Pai Pedim de Atrás da Serra – O embaixador da lezeira do Piauí, por Eduardo Pontin

Cantador de expressão cultural típica do sertão do Piauí é repositório de versos populares ancestrais

Série PIAUÍ CULTURA REGIONAL (I):

Pai Pedim de Atrás da Serra – O embaixador da lezeira do Piauí

Por Eduardo Pontin

Conhecer Seu Pedim do Quilombo Atrás da Serra, município de Santa Cruz do Piauí, a mais de 300 km de distância de Teresina, não é mero acaso, é mesmo coisa do destino. Seu Pedim (Pedro Deolino da Silva, 7/5/1940) é Mestre Cantador de Lezeira, música e dança características do sertão do Piauí protagonizadas por quadrinhas populares. E Seu Pedim sabe pra lá de 100 dessas quadras, ou seja, mais de 400 versos ancestrais memorizados em sua alma. Pai Pedim pertence a um tempo em que os saberes eram transmitidos de maneira oral e o contato com as ilusões da civilização era quase inexistente.

Pelo conjunto de ensinamentos práticos que Seu Pedim é capaz de transmitir apenas cantando o que aprendeu com os seus ancestrais, é possível aprender muito sobre o que é ser piauiense, sertanista, negro, quilombola e sobre ancesntralidade.

Mas é preciso estar disposto, ouvidos atentos e coração aberto para assimilar o que o velho Pedim tem a dizer.

Encontrei com Seu Pedim por diversas vezes durante minha estada no sertão do Piauí. Quando estava em terra alheia, principiava o seu canto na Lezeira sempre com a seguinte quadra:

Tão me vendo eu por aqui

Eu num vim tomar amô

Que lá em casa eu dêxei

O ramaiete de fulô

Seu Pedim já se encontrava na casa dos 80 anos quando o conheci, porém, dizia os mesmos versos que provavelmente aprendeu em seus tempos de juventude. Anunciava as pessoas daquela terra que não estava ali para se aparecer a nenhuma mulher, pois em sua casa o seu ramalhete de flor o esperava. Não apenas demonstrava respeito ao lugar onde chegava, como também rendia bela homenagem a sua senhora, Dona Anália.

Noutra feita, pude presenciar Seu Pedim ser vítima de racismo no canto de outro cantador, que lhe dirigiu versos insultuosos. Estando o velho Pedim na casa deste cantador, respondeu-lhe a altura, sem perder a postura que lhe é característica:

Pensá meu amigo

Tenha maió iducação

Cumé que agrava os otrô

Sem havê alteração

E mesmo o cantador mudando o assunto nos versos seguintes, Seu Pedim o penalizou novamente, dessa vez de forma mais direta:

Cabra da minha terra

Num canta tão ruim assim

Dizendo a falta que tem

E jogando em cima de mim

Seu Pedim é a ancestralidade em pessoa, aprendeu muito com muita gente e transmite a muitas outras pessoas que procuram saber o que ele sabe. Prova disso é que canta versos adaptados do cordel “Peleja do Cego Aderaldo com Zé Pretinho do Tucum”, do poeta piauiense Firmino Teixeira do Amaral, datado de 1916.

Dessa mesma forma, em sua viagem poética ancestral, Seu Pedim vai parar na Guerra Civil dos Estados Unidos do século XIX, quando canta:

Assubi de mar acima

Fui ficá nos inguilieis (ingleses)

Bibi chumbo dirritido

Lancei bola sete meis

Esses versos foram recolhidos para a coleção da obra “Mil Quadras Populares Brasileiras”, levantadas em 1910 e publicadas em 1916 por Carlos Góes. É realmente fantástico o repositório de quadrinhas que Seu Pedim conservou em sua alma durante toda a sua vida.

Certa vez, na derradeira noite do centenário Festejo ao Sagrado Coração de Jesus da Comunidade Quilombola Custaneira/Tronco, reuni quase todos os maiores cantadores de Lezeira do Piauí: Chica Tomé; Dona Rita; Raimundão da Mutamba; Gabiru e, claro Seu Pedim. A certa altura, todos falavam ao mesmo tempo e ninguém se entendia, então dirigi uma pergunta a Seu Pedim: “Qual a maior dificuldade para a Lezeira hoje?”. Ao que o velho cantador respondeu energicamente, sem perder a sua simplicidade: “A maior dificuldade é escutar, eu falá, você escutá e respondê”.

Tive oportunidade de frequentar algumas vezes a casa de Seu Pedim, na Comunidade Quilombola Atrás da Serra, inclusive de pernoitar por lá uma noite, quando ele ofereceu o melhor quarto da casa para que eu ficasse com minha esposa Francisca e nosso filho, Raul. Nessas ocasiões pude perceber de perto que a realidade que Seu Pedim canta é a mesma que ele vive, homem de roça, trabalhador incansável.

Um dia, estávamos na companhia do maior documentarista do Piauí, Roberto Sabóia e do engenhoso músico Zé Piau quando fomos buscar Seu Pedim em sua casa, para levá-lo a Custaneira. Dona Anália, sua esposa, nos falou bem séria, em tom impositivo: “Tragam ele ainda hoje, amanhã cedinho ele tem que ir tirar o leite da vaca”. Aliás, a coalhada que a Dona Anália prepara é a melhor do Brasil, palavra!

Seu Pedim é o Embaixador da Lezeira do Piauí, com idade avançada, não dispensa um convite e vai aonde é chamado, mesmo a dezenas de quilômetros. Detalhe: vai de moto, a maior parte das vezes pilotada pelo seu filho fiel, Titico.

Agregador, quando canta com outro companheiro, o conduz para o seu lado:

Eu tandu mais Seu Raimundo

E Raimundo tando mais eu

Derrubo um chapéu de cabra

E cabra num derruba eu

Porém, caso comece a ser desafiado, Seu Pedim não fica para trás e diz versos a altura de seu adversário:

Dei um golpe na romêra

Que embalançô o jucá

Quanto mais você se avexa

Mais fuga você me dá

Quando já está mais à vontade com a cantoria de Lezeira, introduz as suas quadras de identificação, com as quais, encerramos este pequeno relato sobre este grande homem, o embaixador da Lezeira do Piauí:

Pedro Diolino quando canta

Pelo sirro se cunhece

Água do má embalança

As preda do morro desce

e

Pedro Diolino cantandu

É uma panela frevendu

A mulhé tirando o caldo

E ele por detrás bebenu

por fim

Sô Pedro Perêra homi

Sô raiz de matá fomi

Eu sô pau que num enfulora

E mato até quem não se comi

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Eduardo Pontin

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