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Dora Incontri é paulistana, nascida em 1962. Jornalista, educadora e escritora
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Quando o totalitarismo e a narrativa mítica reescrevem a história, por Dora Incontri

No espiritismo brasileiro, infelizmente, há uma narrativa mítica que percorre o movimento, que embasa um discurso reacionário, ufanista e destituído de cientificidade de muitos espíritas, que, com isso, se afastam do espírito crítico de Kardec

Talvez o livro mais deprimente que eu li na vida foi 1984 de George Orwell, uma ficção distópica, de um Estado totalitário que consegue sufocar toda expressão de amor e de liberdade dos indivíduos. Considerei deprimente porque no final da história, os personagens, que estavam na resistência, acabam se rendendo e se submetendo pela tortura e pela manipulação. É como se diante do totalitarismo sádico, inteligentíssimo, chegaria um dia em que o ser humano não pudesse mais ter redenção e não houvesse mais um horizonte de liberdade e de humanidade…


Pois nesse mundo orwelliano, existe um tal de Ministério da Verdade, incumbido de reescrever a história, num processo de doutrinação do povo.


Orwell não tirou de sua imaginação os métodos relatados em seu livro, publicado em 1949. Já havia então no mundo a tenebrosa experiência nazista e a não menos trágica tirania stallinista. (Sim, o totalitarismo pode ser de direita ou de esquerda e, sim, o nazismo é de extrema direita!)


Métodos de calúnia, manipulação da informação, incitamento ao ódio, criação de bodes expiatórios, sumiço de personalidades históricas ou sua degradação… de tudo isso se valem tais sistemas. Os totalitários reescrevem a história à vontade, sem nenhum compromisso com a própria história e com a verdade.


Entretanto, entre os nazistas, houve um aspecto ainda mais sombrio nessa rescrita da história: o apelo a coisas ocultas, ao esoterismo fantástico. Hoje já foi sobejamente pesquisado que havia uma rescrita mitológica da história na Alemanha nazista e um fascínio por um ocultismo escuro. Juntava-se o pretenso heroísmo mítico germânico a uma superioridade racial justificada por teorias pseudocientíficas, apoiadas num esoterismo sem nexo.


Vê-se, pois, que a história pode ser torcida de mil maneiras, quando não é feita por historiadores, por pesquisa séria, documentada. É claro que toda história narrada pode ter algum viés, alguma interpretação subjetiva, condicionada, mas não pode ser uma distorção escancarada do real, para defender sistemas totalitários e degradantes da humanidade.


No espiritismo brasileiro, infelizmente, há uma narrativa mítica que percorre o movimento, que embasa um discurso reacionário, ufanista e destituído de cientificidade de muitos espíritas, que, com isso, se afastam do espírito crítico de Kardec. Um livro – talvez o pior que Chico Xavier psicografou (houve muitos que são de razoáveis a ótimos): Brasil, coração do mundo, pátria do Evangelho, que traz uma narrativa melosa, com direito a anjos, louvações a D. Pedro II, justificativas da escravidão e outras aberrações.

Essa obra, que justamente quer recontar a história do Brasil, foi lançada na vigência do Estado Novo, portanto num momento em que vivíamos a ditadura de Getúlio Vargas. Mais tarde, infelizmente também, emitindo uma posição pessoal em nome dos espíritos, no programa Pinga Fogo, Chico Xavier defendeu a ditadura militar, em pleno AI 5, momento em que tantos brasileiros estavam sendo mortos e torturados. Claro está que Chico, uma pessoa simples, de uma geração e de um meio conservador do interior de Minas, não tinha a necessária consciência política e social, para fazer uma apreciação justa daquele momento histórico. Mas não podia ter emitido uma opinião pessoal em nome do espiritismo. Aliás, nesse exato momento, faltou-lhe a tão propalada humildade que a maioria dos espíritas lhe atribuem. Ele devia ter respondido que política não era de sua alçada e que não se manifestaria a respeito. Muitos continuam emitindo opiniões pessoais em nome do espiritismo, ainda no século XXI, com menos atenuantes do que o Chico, porque têm muito maior oportunidade de acesso à informação.

O que há de comum em todas essas posturas descritas acima e a intenção do (des)governo atual de recontar a história do golpe militar? Há o solene desprezo, por ignorância ou má fé, da história enquanto história. Há um obscurantismo de rejeição à ciência, ao conhecimento e, assim, à própria busca honesta, empenhada e profunda da verdade.

Não se pode entregar a narrativa da história a políticos, militares, médiuns, esotéricos, curiosos… (como é o caso do guru Olavo, com seu asco pelo conhecimento científico). É preciso que a história seja feita por historiadores: simples assim! E por historiadores de diferentes correntes, que darão versões nuançadas dos fatos, num debate acadêmico livre e plural. De modo que diferentes interpretações sejam possíveis, mas tendo-se sempre como referência uma base documental, um respeito pelas fontes e um compromisso de integridade intelectual.

No caso de médiuns, Kardec sempre alertava que em nosso diálogo com os espíritos, não se trata de eles fazerem por nós a busca da ciência, a construção histórica coletiva e nem a nossa trajetória pessoal. O mundo cabe a nós, vivos da terra, gerirmos, mudarmos, contarmos sua história e sermos sujeitos dela. Os vivos do Além podem nos trazer orientações morais, apoio, consolo e informações de como estão no do lado de lá. O resto é responsabilidade nossa!

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Dora Incontri é paulistana, nascida em 1962. Jornalista, educadora e escritora

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