A vida, o sistema, por Eliseu Raphael Venturi

Incapaz de fixar qualquer debate que não seja formação de coro, com canções que agradam ou desagradam os ouvidos, os meios de informação e jornalismo não parecem avançar ou contribuir senão aos velhos costumes privados das pautas próprias

A vida, o sistema

por Eliseu Raphael Venturi

O que o saber biopolítico induz ver, em alguma medida, e destaca, é que existem modos e modos de governamentalidade para se gerir modos e modos de vida e, inevitavelmente, modos e modos de morte. Qual o jeito certo de nascer e de morrer? Parece que cada vida vivida e finalizada deu a sua resposta. Um tanto frio diante dos sonhos contratualistas, constitucionalistas, dogmáticos. E do direito à vida.

Ao mesmo tempo, face tantos modais, lançados ao sabor e apetite das perversidades chave e fechadura de governantes e governados, a analítica do poder biopolítico elide as ficções,  as normas, as deontologias mais profundas,  arranhando as fantasias éticas modernas de racionalidade, segurança, respeito; da pessoa como centro intangível de dignidade. Para qual território se é, então, demovido?

Tomam-se decisões com base no desatino estratégico. O que dizer? Tomam-se decisões com base na ciência. Este ente universal, abstrato e genérico, fonte de um conhecimento que, afinal, não se sabe ao certo qual, em qual extensão, sob qual fonte e finalidade. Somam-se e ouvem-se jogos de especialistas (aliás, quase sempre os mesmos) cujos discursos vão se atravessando na cabeça do cidadão, coagido pela ameaça de morte em meio ao tiroteio. A ciência, este saber que posto em curso quase sempre nasce dos corredores corporativos, em que a impessoalidade é poeira e os procedimentos dos que protestam são equivalentes aos dos protestados, é a salvação. E é.

Incapaz de fixar qualquer debate que não seja formação de coro, com canções que agradam ou desagradam os ouvidos, os meios de informação e jornalismo não parecem avançar ou contribuir senão aos velhos costumes privados das pautas próprias; que, eventualmente, podem até ser sensatas,  um compromisso sempre acidental.

Parece se tratar de um último antídoto ante os desesperos do negacionismo, da ignorância e, sobretudo, da maldade política. E talvez seja mesmo o último recurso diante da avacalhação. Mas, no final as contas, não é cultura, é efeito que evanescerá no próximo escândalo, crise, moralização e mais afundamento.

Admite-se, mesmo no registro da ciência, este novo fetiche do senso comum, a cifra da morte. O que importa é a manutenção do sistema, este ente abstrato e genérico, que é a máquina de administrar a ser administrada e seus aparelhos, em um patamar que torne a normalidade – seja lá o que for essa estrita normalidade produtiva em crise permanente. O critério das eclusas, o que abre e fecha as comportas, a linha de corte do proibido e do permitido, se dá sob tal insígnia. E apenas esta gestão importa. O entorno é má poesia. Por mais bem intencionados que sejam os indivíduos e por mais que se dêem em sacrifício. Aliás, esta é uma velha e conhecida exigência do preço da carne: sempre haverá a margem admissível dos mil mortos por dia aqui, ou dos mil outros trabalhadores da construção acolá, “ad infinitum”.

Dentro do pragmatismo deste senso comum, reforçado pelos aparatos normativos e administrativos, é o que resta. As vidas são meios, os indivíduos são meios, as populações são meios de garantia destes sistemas. O cuidado é um meio. Não há vidas, pessoas, indivíduos, cuidados, governos, populações.

Olhando-se de fora, no breve e curto passeio à borda do lançamento biopolítico, o que há é a visualização do espaço que habitamos: um lugar onde jamais existimos e, por isso, facilmente podemos deixar de estar. Ficam umas condolências com a dor maior ou menor, conforme os critérios dos status nos obituários, que se apagam como flores frescas ou de plástico. Ficam as apropriações dos cadáveres para aqui, para ali; em todas as direções se reclama a posse e a propriedade dos mortos para continuar a mesma engrenagem, único deus a que se confere verdadeira devoção, quando se chega à última boneca russa.

É a verdade que nos fez, nos faz, pela qual lutaremos, mataremos e morreremos. Não podemos admiti-la porque suas contradições e inviabilidades nos anulam por completo: cassam nomes, documentos, personalidades. Não se educa para a morte como não se educa para se reconhecer o ser nada, o ser ninguém, esta condição humana do silêncio.

Mas logo, logo nossa cápsula volta, nunca deixou, ao res e reles do chão; ao solo que ansiosamente nos aguarda a sua profunda e completa assimilação.

Eliseu Raphael Venturi é doutor em direitos humanos e democracia e radicado em Curitiba/PR.

Este texto não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

Redação

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