultura da eugenia. Afirmava que a literatura e não os laboratórios seriam seu instrumento para o aprimoramento social.

O problema é que a posição de Lobato é tampouco clara. Ele elogia a eugenia de forma específica para um interlocutor, mas em outros momentos parece ir contra a corrente e valorizar a mistura racial. Os tempos são outros, vamos lembrar que o mito das três raças começava a ser construído pelo movimento modernista e era um dos símbolos do nacionalismo brasileiro. Lobato é um nacionalista ferrenho ao mesmo tempo em que é um grande admirador da civilização é progresso. A contradição pode ser encontrada na obra lobatiana. O primeiro deles é o famoso inquérito do saci. Ao prefaciar a obra dedicou a obra à memória da Tia Esméria, a ama que o havia educado como criança. Uma negra que seria o modelo da Tia Nastácia e que seria muito melhor que do que os teuto-ítalo-nipônica que vieram civilizar-nos. Existe um ataque aos grupos que naquele período migravam para o Brasil, ocupando como mão de obra o espaço dos negros que haviam sido libertos há pouco tempo. Continua então, defendendo a figura do Saci, que identifica como resultado da mistura de influências culturais. Acaba elevando esse símbolo mestiço ao panteão mundial dos diabretes, comparando-o com personagens de Shakespeare.

Lobato não é consistente. Parece selecionar quais elementos culturais prefere e quando pode ou não valorizar a mistura cultural brasileira. Tais elementos também aparecem naquela que é sua principal obra e também, aquela onde parece ter colocado em prática a ideia de utilizar a literatura como instrumento de formação dos futuros leitores brasileiro:

“- A diferença única é que a história é escrita pelos ocidentais e por isso torcida a nosso favor. Vem daí considerarmos como feras os tártaros de Gêngis-cã e como heróis, com monumentos em toda parte, aos célebres “conquistadores” brancos. Na verdade, porém, manda dizer que tanto uns como outros nunca passaram de monstros feitos da mesmíssima massa, na mesmíssima forma.” – História do mundo para as crianças, pg.132 (As citações das obras do Sítio pertencem a coleção que a Brasiliense publicou nos anos 70.).

Ou seja, Monteiro Lobato, por meio da Dona Benta, faz uma afirmação que contradiz a posição de alguém que esteja completamente comprometido com a eugenia e a superioridade da raça branca. De fato, para Lobato não há vencedores ou superiores na história. Essa posição relativista já havia sido confirmada anteriormente na mesma obra. Quando questionada qual das raças seria superior, Dona Benta escolhe a ariana, mas deixa claro que é uma escolha pessoal e se fosse de alguma outra raça, a sua escolha seria diferente.

É este o Monteiro Lobato da eugenia. É possível ter a certeza da posição de Monteiro Lobato que demonstram os seus perseguidores? Não. Mas e a Klu Klux Klan?

* * *
Realmente, o elogio que Lobato faz à KKK não é louvável. Ainda assim, devemos compreender o que significa esse elogio. A visão que havia da KKK no passado é completamente diferente da visão que temos hoje. Basta lembrar a cena da morte do segundo marido de Scarlet OHara. Aquela cena é uma versão do nascimento da KKK. Cavaleiros sulistas que buscam justiça com as próprias mãos após o caos causado pela guerra civil e a abolição. Scarlet havia sido atacada por um grupo de pobres em uma aglomeração. O marido, o bom moço Ashley e alguns outros se disfarçam para visitarem o local para uma limpeza. No livro, a referência à KKK é mais explícita. No filme, a passagem é atenuada para evitar polêmicas. Mas ainda assim, fica demonstrado que a KKK era vista como algo positivo – as denúncias que acabaram com essa farsa, são produtos do trabalho dos movimentos de combate ao racismo, especialmente efetivos na segunda metade do século XX. A KKK que Lobato elogia não é a legião de assassinos encapuzados. É uma ordem de senhores de terra, moralizantes, cristãos, ocupados em organizar a sociedade. Elitistas e conservadora, sem dúvida. Como a TFP, como as famílias Sarney, os ACMs, e tantos outros que temos o prazer de rever durante o período eleitoral.

Entretanto, encontrar no discurso de Lobato repúdio à superioridade da raça branca não é difícil. Na história “A violeta orgulhosa”, publicado na obra “Histórias diversas”, uma Violeta nasce branca e por isso se considera superior às outras é reprimida por Emília e Visconde. A boneca chega a dizer:

“- Incrível que até entre as flores haja estes sentimentos baixos tão comuns entre as criaturas humanas” – Histórias diversas, 63 pg.

Que sentimentos são estes? A ideia de que a cor que nascemos pode nos tornar superior. Não parece um sentimento condizente com alguém queimando cruzes e usando lençóis brancos, parece? Lobato age como vários intelectuais agiram, apesar de toda erudição, são capazes de ingenuidades que as gerações posteriores condenarão. É o caso de Voltaire e o “déspota-esclarecido” ou a posição da elite intelectual européia e o comunismo nos anos sessenta. Sartre e a defesa ao regime chinês.

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Ma a grande pegadinha de toda essa polêmica é que não é Monteiro Lobato que está sendo avaliado. O parecer se refere somente a uma única obra e foi a leitura deste material apenas que orientou o parecer. Nada a ver com cartas e as outras obras. 

Basicamente dois momentos da “Caçadas de Pedrinho” foram levantados como evidência do racismo na obra. O primeiro deles é o momento no qual Tia Nastácia sobe em um mastro e é comparada a um macaco. A horda de indignados que urraram contra o absurdo de comparar um negro a um macaco falharam em uma coisa. Em ler. No mais claro caso de “analfabetismo seletivo”. Tornaram-se especialistas em algo lendo apenas as notícias de jornais e não a obra que deram a criticar. Pois se lessem o livro perceberiam que Monteiro Lobato chama todos que sobem em árvores de macacos. Logo no começo do livro, os meninos estão caçando uma onça e: 

“Foi uma debandada. Cada qual tratou de si e, como se houvessem virado macacos, todos procuraram salvação nas árvores. Felizmente havia ali um pé de grumixama que dava para abrigar o grupo inteiro. Nele treparam, sem dificuldade, Pedrinho, Narizinho e Emília.” – Caçadas de Pedrinho – pg. 14

Isso mesmo. A não ser que os meninos e a boneca sejam negros, então está provado – sem dúvida – que quando Lobato se refere a Tia Nastácia, também está fazendo a mesma referência linguística: o proverbial “ágil feito um macaco.” Não é um estereótipo racista e uma leitura cuidadosa demonstra isso. Cito ainda outro momento quando Monteiro Lobato usa os macacos como referência. Os bichos da mata estão com medo dos meninos e um bugio sugere que mudem para outra mata. Uma capivara discorda e diz:

“– Imbecil! – resmungou a capivara, furiosa de tamanha de tamanha asneira. – Não é à toa que os macacos se parecem tanto com os homens.” – Pg. 17

Isso mesmo. Para Monteiro Lobato os macacos se parecem com os homens. Todos os homens, não uma raça específica.

A outra expressão que causa revolta não é causada pela falta de leitura. Emília explica que as onças pretendem devorar todos no sítio, inclusive Tia Nastácia que tem carne negra. Ela está descrevendo as ações dos vilões da história. Ou seja, suas falas são vis. Lobato exagera aqui, exatamente para colocar em campo o perigo, o mal da história e porque será o drama causado pela negativa de Tia Nastácia em usar pernas-de-pau que o provocará o desfecho do livro. É possível ver racismo? Sim, mas para isso teríamos de imaginar que os personagens do sítio são racistas, estes mesmos personagens que censuram diversas vezes a escravidão como na “História do mundo para crianças”:

“Aqui no Brasil tínhamos também esse cancro da escravidão – e para a vergonha nossa formos o último país do mundo a acabar com ela.” – Pg. 165

Cancro é como a escravidão é chamada. Dona Benta também diz que a culpa da escravidão e das mazelas na África é da civilização européia, ironizando a suposta superioridade moral desta. Os personagens do Sítio não são racistas, então como explicar a Emília? Ora, a Emília não tem explicação. Ela é censurada diversas vezes, chamada de torneirinha de asneiras, e outras coisas, indicando que nem tudo que diz é correto. Ela incorre a extremos. Mas esses extremos não são apoiados pelos personagens do sítio. Por exemplo, quando Tia Nastácia não corta as asinhas do anjinho e este parte de volta para o céu, Emília fica furiosa. Por isso procura Tia Nastácia e incorre em ofensas, essas mais terríveis do que as anteriores. Dona Benta ao ficar sabendo, censura Emilia:

“…Perdemos o anjinho por sua culpa só. Burrona! Negra beiçuda! Deus que te marcou, alguma coisa em ti achou. Quando ele preteja uma criatura é por castigo.”

Tia Nastácia rompeu em choro alto – tão alto que Dona Benta veio ver o que era. (…)

– Emília! Respeite os mais velhos! Não abuse! (…)

– Como está ficando insolente! – murmurou Dona Benta.” – As memórias de Emília, pg. 125.

Não só Dona Benta faz o que os censores atuais (censurar não é somente proibir), como a reação de Tia Nastácia – chorar – indica que Lobato quis mostrar que Emília havia ultrapassado os limites. Não há forma mais clara de dizer que Lobato considera o que Emília diz como sendo ofensas e demonstra que causam dor nos outros. Não é algo sequer dissimulado: efetivamente para o leitor fica demonstrado que é errado, já que ferem um ente querido. O que talvez esperassem os leitores modernos? Que Tia Nastacia, ao invés de chorar, subisse na cadeira e fizesse um funk de protesto? Mas mesmo eles, enfrentariam uma personagem mais rica e complexa que todas a ressacas de Capitu; a Emília é um desafio para todos.
* * *
Por isso ela é o personagem símbolo do livro de Ilan Brenman, “A condenação de Emília: o politicamente moderno na literatura infantil” (Aletria, 2012). Emília não é a razão, ela é a liberdade que requer a imaginação. Imaginação que é o fogo que molda, não só o futuro leitor, mas a inteligência de todos os homens do futuro. Por isso o Visconde diz:

“Na realidade, o que Emília é, é isso: uma independência de pano – independente até no tratar as pessoas pelo nome que quer e não pelo nome que as pessoas têm. Para ela eu sou o Milho, o Almirante é o Bifre…” Memórias da Emília, pg.125.

Amordaçar a Emília simbolizaria aceitar a mesmice e a pasmaceira que formou esse país até agora. Ela é capaz de reflexão e autocrítica. No final daquele mesmo livro, Emília inicia uma reflexão quase joyceana sobre o que ela realmente era e os moradores do sítio, incluindo coisas inanimadas como árvores. Finalmente, chega até a Tia Nastácia:

“Eu vivo brigando com ela e tenho-lhe dito muitos desaforos – mas não é de coração. Lá por dentro gosto ainda mais dela do que seus afamados bolinhos. Só não compreendo por que Deus faz uma criatura tão boa e prestimosa nascer preta como carvão. É verdade que as jabuticabas, as amoras, os maracujás também são pretos. Isso me leva a crer que a tal cor preta é uma coisa que só desmerece as pessoas aqui neste mundo. Lá em cima não há essas diferenças de cor. Se houvesse, como haveria de ser preta a jabuticaba, que para mim é a rainha das frutas?” – pg. 129

Primeiro, Emília reconhece o apreço por Tia Nastácia e seu erro ao dizer-lhe desaforos. Então, parece ainda estar presa aos chamados estereótipos racistas, ao não compreender a razão pela qual Deus faria uma criatura boa e negra. Mas amparada pelo raciocínio das páginas anteriores, quando diz que jabuticaba é a sua fruta favorita, Emília passa a eliminar o racismo, ao perceber que existem coisas boas e negras. E que a cor preta só é um problema aqui no mundo e não lá em cima, ou seja, que são os homens os responsáveis pelo problema e no fundo todos são iguais.

Por um lado, os leitores modernos vão dizer que são clichês ofensivos. Ou que talvez isso não fosse humor, já que “obviamente” Lobato é racista. Mas esse pensamento é o mesmo que levou Lobato a condenar a escravidão e a flor violeta. Essa patrulha do politicamente correto, que já demonstrou um lado reacionário, quer apenas evitar que criança aprenda a lidar com o texto da mesma forma que Emília fez. Aquele parágrafo demonstra a linha de raciocínio de alguém que se apropriou de um texto, de uma ideia, e aprendeu.

Que objetivo teria um autor ao criar uma linha de ações que leva a personagem principal a concluir, basicamente, que negros também são bons e que no fundo, todos são iguais? É possível que argumentem que tal mensagem poderia ser transmitida sem que fosse necessário o trauma causado pelo conflito anterior? Claro. Mas, não percebem que o achatamento cultural, a negação dos conflitos, é exatamente um dos elementos que permitem a Distopia do “Admirável Mundo Novo”? Essas diferenças existem, portanto a educação não passa por negá-las, mas em nos ensinar a lidar com elas. É a Emília, personagem tão livre, que pode ser tola e sábia, que pode ser utilizada para colocar os conflitos nas histórias, provocando a reflexão que impede a eugenia. Não o contrário.
* * *
É claro que professores devem estar preparados, é claro que todo material de apoio deve auxiliar o educador a lidar com questões complexas, mas uma nota explicativa que afirma, como querem pretender, a existência de racismo na obra “Caçadas de Pedrinho” é uma mordaça. Não é ensinar. É ceder á pressão do politicamente correto, a serviço da causa nobre que é o combate ao racismo.

Prova do radicalismo é o ataque que a Iara fez ao conto Negrinha. De maneira histriônica foi dito que os negros não podem ser escravos para sempre. Ou que o conto não deixa claro que os sofrimentos que a personagem sofre são errados. Até mesmo que o conto não passa de uma mera representação do seu tempo (tal argumento, agora usando contra Lobato) como se em uma obra de arte importasse apenas o registro histórico e não a emoção que o conto provoca. Hora, ou o advogado que diz isso é um dos muitos alfabetos funcionais que chegam até o ensino superior no Brasil ou não é honesto. Até a frase inicial da obra diz que negrinha é pobre. Não é sobre dinheiro, é por sofrer. Apesar da ironia de Lobato, é claro que ele diz que os tormentos da personagem são ruins e pretende provocar pena no leitor. Por exemplo: 

“Tinha de contentar-se com isso, judiaria miúda, os níqueis da crueldade.” 

Judiar, crueldade. Será senhor advogado, que usamos essas palavras para coisas boas? Será que o mero registro jornalístico tentaria usar recursos melodramáticos para informar àquela população o sofrimento do negro? E mais, se Lobato apenas registrava a sociedade como era, como é possível acusar de racismo, já que racismo é uma expressão de valor negativo contra uma raça? Seria como acusar os livros de história de racismo por registrarem a existência do mesmo. 

Enfim, a história conta como uma negrinha é torturada, sem direito à infância, até que duas sobrinhas da dona da casa, o algoz na personagem, permitem que brinque com uma boneca. E então, Lobato diz: 

“Negrinha, coisa humana, percebeu nesse dia da boneca que tinha uma alma. Divina eclosão! Surpresa maravilhosa do mundo que trazia em si e que desabrochava, afinal, como fulgurante flor de luz. Sentiu-se elevada à altura de ente humano. Cessara de ser coisa — e doravante ser-lhe-ia impossível viver a vida de coisa. Se não era coisa! Se sentia! Se vibrava!”

Ela se sente humana pela primeira vez. O final é trágico, pois privada de outros dias como aquele, ela falece lentamente. Mas é impossível negar que Lobato denúncia a violência aos negros mesmo após a escravidão. Ele se torna humana ao primeiro carinho. É impossível a leitura que é feita pela IARA. O conto é feito de forma que o leitor se apiede da negrinha. Chamar de simples registro dos fatos é contraditório e falso. 

Monteiro Lobato é complexo. Não sei como têm tantas certezas os que querem marcá-lo como racista, pois como demonstramos, como racista, foi um racista fracassado. 

Mas, como dizemos, temos de falar do “Caçadas de Pedrinho” e o como o livro termina? 

Não como uma rebelde moderna. Não. Os personagens estão se divertindo galopando no lombo do rinoceronte quando Tia Nastácia se manifesta e diz que é a vez dela e então:

“Negro também é gente, Sinhá…”

Leitor Errante (João Camilo de Oliveira Torres)

Luis Nassif

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