Wilson Ferreira
Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.
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Tentar lembrar pode ser uma armadilha em “Remainder”, por Wilson Ferreira

por Wilson Ferreira

A memória é o que nos torna quem somos. Mas, se as memórias são resultantes das nossas percepções mais subjetivas (cor, cheiro, sons etc.) podem ser interpretações e não gravações da realidade. Por isso, podem se tornar armadilhas, quanto mais imergimos nelas. Desde o filme “Amnésia” (2000) de Christopher Nolan esse perigo é tematizado mais seriamente pelo cinema, até chegarmos a “Remainder” (2015): após um acidente traumático, um jovem perde a memória e tenta montar o quebra-cabeças das lembranças que restaram com um método extremo: com o dinheiro da milionária indenização o protagonista monta gigantescos estúdios com atores contratados para obsessivamente encenar seus cacos de memória. Mas o que deveria ser uma progressiva conexão com a realidade, começa a se tornar um vício compulsivo. Filme sugerido pelo nosso leitor Felipe Resende.

A perda da memória é uma temática muito presente nos filmes gnósticos. Desde Amnésia (Memento, 2000) de Christopher Nolan, o tema da perda da memória está associado à paranoia e a desconfiança sobre a substancialidade do real: se aquilo que entendemos por “real” é o resultante da subjetividade da nossa percepção e memória, qual a garantia que temos sobre a solidez do mundo supostamente real?

Além da perda da memória ser o simbolismo da condição humana (somos exilados de nós mesmos pelo sono do esquecimento), a própria memória pode também ser questionada como algo propositalmente fabricado como falsas memórias. Como em Blade Runner (1982) no qual os androides replicantes colecionavam fotos de infâncias que jamais tiveram; ou as fotos do protagonista Truman de familiares que na verdade eram apenas atores – Show de Truman, 1998.

Remainder retoma o tema de Amnésia de Nolan – o protagonista perdeu a memória e tenta retomar o fio da meada de uma linha de tempo esquecida. Mas enquanto no filme de Nolan o protagonista passa a desconfiar das suas memórias e principalmente dos seus próprios post its (o protagonista sofria de perda da memória de curto prazo), em Remainder o protagonista tentar juntar o quebra cabeças dos flashs de memória.

 

Mas dessa vez é nós, espectadores, que começamos a desconfiar da ambiguidade das lembranças fragmentadas: o protagonista se dirige a becos sem saída? As memórias são verdadeiras? Ou o protagonista já morreu e vive em um purgatório de repetições?

E também o método para buscar o fio da meada será bem diferente de Amnésia. Lembrando o filme Sinédoque, Nova York (2008) de Charlie Kaufman, o protagonista tentará reencenar as situações das memórias através de cenografias as mais exatas possíveis com a realidade. Através de uma obsessiva live action, o protagonista tentará imergir nas memórias na esperança de que surjam espontaneamente os pedaços que faltam do quebra-cabeças mental.

O Filme

Remainder é uma adaptação do cultuado livro homônimo de 2005 do escritor inglês Tom McCarthy sobre um jovem em estado amnésico após um traumático acidente que tenta obsessivamente dar sentido aos fragmentos de memórias que restaram.

Acompanhamos a estória de Tom (Tom Sturridge), um jovem que caminha em pleno centro de Londres arrastando uma mala preta com rodinhas. Ele tenta pegar um táxi nas ruas movimentadas, até que ouve o som de estilhaços de alguma cobertura de um dos prédios que está vindo abaixo. Um dos pedaços o atinge, deixando-o gravemente ferido e em estado de coma.

Enquanto os advogados discutem o acordo sobre a indenização pelo acidente, Tom desperta no hospital. O que deixa os advogados em uma saia justa: eles têm que comprar o silêncio do rapaz para evitar que a vítima faça estardalhaço na mídia.

 

Tom recebe uma indenização milionária pelo silêncio – afinal, como ironicamente fala, ele não lembra de nada mesmo, a não ser de pedaços de memórias de algum momento recente da sua vida. Mas nada parece fazer sentido.

Tudo complica ainda mais quando passa a ser perseguido por homens violentos que tentam a todo custo reaver aquela mala preta de rodinhas que, supostamente, tinha um grande valor em dinheiro. Mas Tom não lembra mais do destino daquela mala e nem do seu conteúdo.

Enquanto Tom vive a rotina das sessões de fisioterapias, ele começa a ser tomado por sucessivos déjà-vus que aos poucos transforma-se em cacos de memórias. Ele se recorda de um edifício que pode ter vivido ou não.

Usando a sua fortuna contrata um especialista em segurança e logística e compra dois edifícios inteiros para recriar o design exato das suas memórias em todos os detalhes. Atores profissionais e amadores são também contratados, além de gatos que deverão ser treinados para ficarem andando no telhado vizinho. Uma mulher deverá ficar constantemente cozinhando fígado no seu apartamento (o cheiro é uma variável importante), enquanto outro “morador” deverá tocar constantemente uma peça de Chopin ao piano, enquanto outro morador deverá repetidamente atravessar as escadarias carregando sacos de lixo, e assim por diante

Obsessivamente, Tom passa 24 horas do dia repetindo essas cenas, tentando imergir nelas através de todos os sentidos corporais.

Mas o que deveria ser uma progressiva conexão com a realidade, começa a se tornar um vício compulsivo pela repetição das encenações. É uma questão de tempo para as coisas ficarem fora do controle, ainda mais que Tom passa a ter crises catatônicas como fossem flash backs das re-encenações.

 

As encenações começam a ficar mais torturantes e violentas até que o segundo prédio adquirido é montado para recriar a sequência de um assalto a um banco em um imenso estúdio, com ruas do centro de Londres cenograficamente recriadas.

O Detetive e a memória

Tom é o característico personagem gnóstico do Detetive, para o qual o tema da memória é central dentro da narrativa desse subgênero fílmico.

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Wilson Ferreira

Wilson Roberto Vieira Ferreira - Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som) pela Universidade Anhembi Morumbi.Doutorando em Meios e Processos Audiovisuais na ECA/USP. Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Comunicação Visual. Pesquisador e escritor, autor de verbetes no "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, e dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose" pela Editora Livrus.

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