Complexo de vira-lata, por Antonio Machado
País é campeão em energias limpas, mas nos cobram para apressar a transição energética
Desejo, desinformação e realidade são três palavras que vivem em conflito no mundo de hoje, especialmente entre nós, quando entram em cena as megatendências para o bem e para o mal. Fiquemos com a mais ameaçadora delas todas – a crise climática e os gigantescos desdobramentos que ela insere no cotidiano e nas relações gerais.
Nesta semana, e sobretudo na próxima, as questões climáticas e a transição da economia baseada em petróleo e carvão para a geração de energias limpas, como a eólica e a solar, serão o assunto mais quente no mundo. Mais que a invasão da Ucrânia pela Rússia e as incursões de Israel contra o terror do Hamas em Gaza e a milícia xiita Hezbollah no Líbano. O presidente Lula terá a oportunidade de pautar tais assuntos ao abrir, cumprindo uma tradição, a 79ª assembleia geral das Nações Unidas, em Nova York. O que esperar?
Sobre o clima, talvez a combinação das três palavras que abrem este artigo. Os eventos, entre seminários e encontros privados de alto nível, antecedendo a bateria de discursos dos governantes do mundo no plenário da ONU, põem o que o Brasil tem de mais vistoso e promissor como algo a fazer: a transição energética. Ela está feita desde os anos 1960 e não por atenção ao meio ambiente, mas por ser, então, o mais racional: a construção de hidrelétricas.
Com fartura de rios e áreas despovoadas para alagar, a energia hidráulica dispensou o padrão na Europa e na Ásia e pouco menos nos EUA e Canadá: termos movidas a fósseis e centrais nucleares.
A pressão ambiental, além dos grandes investimentos e a debacle da engenharia de construção, uma rara atividade em que o país se destacava no mundo até a sua ruína pela Lava Jato, matou o ciclo das hidrelétricas. Mas, depois do breve apogeu das termelétricas, as instalações de grande porte de geração eólica e solar, mais a geração distribuída em telhados e anexos, estão em cena e são hoje o que mais se expande pelo país. Essa é a realidade.
Ela concretiza o desejo fornido a bilhões de dólares nos países avançados. Mas, se assim estamos, por que ainda se fala em iniciar a transição energética? Dois a três seminários feitos a cada semana com esta mensagem? Desinformação e lobby levam a isso.
Energia limpa no topo do G20
A falta de convicção brasileira sobre muitas questões, sobretudo a de geração limpa de energia, tem a ver com a decadência de nosso desenvolvimento, o mais rápido do mundo entre os anos 1950 e 1970. Foi inspiração para a ascensão da China a partir de 1978, com seus autores, a mando de Deng Xiaoping, vindo ao Brasil aprender o mapa do caminho com o ex-ministro Antonio Delfim Netto e outros.
Já era para estarmos ensinando o mundo o que fazer para estar no topo da geração de energia limpa no Grupo dos 20, das maiores economias, com 89% da eletricidade vinda de hidro (60%), eólica e solar (21%), biomassa (8%) e não-renováveis com apenas 11%. No 2º da lista, Canadá, 34% da eletricidade vêm de fontes “sujas”, com Alemanha na sequência (48%) e Inglaterra (53%). Nos EUA, 77%. Na China, 69%, com eólica, solar e hidro representando apenas 29%.
Apesar de nossa vantagem, abrindo oportunidade para instalação de data centers de 300MW para cima, o que não temos e deveríamos ter, e produção de hidrogênio “verde”, é a China que se apresenta como “pai da matéria” e provoca calafrios, sobretudo nos EUA e Europa.
Quem são os novos sauditas?
Artigo do renomado economista chinês Andy Xie, ex-Morgan Stanley, dia 19, no South China Morning Post, traz este título: “Como a China está se tornando a Arábia Saudita das energias renováveis”.
O artigo é fundamentado: o consumo de fontes fósseis começou a diminuir graças ao aumento dos veículos elétricos e à expansão da geração renovável. Há inclusive um alerta para os viciados em óleo e gás: o que a China, maior importador de petroleo, compra já está em queda e vai acentuar-se ano a ano a partir de agora.
Ok. Só que, mantendo a mesma analogia, Brasil é a Arábia Saudita das energias renováveis. A China, por ora, é quem domina por vasta vantagem a produção de placas de energia solar, turbinas e pás das torres de eólica, os minerais críticos desses produtos etc.
É a nossa proeminência energética que Lula deveria reivindicar ao abrir a assembleia da ONU. E voltar para casa dando ordens para os seus ministros priorizarem a produção dessa indústria em condições de concorrer com a China. Weg, por exemplo, tem esse know-how e há muitos outros, se devidamente seduzidos com políticas apropriadas.
Caramelo e o Brasil oficial
Temos aos montes oportunidades como a da transição que aqui está feita, faltando o que também impede acelerar a geração limpa nos EUA, que é conectá-la às redes de transmissão e megabaterias para que possam continuar servindo à noite e em tempos adversos.
Deixar dinheiro sobre a mesa tem sido a nossa história.
Dias atrás uma caravana de autoridades e empresários foi a Pequim para, entre outros acordos, firmar a exportação de café em grão à maior rede de cafeterias da China e segunda no mundo, só atrás da Starbucks. O chefe da comitiva se disse orgulhoso, muito embora o nosso café não seja reconhecido como marca nacional, tal como não tem reconhecimento o algodão. Passamos os EUA e já somos o maior exportador mundial. Perder tais negócios é bola entre as pernas.
Por que nunca se pensou numa rede 100% brasileira de cafeterias? E na fabricação de capsulas e máquinas tipo Nespresso? Por que não se põe o Guaraná para competir com a Coca? E assim vai.
Isso, sim, é o chamado “complexo de vira-lata”, o conceito criado pelo dramaturgo Nelson Rodrigues para criticar nosso sentimento de inferioridade. Talvez por isso os governantes e os políticos tenham desistido do que temos ou poderíamos vir a ter. Vale mais culpar os “estadunidenses”, os “ricos insensíveis”, a “gastança fiscal”, os “juros indecentes” pelo nosso atraso.
O vira-lata Caramelo, o herói da resistência nos memes das redes sociais, no fim, é muito melhor que o Brasil oficial.
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Dizer que o Brasil tem complexo de Vira Lata, é uma ofensa aos mesmos.
Discordo. Existe no Brasil uma fortíssima tradição centenária de desprezo total pela natureza que se expressa hoje tanto através dos incêndios criminosos quanto da omissão dos agentes estatais. Isso começou com a poluição do riacho que cortava Salvador anos depois dela ser construída no século XVI. “Os brasileiros de bens somente serão felizes quando a última árvore for cortada e quando o último rio estiver seco ou mortalmente condenado por mercúrio, dejetos humanos e resíduos de agrotóxicos.” Os lucros oriundos da destruição total de Pindorama custearão as vidas dos brasileiros ricos na Zoropa.
Concordo. Essa tradição centenária de desprezo total pela natureza e pela maioria brasileira despossuída não tem mesmo nada a ver com esse tal complexo de vira-lata. Tem sim tudo a ver com nossa herança histórica colonial e escravagista! Se nossos “ricos insensíveis” têm algum complexo só pode ser o de superioridade! Com certeza se acham superiores também aos chineses. Seus iguais devem ser os sócios “americanos” e “oropeus”!