Nós, os mamíferos. II. Por uma vida mesmo atormentada, por Felipe A. P. L. Costa

O abandono e a substituição de uma espécie por outra não se dão da noite para o dia. São processos gradativos.

Nós, os mamíferos. II. Por uma vida mesmo atormentada.

Por Felipe A. P. L. Costa [*].

  1. Sobrepesca.

Muito animais marinhos estão a rarear ou mesmo a desaparecer de vez. Anos sucessivos de sobrepesca (i.e., esforços de pesca em níveis superiores à capacidade de renovação dos estoques) reduziram o tamanho de um sem número de populações a um patamar inferior ao que é economicamente viável. A escassez numérica levou ao abandono de várias espécies de pescado, razão pela qual tantos frutos do mar – outrora fartamente apreciados – sumiram da mesa dos consumidores [1].

O abandono e a substituição de uma espécie por outra não se dão da noite para o dia. São processos gradativos. Antes de abandonar uma espécie que esteja a declinar, os pescadores passam a experimentar jornadas de trabalho cada vez mais longas e extenuantes. Isso tudo porque a redução dos estoques faz com que os barcos tenham de percorrer áreas cada vez maiores, o que significa se afastar ainda mais da costa, em viagens cada vez mais perigosas [2].

A caça excessiva também é uma ameaça à persistência de muitas populações [3]. Paralelamente, vários outros fatores assombram a vida dos animais marinhos – e.g., trânsito excessivo de embarcações, derramamento de óleo, acúmulo de resíduos plásticos e poluição sonora.

No que segue, vamos falar um pouco sobre o impacto negativo que alguns desses fatores (caça e poluição sonora) têm ou podem ter (como é o caso do turismo) na vida de um grupo especialíssimo de mamíferos – os cetáceos.

  1. Baleação.

Em 1986, entrou em vigor uma moratória mundial contra a caça à baleia (baleação). O Brasil, que foi durante décadas um grande promotor da atividade, ratificou o acordo e, desde então, a baleação foi banida das águas territoriais brasileiras. Ocorre que alguns países pressionam pelo fim da moratória, enquanto outros simplesmente ignoram o acordo. O caso mais notório é o do Japão.

Até meados de 2008, o governo japonês encobria a caça com a justificativa de que os indivíduos abatidos estariam a ser usados em pesquisas científicas [4]. Em meados daquele ano, porém, após o governo australiano ter divulgado imagens de baleeiros japoneses abatendo cetáceos de modo indiscriminado (mães e filhotes, inclusive), o governo japonês decidiu remover o véu da hipocrisia – embora não tenha se pronunciado contra a matança [5].

A Noruega e a Islândia são outros dois países que têm se posicionado a favor da atividade. Enquanto Coréia do Sul, Rússia e China seguem a pressionar a Comissão Baleeira Internacional (IWC, na sigla em inglês) em favor da liberação de cotas para abate [6].

  1. Turismo de avistamento.

Nos últimos anos, tem crescido o número de ecoturistas brasileiros interessados no avistamento de cetáceos (baleias, botos, golfinhos etc.). Todavia, diferentemente do que ocorre com o avistamento de aves (um filão econômico mais antigo e ainda maior), o avistamento de cetáceos tende a se concentrar em umas poucas áreas. No caso brasileiro, o principal foco de atenção tem sido o litoral de Santa Catarina, embora o litoral sul da Bahia, o arquipélago de Fernando de Noronha e o rio Negro, nas proximidades de Manaus (AM), também atraiam visitantes.

Uma segunda diferença seria a seguinte: observadores de aves tendem a se comportar como naturalistas amadores, apreciando, registrando e divulgando os hábitos de vida dos animais, enquanto aqueles que se envolvem com o avistamento de cetáceos tendem a agir como gente interessada tão somente em experimentar barulho e fortes emoções.

Fato é que o aumento no fluxo de visitantes gera certos conflitos, a exemplo do que se passa em toda e qualquer unidade de conservação aberta ao público. A atuação de agentes econômicos (e.g., agências de viagem e hotéis) agrava ainda mais o problema. Pensando tão somente no curto prazo, os empresários passam a reivindicar cotas ainda maiores (algo do tipo “quanto mais gente, melhor”) ou licenças de visitação ainda mais frouxas e tolerantes (“a satisfação do cliente em primeiro lugar”).

Não custa lembrar: o aumento no número de visitantes tem impactos negativos em qualquer hábitat que esteja aberto à visitação. O que resulta em degradação do local e em perda de atrativos. Ao que parece, há uma relação estreita e inversamente proporcional entre o número de visitantes e a longevidade da atração – mais gente hoje, menos gente amanhã. Uma lição simples, mas que os bolsos mais ansiosos não conseguem tolerar.

  1. O caso da APA Baleia Franca.

Na esperança de conciliar esses dois empreendimentos, a visitação e a proteção, alguns governantes tentam disciplinar o ecoturismo. Um bom exemplo seria a Instrução Normativa n. 102 que o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) promulgou em 19/6/2006. O propósito era disciplinar o turismo de avistamento dentro da Área de Proteção Ambiental (APA) da Baleia Franca, no litoral de Santa Catarina [7].

A medida levava em conta certas necessidades vitais dos cetáceos. (Vale lembrar que os animais vão até o litoral catarinense para fins reprodutivos, não propriamente a passeio.) Sabendo disso, a medida estabelecia algumas restrições às atividades náuticas conduzidas dentro da APA, principalmente durante a estação reprodutiva. Só isso. Trocando em miúdos, ao contrário do que foi alardeado na ocasião, o propósito não era coibir ou proibir a visitação, mas apenas e tão somente colocar um pouco de ordem na casa.

  1. Ondas sonoras mortais.

Os problemas que atormentam a vida dos cetáceos não são causados apenas por brasileiros nem se restringem à indústria do turismo. É o que veremos no exemplo a seguir.

Em 2006, pouco depois da publicação da referida instrução normativa do Ibama, uma decisão judicial publicada nos Estados Unidos chamou a atenção da opinião pública para um problema ainda maior: o uso indiscriminado de sonar por embarcações militares. De acordo com a decisão de uma corte estadunidense, a Marinha daquele país deveria suspender o uso desse tipo de equipamento durante a realização de exercícios em alto-mar, em especial o chamado sonar ativo de baixa frequência (sonar LFA, na sigla em inglês).

O sonar é um equipamento que emite ondas sonoras capazes de percorrer dezenas ou mesmo centenas de quilômetros, revelando a presença de obstáculos (e.g., um submarino) ao longo do trajeto varrido pelas ondas [8]. O sonar LFA emite ondas particularmente danosas. Pesquisas de campo têm revelado que baleias e golfinhos expostos às ondas emitidas por um sonar podem perder o senso de direção ou podem ter problemas de saúde (e.g., hemorragias na orelha interna) [9]. Problemas esses que talvez ajudem a explicar a presença de animais encalhados em praias próximas a locais que pouco antes serviram de palco para exercícios militares.

  1. Coda.

De acordo com a decisão de 2006, fruto de um processo movido pelo Conselho de Defesa dos Recursos Naturais (NRDC, na sigla em inglês), entidade ambientalista que luta a favor do bem-estar animal, ao usar o sonar LFA em uma área que sabidamente abriga populações de cetáceos, a Marinha estaria a violar de modo ‘arbitrário e caprichoso’ a própria legislação do país.

Ainda conforme a decisão, as partes envolvidas (Marinha dos EUA e NRDC) deveriam buscar um acordo definitivo sobre a questão. Cabe notar que várias sugestões foram apresentadas pelos ambientalistas, uma das quais simplesmente pedia que os exercícios militares não fossem mais conduzidos nas proximidades dos sítios de reprodução dos cetáceos. Uma medida, cá entre nós, bastante modesta, sobretudo se levarmos em conta os benefícios daí advindos – uma vida menos atormentada para muitos animais marinhos (e, por que não dizer, para muitos de nós).

*

Notas.

[*] Para detalhes e informações sobre o livro mais recente do autor, O que é darwinismo (2019), inclusive sobre o modo de aquisição por via postal, faça contato pelo endereço [email protected]. Para conhecer outros livros e artigos, ver aqui. Versão anterior deste artigo foi publicada no Observatório da Imprensa (edição n. 659), em 12/9/2011.

[1] Algumas espécies desapareceram, enquanto outras foram substituídas por espécies afins. Para exemplos, detalhes e discussões, ver Pimm, S. 2005. Terras da Terra. Londrina, Editora Planta.

[2] Situação retratada no filme Mar em fúria (The perfect storm, 2000), de Wolfgang Petersen.

[3] A caça difere da pesca não tanto por causa da identidade do animal ou do hábitat onde ele vive. O critério decisivo tem a ver com o modo como ocorre o abate: coletivo e mais ou menos indiscriminado (pesca) ou individual e direcionado (caça).

[4] Sobre a posição do governo federal brasileiro – quando havia um – contra a baleação, ver o artigo ‘ICMBio defende em Sydney posição brasileira pelo fim da matança de baleias no mundo’, de Carla Lisboa, publicado na revista Eco-21 (n. 150), em maio de 2009.

[5] A matança de cetáceos por pescadores japoneses é retratada no filme A enseada (The cove, 2009), de Louie Psihoyos.

[6] Sobre a luta contra a baleação, ver o artigo ‘Enfrentando o Golias dos massacres de baleias’, de Paul Watson, publicado na revista Eco-21 (n. 147), em fevereiro de 2009.

[7] Sobre turismo de avistamento, ver o artigo ‘Baleias Jubarte no litoral bahiano e em Abrolhos’, de Diana Gonçalves Simões, publicado na revista Eco-21 (n. 104), em junho de 2005.

[8] Atividade silenciosa, ou quase isso, o uso de sonar é um pesadelo para muitos animais marinhos. Aspectos inusitados envolvendo o uso do sonar, e a consequente corrida armamentista em torno dessa tecnologia, são retratados no filme Alerta Lobo (Le chant du loup, 2019), de Antonin Baudry.

[9] Sobre a importância da audição na vida dos cetáceos (e outros mamíferos), eis o comentário de Pough et al. (2003, p. 579; alguns erros no original foram corrigidos):

“A audição apresenta diversas vantagens como um sentido de distância comparada com a visão e com o olfato. O som não é prontamente bloqueado por obstáculos no ambiente (como ocorre com a luz) e é transmitido mais direcionalmente e mais rápido do que os odores. […]

Os morcegos e os cetáceos dependem da audição como seu sentido primário de distância para a navegação e para a localização das presas. Uma análise da ecolocação ilustra como a capacidade sensorial, ancestral aos mamíferos, pode ser elaborada sob certas condições ambientais. Diversos mamíferos emitem sons acima dos 20 kilohertz (20.000 ciclos por segundo), chamados de ultrassons, pois eles se encontram acima da sensibilidade humana normal (as dez oitavas entre 20 Hz e 20 kHz). Os elefantes emitem sons abaixo da capacidade de audição humana (infrassons) em conexão a movimentos de grupos e receptividade reprodutiva. […]

Os mais bem estudados mamíferos com ecolocação são os morcegos microquirópteros e os cetáceos dentados (por exemplo, golfinhos), os quais utilizam esta modalidade sensorial para localizar suas presas, sob condições nas quais a visão não seria apropriada. (Os tipos de baleias, cujos cantos você pode comprar em discos, são as barbatanas filtradoras, as quais não produzem ultrassons, provavelmente porque elas não necessitam localizar as presas.) Os morcegos caçam insetos à noite, e as baleias dentadas caçam peixes e outros animais marinhos em águas turvas.” – Pough, FH & mais 2. 2003. A vida dos vertebrados, 3ª ed. SP, Atheneu.

* * *

Redação

0 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador