A Lei é Dura mas é só uma Lei
por Nadejda Marques
No Brasil, numa certa época, a solução mágica para muitos problemas da sociedade era a tipificação de um crime e, melhor ainda, se fosse como crime hediondo. Só que a solução por vias do Código Penal é eficaz até um certo ponto e na medida que além de prever consequências para aqueles que cometem os crimes também é capaz de gerar o efeito de dissuadir que outros cometam esse mesmo crime.
Esse pensamento nos leva a questionar a eficácia de algumas leis e, ressalto aqui, a lei sobre feminicídio. O Brasil tem uma das mais altas taxas de feminicídio do mundo. Certamente, a lei do feminicídio (Lei 13.104/15) em vigor desde março de 2015 é um avanço no combate à violência contra as mulheres, mas tem-se a impressão de que não tem contribuido muito para a queda na taxa de homicídios de mulheres que segue aumentando e, no período de 2015 e 2019, aumentou 6.09%! Em 2022, foram registrados 1.410 casos de feminicídio, o maior registro desde 2015. Pior ainda. O aumento de feminicídio e de homicídio de mulheres vai na contramão dos dados gerais de assassinatos no país que recuaram 1.1% no ano de 2022.
Parece que as pessoas não estão sendo dissuadidas e nem tampouco que há uma mudança cultural significativa sobre o assunto. Não quero dizer que seja uma questão de ser ou não crime hediondo pois, sendo enquadrado como homicídio qualificado, dependendo do caso, o feminicídio já seria classificado como crime hediondo. Quero sim, abordar uma falha estrutural e outra conceitual.
Estrutural porque, a legislação sobre o assunto ainda é considerada “recente” e por isso, os sistemas de informação das polícias e as próprias forças policiais ainda teriam algumas limitações para discriminar se uma ocorrência (assassinato ou violência doméstica) teria sido motivada por questões de gênero. Sendo assim, a resposta e aplicação da lei parece ser inconsistente e, às vezes, insuficiente. Com o passar do tempo, mais assassinatos seriam registrados de forma correta e isso representaria um aumento do número de feminicídios.
Conceitual porque a violência de gênero é um problema multidimensional que requer uma série de medidas e políticas que vão além da resposta que o sistema penal pode oferecer. Além disso, nem todas as mulheres são afetadas da mesma forma. Os indicadores sobre mortes violentas de mulheres no Brasil indicam que as maiores taxas estão entre mulheres jovens e são de maior proporção entre a população negra. Então, também é preciso levar em conta o caráter interseccional da violência contra a mulher e o feminicídio. Precisamos de medidas econômicas porque, por exemplo, o acesso limitado a recursos econômicos e financeiros limita a autonomia das pessoas que sofrem abusos. Precisamos de políticas de desarmamento porque a violência de gênero é facilitada pela comercialização, circulação e aquisição de armas de fogo. Precisamos de políticas de saúde pública porque a violência de gênero traz sérias consequências de saúde para as pessoas que sofrem abusos e, possivelmente, seus descendentes. Precisamos de medidas e políticas culturais porque é preciso gerar consciência individual e comunitária sobre como apoiar pessoas que são vítimas de abusos. Lembrando que o feminicídio e a violência doméstica normalmente decorrem de uma escalada de diferentes formas de violência como ofensas, humilhações, abuso emocional, violência patrimonial dentre outras e que, oito em cada 10 casos de feminicídios o autor é o marido ou namorado da vítima.
Enfim, a lei é dura, mas é só uma lei.
Nadejda Marques é escritora e autora de vários livros dentre eles Nevertheless, They Persist: how women survive, resist and engage to succeed in Silicon Valley sobre a história do sexismo e a dinâmica de gênero atual no Vale do Silício e a autobiografia Nasci Subversiva.
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