
No Brasil, 75,56% dos homens acreditam ser justificável algum tipo de agressão às mulheres, e que elas não possuem o direito de escolher ou não ter filhos.
O número causa alarme e faz parte do Relatório do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, Pnud, “Índice de Normas Sociais de Gênero”, que entrevistou pessoas ao redor do mundo – cobrindo 85% da população global.
Entre os países falantes de língua portuguesa, o Brasil é o único a participar da pesquisa. O estudo analisou quatro dimensões: integridade física, educação, política e econômica.
Segundo o levantamento, 84,5% dos brasileiros têm pelo menos um tipo de preconceito contra as mulheres. Por exemplo, 31% dos brasileiros acham que homens têm mais direito a vagas de trabalho.
O relatório aponta que, no mundo, 25% dos entrevistados acreditam que “é justificável um homem agredir sua companheira”.
O estudo revela: 90% dos entrevistados têm algum tipo de preconceito contra as mulheres.
A categoria preconceito, porém, recebeu críticas de pesquisadoras, feministas, indígenas e educadoras no Brasil. Mesmo sem desconsiderar os números alarmantes, as mulheres entendem que eles não revelam preconceito, mas violência.
Perspectiva crítica
Carmen Silva, educadora do SOS Corpo, entende que a pesquisa “não ajuda muito a compreender a dominação e a exploração que as mulheres vivenciam no sistema patriarcal que organiza a sociedade brasileira”.
Militante do Fórum de Mulheres de Pernambuco, ela explica que não se trata apenas de preconceito, ou seja, uma ideia sem fundamento, senão de violações da integridade física e do direito de decisão como sujeitas de suas vidas.
Ocorre que a utilização da categoria é um ponto central na definição da metodologia da pesquisa, levando-a a se afastar das realidades objetivas, por um lado, e a abrandar resultados graves, por outro.
O fato de que os homens concordem com essas violações, e as mulheres também, a partir da ideia de que são preconceitos, leva Carmen a pensar na metodologia da pesquisa porque, embora as mulheres possam ter “preconceitos”, por exemplo, se faz refletir na quantidade delas entrevistadas e que concordam com as violências contra o próprio corpo.
Não se trata de preconceito
A categoria preconceito, usada pelo Pnud, incomoda Carmen tanto quanto os dados em si. Ela cita casos concretos, que podem ser encaixados em algum dos quatro eixos da pesquisa do Pnud, que em nenhuma situação se enquadram como preconceito.
Postos de poder de decisão na sociedade, que colocam as mulheres em situação minoritária, caso do parlamento e demais cargos políticos eleitorais, ou mulheres que recebem 70% da massa salarial dos homens, tratam de um projeto capitalista de poder escorado na estrutura patriarcal.
Nada disso é fruto de preconceito, explica Carmen. Com as mulheres negras, a situação é ainda pior. Na informalidade, 70% dos trabalhadores são mulheres. Preconceito é uma forma branda e ineficaz para explicar o contexto.
“Nas realidades cotidianas vivemos essa mesma situação de violência com alto índice de feminicídio, controle dos nossos corpos, somos proibidas de interromper a gravidez”, diz.
A dominação de gênero, de classe e raça são imbricadas, e invisíveis no relatório do Pnud, “mas a pesquisa não revela isso porque não pesquisou isso, mas no cotidiano está presente com muita força”, analisa Carmen, que faz parte do Instituto Feminista para a Democracia.
Luta feminista
Ocorreram avanços impulsionados pela luta das mulheres. “Nos demos o direito de nos auto-organizarmos no movimento feminista e incentivar todas as mulheres a serem donas de suas próprias vidas”, contrapõe Carmen.
O atual programa do governo federal de salário igual para trabalho igual é resultado de uma reivindicação das mulheres no campo do trabalho. Na saúde, o ponto principal é a retomada de políticas aniquiladas por Bolsonaro.
No enfrentamento à violência, está a Lei Maria da Penha, uma política pública importante, mas ainda sendo implementada.
“O principal desafio é ganhar corações e mentes na sociedade para o entendimento de que a dominação e exploração que nós mulheres vivemos é em benefício dos homens e do Estado”, defende.
Carmen afirma que o Estado se desresponsabiliza pelo enfrentamento da desigualdade e corresponsabiliza as mulheres pela execução de políticas públicas colocando condicionalidades nos programas sociais relativos ao cuidado de filhos, escola e saúde.
Mulheres indígenas
“Assim como as terras indígenas são violadas, os corpos das mulheres indígenas também são. O tempo todo há quem queira nos controlar, o que podemos e quando podemos dizer”, diz Pretinha Truká.
Ela vive na Ilha da Assunção, Terra Indígena Truká, em Cabrobó, no sertão de Pernambuco. O protagonismo das mulheres indígenas é sempre colocado em xeque, tanto no enfrentamento às violências externas como na infiltração patriarcal na estrutura social das aldeias.
“A violência cometida tanto fisicamente e moralmente é constante. Tão em todos os campos e ações. Se usamos adornos que mostram o corpo, somos taxadas de prostitutas. Nosso corpo não é livre”, completa.
Dentro dos territórios indígenas, Pretinha entende que os povos indígenas ainda precisam avançar: há violências domésticas e os espaços de poder são, de forma majoritária, dominados pelos homens.
Diferença entre preconceito e violência
O preconceito existe contra as mulheres indígenas, mas Pretinha faz uma separação entre o que é preconceito e o que é violência. Para ela, o preconceito existe no que diz respeito à identidade indígena.
“As mulheres indígenas, com relação às demais, que já sofrem toda essa violência, são consideradas incapazes, mas somos capazes de estar e fazer o que bem entendermos, ocupar cargos, estar na universidade”, defende.
Pretinha acredita que o caso também se estende às mulheres do campo. Juntas, são vistas como aquilo que é do campo é visto fora do agronegócio: sem instrução, atrasado, analfabeto. O homem ainda serve de mão de obra barata.
No entanto, ela lembra que a mulher indígena segue sofrendo violências atrozes. “Nossos territórios seguem invadidos e esses invasores abusam sexualmente de crianças e adolescentes, estupram, exploram mulheres”, lembra.
Caso recente envolve mulheres, jovens e crianças Yanomami exploradas sexualmente por garimpeiros invasores. Em troca de relações sexuais, ofereciam comida usada para alimentar aldeias em situação de fome extrema.
“Só com a resistência de querer estar viva é possível passar por isso. A resistência da mulher indígena é desde sempre e contra o feminicídio. Sentimos uma dor muito grande, mas estamos de pé e conseguimos até sorrir”, conclui.
Normas sociais
Para o chefe do Escritório de Desenvolvimento Humano do Pnud, Pedro Conceição, as normas sociais que prejudicam os direitos das mulheres, danificam a sociedade em geral e atrasam o avanço social.
Mesmo com avanços concretos e reais na questão de gênero, motivados pelas lutas feministas mundo afora, Conceição entende que os números, no Brasil e no mundo, refletem as normas sociais.
“O que é uma norma social? Uma expectativa relativamente àquilo que a sociedade espera que seja o papel das mulheres em vários domínios da vida, seja no mercado de trabalho, seja no envolvimento com a política, seja em posições de liderança”, disse.
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