“Onde queres fuzil, eu sou feijão!”

Nota da Associação Juízes para a Democracia em 7 de setembro de 2021

“Onde queres fuzil, eu sou feijão!”

Nota da Associação Juízes para a Democracia em 7 de setembro de 2021

“Onde queres fuzil, eu sou feijão!”

A Associação Juízes para a Democracia – AJD, entidade de âmbito nacional, que tem entre suas finalidades estatutárias “o respeito absoluto e incondicional aos valores jurídicos próprios do Estado Democrático de Direito” vem a público manifestar sua preocupação diante da escalada de atos antidemocráticos que têm no dia 7 de setembro de 2021 um de seus pontos culminantes, na conjuntura de constantes e reiteradas ameaças de ruptura da ordem institucional que caracterizam o governo do Presidente Jair Bolsonaro.

O clima de acirramento das forças antidemocráticas não é obra do acaso. Ao contrário, trata-se do resultado de vários movimentos que, de forma organizada e planejada, buscam desestabilizar o regime democrático, duramente conquistado após a superação dos anos de ditadura militar.

1)         O papel constitucional das forças armadas

As Forças Armadas são instituições de Estado e não de Governo. Cumprem importante papel de defesa nacional, entendida como política de Estado, de defesa da soberania nacional, que deve ser debatida com toda a sociedade. Defesa nacional é a defesa do país em face de ameaças externas concretas. Defesa nacional pressupõe diminuir vulnerabilidades e não agir contra a parcela vulnerável da população; é relação de boa vizinhança; é o cuidado com a soberania, a autonomia científica e tecnológica; e não uma visão salvacionista do patriotismo que desacredita a política e criminaliza os políticos de forma indiscriminada. A tese de que as Forças Armadas devem cumprir um suposto papel “moderador” entre os poderes da República parte de uma interpretação absolutamente divorciada do sentido conferido pela Constituição Federal ao princípio da separação dos poderes. A harmonia e independência entre os poderes se estabelecem a partir da moderação obtida com o regular funcionamento dos mecanismos já estabelecidos pela própria Constituição Federal. Admitir-se que um elemento integrante do poder executivo, inserido na estrutura da administração direta da União, exerça um poder moderador sobre si mesmo e sobre os outros poderes carece não apenas de coerência e lógica, mas igualmente, expressa a inexata compreensão das mais elementares lições da teoria geral do Estado moderno. As Forças Armadas não devem ceder a uma suposta missão salvacionista da Nação, pois além de não ser essa a sua missão constitucional, isso traz embutida uma falsa compreensão de superioridade hierárquica em relação à população civil que não se coaduna com sua função de defesa do país em face de ameaças externas concretas.

2)         O papel constitucional das polícias militares

Como afirma Luiz Eduardo Soares, as polícias militares têm se desviado de seu papel de policiamento ostensivo em defesa da cidadania para se transformarem em “pequenos exércitos desviados de função”, o que resulta em ineficácia no combate ao crime, incapacidade de efetuar o controle interno e insensibilidade no relacionamento com os cidadãos. A politização das polícias militares agrava esses problemas estruturais, ao incorporar um elemento ideológico de ódio ao inimigo, típico dos momentos históricos de fascistização, transformando-as em braço armado do autoritarismo político.

A participação de policiais militares em atos antidemocráticos deve não apenas merecer censura, mas apuração de responsabilidades no plano disciplinar e, quiçá, criminal, já que sua missão é a de assegurar as condições para o exercício das instituições democráticas e não de ameaçá-las ou intimidá-las.

3)         O estímulo ao armamento das populações civis e a tolerância à atuação das milícias

Dados do Instituto Igarapé demonstram o crescimento de 65% no número de armamento legal em poder de civis no Brasil nos dois primeiros anos do governo Bolsonaro. O discurso estatal de estímulo à posse de armamentos (fuzil, em vez de feijão!) vai na contramão da tendência de queda da taxa de homicídios verificada com a regulamentação mais restrita preconizada pelo Estatuto do Desarmamento. Além de se inserir na lógica discursiva de incitação à violência e ao ódio que divide a população brasileira, a posse de armamentos pela população civil constitui mais um ingrediente preocupante em contextos como o presente, caracterizado por ameaças reiteradas de ruptura institucional.

A lógica que preside a expansão da posse de armas pela população civil é a mesma que naturaliza e tolera o funcionamento de milícias, como pretensas forças auxiliares da segurança pública, mas que, na verdade, atuam no constrangimento e extorsão das populações periféricas para auferir lucros.

A soma de todos esses grupos com livre acesso a armamentos, insuflados por discursos de incitação à violência contra as instituições, por parte de agentes públicos, traduz-se em contexto de extrema gravidade, a ponto de intelectuais e líderes políticos de mais de 25 países manifestarem sua preocupação com o risco de insurreição em carta aberta divulgada no dia 6 de setembro de 2021.

4)         O cultivo do ódio, da desinformação e do negacionismo

As redes sociais na Internet, que tiveram seu uso hiperestimulado na pandemia, tornaram-se veículo de desinformação e manipulação através de notícias falsas, alteração de dados e mentiras. Tudo com a desabrida postura do governo que fez criminosa campanha para uso de medicamentos inadequados para o combate do coronavírus, procrastinando a compra e distribuição de vacinas e estimulando posturas negacionistas no que diz respeito à saúde do povo brasileiro. Assistiu-se a seiscentas mil mortes de brasileiros e brasileiras por COVID-19 ou por sequelas dela decorrentes, gerando cenas impensáveis, de cemitérios sem espaço para que os mortos pudessem ser enterrados dignamente. Em meio a tanta tristeza, horror e desespero, o governo seguiu distribuindo notícias mentirosas, tendo como seu mais influente propagandista o Presidente da República, em atos ostensivamente criminosos: ora produzindo aglomerações de pessoas, sem uso de máscara, ora fazendo desrespeitosas piadas de mau gosto, tripudiando sobre a dor e luto de milhares de cidadãos e cidadãs. E, enquanto ainda se enfrenta a pandemia com perdas diárias de vidas, vêm à tona informes oficiais com dados estarrecedores da CPI da COVID 19 que indicam a existência de abjetas transações e negociatas praticadas por membros da administração federal, na área da saúde, que envolvem a compra de vacinas e insumos. Somados às posturas negacionistas do governo federal, dados da CPI escancaram indícios de corrupção e posturas que almejam desmontar o SUS, o qual figurou como serviço eficaz e guardião da saúde de brasileiros e brasileiras que a ele recorreram e dele continuam a necessitar com a agora nefasta presença de variantes do coronavírus.

Na véspera dos atos antidemocráticos convocados pelo Presidente da República, é editada a Medida Provisória nº 1.068 que, alterando de forma autoritária dispositivos da Lei do Marco Civil da Internet, fruto de profundos debates com a sociedade civil, busca dificultar o exercício do papel de moderação atribuído às empresas provedoras de serviços e aplicativos de internet, mediante retirada de conteúdos tidos como discurso de ódio das redes sociais.

A incitação ao uso de violência e discursos de ódio é conduta vedada por Tratados Internacionais e alvo de preocupação da comunidade internacional exatamente em razão de eventos históricos de triste memória, tais como o genocídio de Ruanda, em 1994; o holocausto nazista, durante a Segunda Guerra Mundial; entre outros.

O abuso do direito de legislar por medidas provisórias, com nítida finalidade de favorecer a propagação de discursos de incitação à violência e de ódio à democracia, a agentes públicos dissidentes e a minorias politicamente vulnerabilizadas não pode prevalecer. Antes, deve merecer o repúdio social, a sanção jurídica de inexistência e as responsabilizações cabíveis.

5)         As ameaças às instituições, notadamente ao Supremo Tribunal Federal e ao Tribunal Superior Eleitoral

A cada dia renovam-se, em crescente escalada de intensidade, ameaças, ofensas, intimidações e toda sorte de impropérios e incitação de prática de violência contra Ministros do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior Eleitoral, em razão de sua atividade de julgar.

A interdição do exercício da jurisdição pela violência evidencia, de forma gravíssima, a aceleração do processo de ruptura institucional, além de consubstanciar múltiplos crimes contra o Estado de Direito, cenário vivenciado em momentos sombrios da história da humanidade, cujo resultado é conhecido de todos: desagregação social, violações de direitos humanos em massa, instabilidade política, além de danos materiais e econômicos, impedindo que o País recupere a trilha de desenvolvimento interrompida com a ascensão do governo atual.

Um país assolado por uma profunda crise econômica, humanitária, ambiental necessita de serenidade e união de esforços para superá-la e não de incitação à prática de atos violentos contra as instituições, sobretudo mediante o estímulo ao uso de armas pela população civil e o engajamento de agentes públicos armados e milícias digitais.

Diante do perigoso quadro de iminente ruptura da ordem democrática, a Associação Juízes para a Democracia – AJD, ao tempo em que manifesta solidariedade humanitária às autoridades ameaçadas, convoca os poderes constitucionais a cumprir de forma intransigente suas atribuições de defesa da democracia e das instituições.

Somente a atuação firme de todos os agentes comprometidos com a democracia terá o condão de superar as turbulências artificialmente criadas pelas forças extremistas e promover as condições que permitirão a instauração de uma sociedade justa e igualitária, na qual toda pessoa possa desenvolver suas competências e habilidades, e, assim, usufruir de uma vida livre de violências e discriminações, apta a contribuir para o grande esforço de reconstrução nacional que voltará a posicionar o Brasil dentre as grandes nações na ordem mundial.

Este texto não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

Redação

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