Se há conservadores progressistas há progressistas conservadores

Uma coisa básica é entender que, dos anos 1980 para cá, a política deixou de se nortear pelo permanente eixo ‘direita/esquerda’, que define papel de Estado, estatizações, tributações progressivas ou regressivas.

Surgiu um outro eixo de ‘valores’, que vai do mais autoritário (disfarçado nos discursos com a falácia da ‘vontade da maioria’), ao mais libertário (que no inglês norte-americano seria ‘liberalismo’ para quem é de esquerda em economia e ‘libertarianismo’ para quem é de direita em economia.)

Há tendências de longo prazo para o eixo focado em economia, que são o centro ser progressivamente cada vez mais à esquerda. Mesmo quando há ondas de privatização e liberalização de regras para o mercado de trabalho, o retorno nunca se dá ao ponto mais à direita anterior. Isso sob os modelos de democracia representativa partidária (ou seja, excluindo-se os países que passaram pela experiência do socialismo real.)

Por mais que Reagan e Thatcher tenham cortado impostos e gastos públicos, não voltaram ao começo do século XX. No longo prazo as sociedades caminham para maior participação do Estado nas economias e na redução de injustiças sociais, e isso é aceito à esquerda e à direita.

O que leva a outra coisa básica: políticas redistributivas, de igualdade de oportunidades em educação e saúde, de aceitação de imigrantes, etc etc não são mais bandeiras de esquerda, são bandeiras para a manutenção da viabilidade das sociedades capitalistas.

Em outras palavras, não é necessário ser ‘de esquerda’ para ter bom senso comum.

Já para valores há várias questões que não permitem esse movimento pendular (+ ou – impostos, + ou – estatais.) Quando sociedades descriminalizam o aborto ou a maconha, ou fazem a abolição da pena de morte, é muito difícil que voltem atrás. Cada causa só pode ser utilizada eleitoralmente uma vez, na prática, portanto, para a maioria delas.

Aí passamos para a realidade que são as eleições, um concurso de propaganda. As coisas se dão com variações nos diferentes países, foquemos com exemplos brasileiros.

Políticas como bolsa-família deixam de ser ‘política de governo’ e passam a ser ‘política de estado’. Há uma propaganda de medo disseminada por redes sociais que busca imputar ao PSDB uma tendência a voltar atrás nisso. Não importa o que Gunter ou Filipe acreditem, importa o que a maioria da população acredita que poderá acontecer.  Acho (apenas acho, nunca vi pesquisa sobre isso) que a maioria da população não teria receio de ‘retorno da direita’ por esse lado.

(O movimento de conservadores adotarem ‘pautas progressistas’ é mera manutenção da viabilidade de sociedades capitalistas, com a diminuição de conflitos.)

Aí partidos de centro-esquerda ficam sem o monopólio do discurso social. Precisam, para garantir vitórias eleitorais, apelar para sentimentos de massa. Ora, massas são mais suscetíveis a discursos conservadores de medo, como o de ‘fim da família’. Não é à toa que os mais pobres, com menor escolaridade, são os mais contrários à descriminalização do aborto e a reconhecer a naturalidade da orientação homossexual.

São justamente as vítimas (da perseguição policial em periferias) que servem de massa de manobra para obstar a redução do Estado Penal! A descriminalização da maconha seria um alívio no excesso de aprisionamento e mortandade entre jovens negros, mas a defesa dessa tese (como, por exemplo, quando feita por FHC) é objeto de demonização pelo ‘conservadorismo’ que se implantou no (autodenominado) progressismo.

Esquerdas não sabem reagir quando a direita faz discurso progressista. Quando FHC defende a descriminalização da maconha, ou Obama defende a inclusão de LGBTs, a reação é patética. Tenta-se desqualificar o discurso com argumentações ad hominen, como se políticos de direita não tivessem moral para defender aquilo que justamente é cobrado deles! (Isto é, que deixem de ser reacionários.)

As ‘esquerdas’ não gostam de perder bandeiras, reagem muito mal quando acontece isso. O mimimi no Brasil, em torno de direitos civis de LGBTs, é cabal a respeito. (Esse é o assunto que melhor conheço, por isso o exploro, mas analogias podem ser encontradas em vários temas.) 

Se um político do PSDB ou um veículo de mídia (como, ostensivamente, as Organizações Globo), defendem direitos LGBTs, a reação das ‘esquerdas’ deveria ser reconhecer que esse assunto já tem decisão de maioria na opinião pública brasileira.

Ao invés de aceitar isso e se unir ao coro da igualdade, o que se faz? Resiste-se à ideia da inclusão, ora se omitindo em relação à flagrante necessidade de se lidar com a homofobia ora fazendo um discurso ativamente conservador (“não vamos combater bullying em escolas públicas porque pastores não gostam”.)

Não adianta argumentar que o discurso menos conservador moral que a direita vêm fazendo atrairá votos da classe média que antes preferiria a esquerda, e poderá fazer perder votos entre eventuais pobres informados da importância desses temas (a adolescente que enfrenta uma gravidez indesejada, preferirá um discurso conservador em economia, mas que reconhece seu direito ao aborto, ou prefrirá um discurso ‘progressista’ em economia, que a trata como criminosa? Por que a Globo enxertou em três programas, neste ano, defesas pela descriminalização do aborto? Por que dois programas Globo Repórter para elogiar as legislações de Portugal e Uruguai?)

Caso um jovem pobre tenha consciência da realidade da repressão policial, que vantagem tem ele em embarcar nesse atual discurso de partidos governistas pela redução da maioridade penal e recriminalização do consumo recreativo de drogas? (Se bem que o apoio à redução da maioridade penal perpassa toda a sociedade, inclusive a que vota no PSDB.)

Como convencer um adolescente pobre LGBT, perseguido nas escolas, nas comunidades e em suas famílias, de que o abandono do combate à homofobia foi uma ideia ‘progressista’? Impossível, de tão ilógico que é esse discurso ‘realpolitik’ de que é bom desprezar injustiças presentes em nome de igualdades futuras.

O discurso oficial do PT e PMDB em relação a esses assuntos é um equívoco completo. Não impedirá a reeleição de Dilma, por óbvio. Mas leva a desgastes tanto à esquerda (PSoL) como à direita (PSDB, PPS, PV) que começam a abordar com maior naturalidade o inevitável. 

Criminalização da homofobia já é vontade de quase 80% da população, por que lutar contra isso? (Sabemos que é para garantir acordos de tempo de TV.)

Redução da maioridade penal é inconstitucional. PEC do Plebiscito e Estatuto do Nascituro também. Por que apoiar via acordos de bancadas as tentativas para se retroceder a 1939? Por que obstacularizar a atualização do Código Penal?

As propostas conservadoras que o PT defende podem trazer benefícios eleitorais de curto prazo, ainda há massas ingênuas e de menor instrução que acreditam nelas. 

Mas o flanco na área de valores está aberto para a direita (em economia) apresentar-se como ‘moderna’.

E o PT (e as esquerdas bolivarianas) precisarão saber lidar com isso.

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