Daniel Costa
Daniel Costa é graduado em História pela Unifesp, instituição onde atualmente desenvolve pesquisa de mestrado. Ainda integra o G.R.R.C Kolombolo Diá Piratininga onde além de compositor, desenvolve pesquisas relacionadas a História do samba de São Paulo e temas ligados a cultura popular participando das atividades e organização do centro de documentação da entidade (CedocK - Centro de Documentação e Memória - José e Deolinda Madre). Possui especializações na área de museologia (IBRAM), arquivologia (Arquivo Nacional), Educação Patrimonial (IPHAN) e História Oral (FGV/CPDOC).
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Marquinhos Jaca, um partideiro e sambista de fato, por Daniel Costa

A consciência política e compromentimento com a luta em defesa do samba é refletida também em seu engajamento enquanto cidadão e ator político

Arquivo Pessoal

Marquinhos Jaca, um partideiro e sambista de fato

por Daniel Costa

Não espanque os instrumentos, tenha compostura. Que arroz e feijão bem temperado não precisa de mistura“, com o surgimento nos últimos anos de inúmeras comunidades e rodas de samba pela cidade, o conselho dado pelo compositor Marquinhos Jaca, além de pertinente mostra como o nosso personagem e seu parceiro André Ricardo demonstram arguta sensibilidade para através dos seus sambas construirem verdadeiras crônicas da realidade brasileira e do cotidiano do sambista. No momento onde muitos que se autointitulam sambistas (na verdade sambeiros) usam o rótulo da forma que melhor convém, o partido alto Arroz e Feijão, faixa do segundo álbum de Jaca intitulado Partideiro de Fato, que chega às plataformas digitais no final do mês, apresenta ao ouvinte a defesa de um samba puro, autêntico, sem enganação. Relembrando o mestre Bezerra da Silva, podemos dizer que para muitos incautos o partido de Marquinhos Jaca pode ser indigesto, principalmente por trazer verdades em uma época onde muitos compositores e cantores tem certo melindre em abordar temas vistos como espinhosos. De início o nosso indigesto partideiro (no melhor sentido da expressão) já recomenda para aqueles que estão chegando na roda: “Instrumento é para acompanhamento. O importante é a voz e o recado”.

Nascido no bairro do Jaçanã, zona norte e São Paulo, Marcos Abrahão Gilberto, conhecido nas rodas e no mundo do samba como Marquinhos Jaca aprendeu desde criança o que era o verdadeiro samba, aquele feito com fundamento e compromisso, seja com aqueles que vieram antes, com o público frequentador das rodas e ainda aqueles que virão. Seus pais, dona Ruthe e Gentil eram assíduos frenquentadores do  Vai-Vai, e foi assim, que entre as batucadas da zona norte paulistana e o samba feito nos arredores da Rua São Vicente e sua mítica encruzilhada que o sambista forjou sua identidade de bamba que seria reconhecida quando em 1998 é convidado para integrar a Ala de compositores da escola alvinegra do BIxiga.

Sua entrada na Ala somada a vivência na tradicional escola localizada na região central da capital serviu de inspiração para compor uma canção que figura entre as mais belas exaltações a agremiação fundada em 1930. Ao lado do clássico Tradição,verdadeiro hino composto por Geraldo Filme e Praça 14 Bis de Eduardo Gudin, a canção Reduto de sambista gravada pela cantora paulistana Elizeth Rosa no álbum Negro Luz lançado em 2009 exalta as glórias e conquistas que emocionaram Jaca, os sambistas e os espectadores que tiveram a oportunidade de assistir algum dos inesquecíveis desfiles da escola que mais conquistou títulos no carnaval paulistano. Sua letra ainda fez uma justa homenagem aquela “velha guarda de bambas coralistas, baianas ritmistas e passistas“, reafirmando a coesão daqueles que constroem para além do carnaval uma escola que é símbolo de resistência, ao afirmar que “a minha comunidade é forte, é negra, é mista, no mundo do samba já põs o seu nome na lista“.

Marquinhos Jaca traz em suas composições a influência de grandes mestres do samba, como o seminal partideiro Aniceto do Império, Bezerra da Silva, Rey Jordão, Clara Nunes e tantos outros bambas e poetas revelados ao longo da década de 1970, que chegavam ao jovem morador da zona norte paulistana através das ondas do rádio ou dos LPs.  Alicerçado por esse belo aprendizado aos 16 anos passa a integrar o grupo Pé de Moleque, onde teve a oportunidade de acompanhar grandes nomes como Almir Guineto, Jovelina Pérola Negra, Dona Ivone Lara e  Zeca Pagodinho. Esse leque de influências somada convivência com mestres do samba de São Paulo trouxe para suas composições uma sonoridade e temática que chega a lembrar os sambas de outrora. Porém, ao contrário de outros sambistas que ao reverenciar seus ídolos, parecem retornar ao passado produzindo uma sonoridade que não passa do simulacro de uma nostálgia distante, Jaca ressignifica a sonoridade e influência que carrega em suas canções.

Essa contemporaneidade pode ser vista por exemplo no samba Comunidade – Favela, composta com seu parceiro Andre Ricardo, a canção que ecoa a influência dos sambas interpretados por Bezerra da Silva surge como um verdadeiro petardo, especialmente em um momento onde o discurso capitalista neoliberal tenta impor ao conjunto da sociedade o discurso de uma falsa meritocracia, assim sem meias palavras, o recado é dado em forma de samba: “Pode até mudar meu nome mas não minha identidade. E fingir que se preocupa com a minha integridade“.

A consciência política e comprometimento com a luta em defesa do samba é refletida também em seu engajamento enquanto cidadão e ator político, foi assim que em 2010 figurou como um dos fundadores da ASTEC (Associação dos Sambistas, Terreiros e Comunidades de Samba de São Paulo), associação de extrema importância para o reconhecimento junto ao poder público das comunidades e espaços de samba no Estado. Foi por essa época que também lançou seu primeiro disco, intitulado Número Um do Brasil, o álbum realizado em parceria com o Kolombolo Diá Piratininga apresentou ao público as variadas faces desse sambista que ao mesmo tempo em que toca nas feridas da nossa sociedade, também pode mostrar a sensibilidade e o lirismo em sambas como  Vovó Maria.

Marquinhos Jaca comprova através dos seus letras e melodias que é possível ser um seguidor fiel do samba feito à moda antiga, como cantara Nei Lopes e Wilson Moreira, ou seja, aquele samba de partido alto com a faca no prato e batido na mão, porém em sintonia com o presente, sem abrir mão dos fundamentos do genêro, sem soar datado. Reconhecido e respeitado por seus pares, Marquinhos Jaca é aquele sujeito que como o bom malandro sabe entrar e sair dos lugares e rodas que frequenta, assim encerramos com um conselho do próprio que pode ser ouvida na faixa que citamos na abertura do texto: “Ouça quem é referência, tem ciência, envergadura, procure quem tem sapiência, pra não deturpar a cultura“.

Daniel Costa é historiador pela UNIFESP (Universidade Federal de São Paulo), compositor e integrante do G.R.R.C. Kolombolo Diá Piratininga.

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