
O partido muito alto de Murilão da Boca do Mato
por Daniel Costa
Qualquer pessoa que esteja disposta a produzir alguma reflexão acerca do samba deve encarar a tarefa adotando uma perspectiva de pluralidade, afinal, não temos apenas um samba, e sim vários sambas. Samba sincopado, de breque, de terreiro, de quadra, chulado, calangueado, samba choro, samba canção e claro, o partido alto. De acordo com o historiador e escritor Luiz Antonio Simas: “No passado, o samba de partido alto era uma espécie de samba instrumental e ocasionalmente vocal, constante de uma parte solada chamada chula e um refrão – que o diferenciava do samba corrido. Hoje o partido é uma forma de samba cantado em desafio por duas ou mais pessoas, composto pelo refrão ou “primeira” e uma parte solada com versos improvisados ou de repertório tradicional”.
Dentro do universo do samba, o partido alto sempre fora visto pelos próprios compositores e músicos como uma forma de samba “superior”. Principalmente pela agilidade daqueles que se propõem a versar, habilidade somada a densa capacidade de improviso e raciocínio exigida dos partideiros. Afinal, se o versador demorasse para responder seu oponente no duelo era automaticamente “engolido” pela roda, perdendo o desafio. Entre os grandes partideiros podemos destacar nomes como Aniceto do Império, Nilton Campolino; os mangueirenses Xangô, Jorge Zagaia e Tantinho, os salgueirenses Almir Guineto, Anescar e Gracia; os portelenses Catoni, Velha e Camunguelo; além de nomes como Renatinho Partideiro, Marquinhos China, Jovelina Pérola Negra, Arlindo Cruz, Zeca Pagodinho e tantos outros que seguem defendendo essa forma tão rica de fazer samba.
Nesse manancial de grandes nomes, ainda podemos apresentar figuras como o excelente Padeirinho da Mangueira. Nascido em 1927, foi nas palavras de Nei Lopes, um partideiro de “rara engenhosidade rítmica, trazendo para o partido-alto também a malícia do samba sincopado”. Em seus improvisos Padeirinho costumava deixar de lado o uso das velhas tradições orais, recorrendo a temas do cotidiano. Outra figura de destaque no panteão dos grandes versadores é o salgueirense Geraldo Babão. Nascido no morro localizado zona norte carioca em 1926, filho de um pernambucano e uma mineira. Ao contrário do seu contemporâneo mangueirense, prezava pela tradição, como o próprio compositor explica: “Eu sempre gostei de criar. Então na hora de versar eu misturava a parte da minha mãe – o calango – com a embolada do Norte – que ouvia do meu pai”.
Em depoimento prestado ao Museu da Imagem e do Som na década de 1970, o compositor e músico João da Baiana relembra as rodas feitas no princípio do século passado: “tinha o samba corrido, aquele que nós cantávamos. E tinha também o samba de partido alto, que eu e o Donga sambávamos. No partido-alto cantava-se em dupla, trio ou quarteto. Nós tirávamos um verso e o pessoal sambava, um de cada vez”. A reminiscência trazida por João da Baiana mostra como eram as rodas tradicionais, feitas geralmente nos fundos dos quintais das tias baianas da pequena África, e que seria revivido e reconfigurado décadas depois pelo movimento que a mídia batizou como “pagode de fundo de quintal”.
Ainda segundo o compositor e pesquisador Nei Lopes, o partido alto talvez seja, “uma das últimas manifestações do folclore musical tipicamente carioca, essa qualidade de samba nasceu da interação de outros estilos e gêneros musicais de várias regiões do país, para constituir-se num modelo de cantoria, assim entendida a arte ou ação de cantar e tirar versos, quase sempre em caráter de disputa ou desafio”. Por ser uma forma de samba marcada pela interação com outros gêneros, o partido alto não ficou imune a pressão e interesse da indústria cultural. Ainda na década de 1930 com a gravação do samba, De babado, parceria de Noel Rosa e João Mina, interpretado pelo próprio Noel e a cantora Marília Batista. Com a gravação temos a primeira tentativa de adequação do gênero ao mercado do disco. Afinal, para que pudesse ser registrada nos acetatos de 78 rpm era fundamental respeitar o tempo de duração do disco.
Porém, seria outro compositor ligado a terra de Noel o responsável pela popularização e definitiva inserção do gênero nas gravadoras e na mídia, e aqui cabe destacar que nosso personagem seria uma figura decisiva, enquanto interlocutor e parceiro de Martinho da Vila. Contribuindo de forma decisiva para sua formação enquanto partideiro. Desse modo se o sambista pode apresentar seu partido estilizado, Menina Moça, no Festival de Música Popular da TV Record em 1967, foi graças ao aprendizado com um certo compositor da Boca do Mato. Sobre o estilo de samba que ajudou a difundir, Martinho opina da seguinte forma: “Eu acho que o partido alto tá pra música brasileira como o soul tá pra música americana. A diferença é que o soul e o jazz sempre foram bem tratados e cuidados lá. E o partido-alto aqui ele ficou muitos anos abandonado”.
A partir do sucesso da música inscrita no festiva, Martinho apresentou ao público outras criações no mesmo estilo, como Casa de bamba e Pra que dinheiro. Com o sucesso das composições e gravações de Martinho, o partido alto começou a ser assimilado e diluído pelas gravadoras, surgindo álbuns como as conhecidas séries Olé do Partido-Alto e Partido em 5 (Tapecar) e Partido-Alto Nota Dez (CID), revelando ao grande público nomes como: Anézio, Candeia, Casquinha, Joãozinho da Pecadora, Luiz Grande, Wilson Moreira, Genaro, Bebeto Di São João, Rey Jordão e outros mestres na arte de versar.
Nesse cenário em que o samba e o partido alto começam a ganhar espaço nas gravadoras e na imprensa, resultando em forte adesão e consumo do público que nosso personagem deixa o Rio de Janeiro tomando o rumo de São Paulo. Assim como Leci Brandão, Almir Guineto e Silvio Modesto, Murilão deixava a Boca do Mato para se tornar uma referência do samba paulista. A cidade com sua vocação antropofágica de digerir e assimilar as mais variadas manifestações culturais não deixaria de ter seus grandes partideiros. Exemplos não faltam: Seu Carlão do Peruche, Soró, Chapinha, Marquinhos Jaca, Silvio Modesto e nosso personagem, Murilo de Oliveira, ou Murilão da Boca do Mato ou simplesmente Murilão.
Murilo de Oliveira nasceu em 1936, no Rio de Janeiro, foi criado na Boca do Mato, bairro localizado entre o Méier e Engenho de Dentro. Na região conviveu com grandes bambas do samba e se tornou um grande jogador de pernada. Foi ali também que participou da escola Aprendizes da Boca do Mato, ocupando o cargo de diretor de bateira e onde conheceria um certo Martinho José Ferreira. Ao chegar em São Paulo, Murilão logo seria figura presente nas principais rodas da cidade e em tradicionais palcos, como o Lira Paulistana, abrigo da vanguarda paulistana e a mítica boate Jogral, onde mandou suas brasas ao lado de figuras como Zé Kéti, Nelson Cavaquinho e Nara Leão.
Dos palcos e das rodas da Pauliceia para o disco foi um pulo, assim diversas composições de Murilão ganharam gravações. Entre as principais podemos destacar faixas como, A Feira, parceira com Martinho da Vila e gravada em seu álbum Origens (RCA, 1973), o samba ainda seria regravado ainda por Serginho Madureira e pelo Quinteto em Branco e Preto com a participação do próprio Murilão. Bahia da magia (com Bene JB e Cascurica), gravada pelo JB Samba no disco Loucamente apaixonado (Bullet, 1991), com o grupo paulistano Murilão ainda emplacaria o samba Festa de São João, a música indispensável em qualquer festa de samba rock é uma parceria com o compositor Luís Carlos Xuxu, presente no álbum A Rede (Continental,1988) ; já o partido-alto Caixão Preto (com Tino da Cuíca), foi gravado por Genaro e Bebeto di São João no disco Partido-Alto nota 10, vol.5 (CID,1984); vale lembrar ainda o Samba da poeira, interpretado pela cantora Sabrina da Mocidade Independente de Padre Miguel em seu álbum Eu sou eu, lançado pela CBS em 1978.
Entre as composições de Murilão, ainda chamamos atenção para Verdureiro, gravado pelo comandante Tobias no álbum Bamba Brasil, coletânea produzida pela RGE em 1986 como tentativa de repetir o sucesso do disco Raça Brasileira. Por fim não podemos deixar de fora os sambas Brisa da Colina, gravado pelo Quinteto em Branco e Preto no disco Patrimônio da Humanidade (Trama, 2008) e Madeira de Fé, com Almirzinho Serra no disco Samba (2001), os dois feitos em parceria com Dorinho Marques e o atemporal Minha Fé gravado por Zeca Pagodinho no álbum homônimo lançado pela Polygram em 1998.
Como sambista nato que é, Murilão não poderia ficar fora do carnaval paulistano. Em 1979 venceria a disputa no Império do Cambuci; em 1982 na Príncipe Negro e em 1981 e 1983 na Pérola Negra, onde ao lado de nomes como João Borba, Silvio Modesto e Pasquale Nigro seria fundamental na consolidação da agremiação da Vila Madalena, passando a figurar como um dos baluartes da escola da zona oeste paulistana.
Aos 87 anos Murilão segue pelas rodas e sambas da cidade, como verdadeiro malandro a moda antiga, é daqueles partideiros pedra noventa, se na hora do improviso tiver que soltar um verso indigesto não titubeia. Como todo malandro maneiro sabe chegar na maciota, e desconcertar seu oponente com um verso certeiro. Murilão é daqueles sambistas que ao longo de sua trajetória conquistou o respeito que poucos baluartes conseguem. Longa vida ao partideiro da Boca do Mato e que seus versos e sambas sigam inspirando as novas gerações que seguem defendendo a bandeira do partido alto.
Daniel Costa é historiador, pesquisador, compositor e integrante do G.R.R.C Kolombolo Diá Piratininga.
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Por falar em arte, eu queria ver uma fotografia do Mick Jagger e do Keith Richard idosos, feitas por inteligência artificial, com base em fotografias dos mencionados artistas quando eles eram bem jovens. Seria a prova dos noves da Inteligência Artificial.