Elio Gaspari e o temor reverencial no jornalismo

O medo garante a sobrevida profissional; mas mata aos poucos o jornalismo.

Nos anos 90, quando o Estadão descontratou a coluna de Elio Gaspari, fiz um artigo em sua defesa. Arrumei sarna para coçar com o Estadão, mas em uma boa causa. Não tinha motivo pessoal para defender Gaspari – diria até o contrário. A defesa era do jornalismo.  Mostrei que a coluna era relevante e eventuais contrapontos à linha ideológica férrea do jornal era sinal de modernidade.

Gaspari ficou grato. Tão grato que marcou um almoço no Massimo, onde agradeceu o apoio e se ofereceu para um artigo interessante, para um compêndio que estávamos organizando em apoio ao jornalista Luiz Fernando Mercadante. Relataria como ele, Gaspari, foi o principal responsável pela barriga da Veja, no caso do boimate. Foi uma oferta corajosa, admito.

O artigo acabou não sendo entregue, o livro não saiu, a coluna de Gaspari foi contratada pela Folha – onde, desde então, cumpre carreira brilhante.

Faço esse prólogo a respeito do silenciamento imposto pela mídia a meu trabalho, por minha crítica recorrente ao mau jornalismo praticado – do qual o exemplo mais ostensivo é, justamente, o silenciamento de temas não endossados pelos grupos de mídia.

O enquadramento geral não é uma ordem unida, que vem de cima. Pelo contrário, em particular tenho bons contatos com os bons jornalistas que estão emergindo desses tempos bicudos, em que a profissão foi estuprada. Trata-se muito mais do receio do jornalista de ficar “mal visto” pela empresa, uma auto-defesa temerosa. Eles passam a se guiar por listas – explícitas ou tácitas – de nihil obstat, do que pode sair ou não, recurso típico da Inquisição que, durante muito tempo, era prática apenas do Estadão

Quando sobreveio a longa noite do jornalismo de esgoto, houve três atitudes por parte do primeiro time de jornalistas. Um grupo resistiu e foi defenestrado. Outro grupo recuou, sem perder a dignidade. Foi o caso de Gaspari e Janio de Freitas. Um terceiro grupo aderiu vergonhosamente e nem é o caso de nominá-lo. Eles sabem que nós sabemos o que eles fizeram.

Nos tempos atuais, as colunas tradicionais ficaram a léguas de distância do saudável pluralismo dos anos 90. Temas mais aguerridos são bancados por colunistas ocasionais. 

Nos últimos tempos começou uma descompressão lenta e gradual, em tudo similar à do fim da ditadura: aceitam-se novos temas, lentamente, desde que não se revolva o passado e não se pense em Justiça de Transição. E Gaspari e Jânio passaram a atuar como bússolas da mídia, Jânio mais solto e Gaspari com a cautela típica de Gaspari.

Gradativamente o nihil obstat permitiu a crítica à Lava Jato, a Sérgio Moro, à fraqueza da terceira via, até a algum reconhecimento a Lula. Mas passam ao largo de casos tabu.

Há duas semanas, a TV GGN trouxe à tona o caso do reitor Cancellier – morto pelo clima de ódio criado pela mídia com a Lava Jato. Até agora foram 50 mil visualizações. 

Em outubro, o jornalista Paulo Markun lançou um livro sobre o tema, que passou despercebido, sem nenhum registro na grande mídia apesar de sua qualidade. Todos os registros sobre o livro de Markun apareceram na mídia depois do documentário da TV GGN. Não se trata de mérito do documentário, mas de demérito da mídia e sua dificuldade em quebrar tabus.

Esta semana, Gaspari saudou o livro de Markun em sua coluna. Nenhuma menção ao documentário da TV GGN. A única menção foi de um não-jornalista, Fernando Schüller, na Veja, com o nome GGN devidamente suprimido, provavelmente na edição.

E aí me lembro de meus tempos de grande mídia, o dia em que afrontei um grande jornal em defesa de um jornalista, Elio Gaspari, sem me guiar pelos hábitos de compadrio típicos de corporações fechadas.

O medo garante a sobrevida profissional; mas mata aos poucos o jornalismo.

6 Comentários

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  1. Onde se lê, “temor reverencial”, eu leio ‘medo de perder o emprego’.
    Os jornalistas que já há tempos, como o Nassif, movidos por uma ética inamovível, saltaram fora das redações da grande mídia, só tiveram um caminho a seguir: a internet.
    Sabemos de suas lutas desiguais, hoje: contra um judiciário totalmente submetido à grande mídia (ou será ‘temor reverencial’ a uma possível e trivial – para essa mesma grande mídia – destruição de reputação, tal e qual a do reitor?), contra plataformas que os suprimem em seus mecanismos de pesquisa, e que os obrigam (em alguns casos) a apelar para sensacionalismo e clickbaits para robustecer suas receitas, enfim, como estão hoje sufocados por um ambiente adverso que ainda não atingiu seu auge.
    É isso, creio eu, que dobra gente como Élio Gaspari. Que tem perfeita consciência das dificuldades que enfrentarão, pulando do barco onde hoje estão, e talvez não tenham os culhões necessários para tanto. É isso, trata-se de um temor de ordem prática, demasiadamente humano, diante de senhores demasiadamente humanos, e não um temor ‘reverencial’, é isso que mantém essa gente onde está. Admiro Jânio de Freitas, de quem nunca li algo que tenha qualquer semelhança ou sugestão de lhaneza e capitulação; o mesmo não posso dizer de Gaspari.
    Longa vida ao jornalismo independente! Ainda que desconfie que isso não se dará, ao menos nos moldes de hoje, na internet. Mesmo caçando lebre com boi, remando contra a maré, esse jornalismo sobreviverá. Na clandestinidade, nos subterrâneos que nos esperam, esse jornalismo sobreviverá.

  2. Parabéns, Nassif.
    Estou tomando coragem para assistir o documentário sobre o Professor Cancellier. Acompanhei aqui no ggn todo o desenrolar desse horror. Fiquei muito emocionado pela situação e indignado com a covardia de seus perseguidores. Esse documentário é fundamental para registrar o arbítrio, para que não se esqueça o que agentes do Estado podem praticar contra um homem decente.

  3. Nassif , assisti seu documentário,me emocionei ao ponto de chorar, não aceito injustiças. Sou da grande Florianópolis e acompanhei tudo pela mídia, foi muito triste.

  4. É muito estranho o silêncio de indiferença ou de conivência da OAB, nessas tragédias anti-democráticas ocorridas no Brasil, nos últimos anos. A OAB precisa ser cobrada!

  5. Prezado Nassif, li a matéria do Gáspari sem conhecimento dos antecedentes aqui relatados. Independentemente da profissão, isto está na prateleira do caráter. E aí, não há cura.

  6. Parabéns, Nassif! Você é ícone da resistência, na prática do jornalismo verdadeiramente profissional. A história não perdoará os que fazem jornalismo de esgoto.

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