A falta de vontade política para reconhecer territórios quilombolas

Jornal GGN – Os direitos dos quilombolas avançaram nos últimos anos, mas essas populações permaneceram no fim da fila da garantia dos direitos territoriais – assim como os negros estão sempre no fim da fila na garantia de qualquer direito no Brasil. Reportagem do Instituto Socioambiental traz números e mostra o que o governo Dilma fez (e não fez) por essas pessoas.

De acordo com a Comissão Pró-Índio de São Paulo (CPI-SP), em quase cinco anos e meio, o governo Dilma titulou 16 territórios quilombolas, o equivalente a 11,7 mil hectares. Em oito anos, Lula titulou 12 áreas, somando quase 40 mil hectares. Dilma assinou 40 decretos de desapropriação, abrangendo 115,3 mil hectares, e Lula editou número semelhante de decretos, 43, mas desapropriando 465 mil hectares.

“O que a gente sente é que, em termos de governo, não há a famosa vontade política para fazer acontecer. Acho que a questão quilombola nunca foi prioridade”, afirma a coordenadora executiva da CPI-SP, Lúcia Mendonça Morato de Andrade.

Do Instituto Socioambiental

O que o governo Dilma fez (e não fez) pelos territórios quilombolas?

Na terceira reportagem com o balanço da política territorial do governo Dilma, o ISA foi atrás dos dados e entrevistou especialistas e militantes para tentar entender porque os quilombolas continuam no fim da fila da garantia dos direitos territoriais

Vítimas de séculos de exclusão e violência, as comunidades quilombolas são responsáveis por manifestações culturais formadoras da identidade nacional, conhecimentos tradicionais estratégicos sobre nossa biodiversidade e agrobiodiversidade e importantes espaços de conservação. Por isso os territórios quilombolas também são considerados “áreas protegidas” pela legislação, assim como Unidades de Conservação (UCs) e Terras Indígenas (TIs). Seria óbvio pensar que devem ser prioridade para qualquer governo.

A notícia ruim, no entanto, é que, apesar de avanços conquistados nos últimos 13 anos, na administração de Dilma Rousseff essas populações continuaram no fim da fila da garantia dos direitos territoriais – assim como os negros estão sempre no fim da fila na garantia de qualquer direito no Brasil. Para tentar entender a situação, o ISA publica hoje a terceira reportagem da série com um balanço da política de ordenamento territorial da presidenta afastada.

Lentidão dos processos

Em quase cinco anos e meio, o governo Dilma titulou 16 territórios quilombolas, o equivalente a 11,7 mil hectares. Em oito anos, Lula titulou 12 áreas, somando quase 40 mil hectares. Dilma assinou 40 decretos de desapropriação, abrangendo 115,3 mil hectares, e Lula editou número semelhante de decretos, 43, mas desapropriando 465 mil hectares. Portanto, em pouco mais de um mandato, Dilma titulou e desapropriou aproximadamente metade da média de Lula em duas gestões em termos de área reconhecida. Os dados são da Comissão Pró-Índio de São Paulo (CPI-SP). Um hectare mede mais ou menos um campo de futebol.

A titulação é a última fase do complexo processo de regularização dos quilombos, implicando o reconhecimento pleno do território, após a retirada de ocupantes não quilombolas. A desapropriação é a penúltima etapa, efetivada por decreto presidencial, quando há necessidade de pagar por propriedade privadas sobrepostas. As extensões abrangidas em cada fase do processo não devem ser somadas – áreas desapropriadas serão depois tituladas, por exemplo. Cada etapa requer diferentes esforços e custos políticos, financeiros e administrativos.

Ainda segundo a CPI-SP, já foram titulados no país em torno de 757 mil hectares em territórios quilombolas. Desse total, cerca de 78% são de responsabilidade dos governos estaduais; 15% foram titulados sob os dois mandatos de FHC; 5% sob as duas gestões de Lula; e 1,5% sob Dilma (veja gráfico abaixo).

A coordenadora executiva da CPI-SP, Lúcia Mendonça Morato de Andrade, avalia que a regularização dos quilombos na administração Dilma, assim como nas anteriores, continuou lenta ao extremo. “O que a gente sente é que, em termos de governo, não há a famosa vontade política para fazer acontecer. Acho que a questão quilombola nunca foi prioridade”, diz.

A dimensão dos territórios já titulados continua insignificante no quadro fundiário de um país de proporções continentais (veja gráfico). Além disso, só no Incra há 1,5 mil processos de reconhecimento de quilombos abertos. De acordo com a CPI-SP, desse total, 87% sequer têm o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) publicado, primeira fase dos procedimentos fundiários. “Isso mostra que, não só não estão ocorrendo as titulações no ritmo de que se precisava, como também os próprios processos estão andando muito lentamente”, lamenta Andrade.

Na esfera federal, antes de ir ao Incra, as comunidades precisam ser reconhecidas pela Fundação Cultural Palmares (FCP), subordinada ao Ministério da Cultura. O órgão já certificou 2.849 delas em todo País – com exceção do Acre, Roraima e Distrito Federal – e há outros 238 pedidos em tramitação. Também há comunidades já tituladas, mas não certificadas. Levando em conta esses dados, a FCP estima que haveria no Brasil mais de 214 mil famílias ou 1,17 milhão de quilombolas. Não existe, porém, até hoje, um levantamento oficial de toda população. A Coordenação Nacional de Comunidades Quilombolas (Conaq) estima cinco mil comunidades, o correspondente a 16 milhões de pessoas.

Um cálculo feito por Fernando Prioste, da organização Terra de Direitos, mostra que, no ritmo atual, o Incra levaria mais 970 anos para titular todas as comunidades já certificadas pela FCP – quase três vezes o que durou a escravidão negra no Brasil.

Controle político

Especialistas e militantes concordam que o primeiro governo Lula foi um marco no reconhecimento do direito à terra dos quilombolas. O Decreto 4.887, de 2003, padronizou os procedimentos em âmbito federal, tornando obrigatória a desapropriação e transferindo ao Incra a competência da regularização em definitivo. A administração de Fernando Henrique Cardoso chegou a titular terras sem pagar aos ocupantes privados, o que impediu o registro em cartório e obrigou a reiniciar a regularização em vários casos. O direito à terra dos quilombolas foi formalizado apenas com a Constituição de 1988. A primeira área só foi titulada em 1995.

Mas também há consenso de que, a partir do segundo mandato de Lula, os procedimentos foram burocratizados: vários ministérios e órgãos passaram a ser consultados sobre os processos fundiários e a Casa Civil começou a examiná-los e controlá-los em sua fase final, antecipando o que aconteceria mais tarde com UCs e TIs.

A nova orientação teria coincidido com a ida de ninguém menos que Dilma Rousseff para a pasta, indica o professor de Antropologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) José Maurício Arruti. O objetivo seria priorizar a regularização de áreas sem conflitos, solucioná-los reduzindo a terra disponível aos quilombolas ou paralisar o processo. Arruti lembra que o quilombo de Marambaia (RJ) foi titulado, em 2015, com cerca de metade da extensão original por pressões da Marinha.

De fato, de 16 territórios titulados por Dilma, 15 o foram parcialmente. A média da presidenta é de 733 hectares por território titulado, enquanto a de Lula é de 3,2 mil hectares, ainda conforme a CPI-SP.

Há quase três anos, as Superintendências Regionais do Incra passaram a ter de informar a sede, em Brasília, sobre os RTIDs antes de publicá-los. Arruti e Andrade denunciam que a diretriz é mais uma ingerência política inspirada na era Dilma.

“Isso não impediu a publicação de nenhum relatório. Tanto que, no ano passado, batemos o recorde de publicação: foram mais de 30 relatórios”, rebate Isabelle Picelli, coordenadora geral de Regularização de Territórios Quilombolas do Incra. Ela nega a interferência da cúpula do governo e afirma que a nova orientação visou coordenar e padronizar ações do órgão. Admite, porém, que a intenção também foi prevenir e mediar conflitos.

Queda no orçamento e concessões aos ruralistas

A queda do orçamento é apontada como o principal indicador da falta de prioridade do governo Dilma para o tema. Depois de alcançarem mais de R$ 51 milhões, em 2012, os recursos autorizados para o reconhecimento e desapropriação das áreas chegaram, em 2016, a R$ 5,9 milhões, uma queda de 88%. Com o contingenciamento de gastos, a verba liberada até junho será suficiente para desapropriar apenas três imóveis neste ano, informa Picelli.

“A prioridade que o Lula deu para as questões quilombolas foi muito maior do que a prioridade dada pelo governo da Dilma, tanto nas condições de estrutura física quanto de estrutura orçamentária. Houve uma queda muito grande, um descarrilamento”, critica Denildo Rodrigues de Moraes, o Biko, da coordenação da Conaq.

“Nos últimos anos, acho que [o corte no orçamento] seria o grande gargalo que estamos sentindo”, concorda Picelli. Ela admite ainda que, mesmo que o número de antropólogos tenha dobrado nos últimos anos, o contingente atual de 144 servidores trabalhando diretamente com o tema no Incra é insuficiente. A falta de pessoal tem prejudicado sobretudo as avaliações dos imóveis para desapropriação.

Para pesquisadores e ativistas, o que está por trás do desempenho ruim da gestão de Dilma no setor é a consolidação da aposta em um modelo de desenvolvimento calcado nas grandes obras e na produção decommodities. A lentidão da regularização seria fruto das alianças com setores conservadores, das concessões à bancada ruralista e a grandes empresas. Daí a interferência da Casa Civil em vários casos.

“Eu acredito que [o governo Dilma ficará conhecido] como um governo que recuou e cedeu à pressão do agronegócio. Esse recuo se materializou num andamento muito mais lento dos procedimentos administrativos por falta de apoio político”, critica Prioste. Ele reconhece que as desapropriações são caras, mas ressalva que as verbas públicas destinadas ao agronegócio, como as do Plano Safra, só cresceram no período.

Assista abaixo vídeo sobre a luta dos quilombolas

Consequências da lentidão dos processos

A regularização é decisiva para as comunidades por ser um trunfo importante na resolução dos conflitos de terra, facilitar o acesso ao crédito agrícola e outras políticas públicas. Por isso, a lentidão ou a paralisação dos processos tem consequências graves.

“Sem a titulação, essa população fica ainda mais vulnerável”

“Sem a titulação, essa população fica ainda mais vulnerável. Na medida em que a terra está regularizada, você tem um diálogo com o outro, que está disputando e ameaçando o seu território, de outra forma. Temos a previsão no licenciamento ambiental de que a área que não tem o relatório de identificação publicado não é considerada terra quilombola. Se tem uma hidrelétrica que vai inundar parte do território e esse relatório não está publicado, pela norma não se considera como terra quilombola. Você deixa uma população muito frágil e que já vive uma situação de desigualdade muito grande ainda mais frágil. Não é que a terra vai resolver todos os problemas, mas, sem dúvida, ela dá condições de enfrentar melhor essas situações.”

Lúcia Andrade, CPI-SP

Dados da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) confirmam a vulnerabilidade desses grupos. Em 2013, das 80 mil famílias quilombolas registradas no Cadastro Único de Programas Sociais do governo federal, 80% recebiam bolsa-família, 75% estavam em situação de pobreza extrema, 25% não sabiam ler e 82% desenvolviam atividades de agricultura, extrativismo e pesca artesanal.

José Maurício Arruti explica que assumir a reivindicação pela formalização de um território é um risco porque, em geral, as relações de poder locais sofrem um abalo, o que, em alguns casos, pode significar a explicitação ou acirramento de conflitos.

“Colocar o processo na gaveta é uma informação política”

“Quando o Estado pega esse processo, depois da deflagração ou explicitação do conflito, bota na gaveta e espera, o que acontece é que as forças que já são muito desfavoráveis às comunidades tendem a ser mais desfavoráveis. Em primeiro lugar, as lideranças quilombolas começam a ser desacreditadas pela demora no processo. As organizações de apoio e assessoria começam a ficar desacreditadas. Por outro lado, isso aponta para os fazendeiros, proprietários locais e empresas a precariedade que é o processo. Isso permite que eles avancem nas suas estratégias seculares de expropriação. Colocar o processo na gaveta é uma informação política.”

José Maurício Arruti, Unicamp

Perspectivas com o governo Temer

O temor de pesquisadores, ativistas, políticos e servidores do Incra é de que, no governo de Michel Temer, a oficialização das áreas seja paralisada por causa da subordinação à Casa Civil – onde foram parar a competência de regularizar os quilombos e o órgão fundiário federal, depois de várias mudanças – e da força de partidos contrários aos direitos quilombolas, como o PMDB e o DEM.

O deputado federal Nilto Tatto (PT-SP), que foi coordenador do Programa Vale do Ribeira do ISA de 2005 a 2014, acredita que a perda do status de ministério da Seppir e a orientação conservadora do novo governo também colocam em risco outras políticas destinadas aos quilombolas, incluindo compras governamentais da produção agrícola, eletrificação rural, moradia, saneamento e crédito.

“A tendência é parar o processo de demarcação dos territórios quilombolas”

“O grupo político que está nesse governo – parte dele estava na base do governo Dilma – vinha combatendo a política de demarcação dos territórios quilombolas. Não só dos territórios quilombolas, mas também das terras indígenas e a reforma agrária. A tendência é – se permanecer esse grupo de poder, o golpe – é parar o processo de demarcação dos territórios quilombolas. Mas mais do que isso: haver retrocessos nos direitos que estão assegurados na Constituição e em outras leis. Tanto é que esse grupo político é o protagonista, dentro do Congresso, de um conjunto de propostas de leis e de emendas constitucionais para acabar com esses direitos. A perspectiva é muito negativa para os quilombolas com o governo provisório do Temer.”

Nilto Tatto, deputado federal, PT-SP

Para a Conaq, a maior ameaça é a modificação ou revogação do Decreto 4.887. Têm esse objetivo, por exemplo, o Projeto de Decreto Legislativo (PDC) 44/2007, do deputado ruralista Valdir Colatto (PMDB-SC), em tramitação na Câmara, e uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) movida pelo DEM no Supremo Tribunal Federal (STF). Outro perigo é a aprovação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 215, uma das principais bandeiras ruralistas, que, entre outros pontos, pretende aplicar o “marco temporal” ao reconhecimento de terras indígenas e quilombolas – de acordo com ele, só teriam direito aos seus territórios populações que estivessem neles em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição.

Morosidade da regularização fundiária impacta quilombos no Vale do Ribeira

Ivy Wiens, assessora do Programa Vale do Ribeira do ISA

O Vale do Ribeira, região entre São Paulo e Paraná, concentra o maior corredor socioambiental da Mata Atlântica. Além de dezenas de UCs, a região tem comunidades quilombolas, indígenas, caiçaras, ribeirinhas e de agricultores familiares, que são considerados os guardiões das florestas locais (veja mapa abaixo). Há 88 comunidades que se autodeclaram quilombolas, sendo 33 reconhecidas, seis tituladas e apenas uma com registro em cartório (Ivaporunduva), obtido por via judicial. A regularização fundiária caminha a passos lentos, o que vem dificultando o acesso às políticas públicas e causando conflitos, inclusive armados – desde 2010, duas pessoas foram mortas e uma foi ferida.

Morro Seco, por exemplo, é um quilombo no município de Iguape, onde, há quatro anos, em parceria com o ISA, a comunidade desenvolveu seu planejamento territorial, discutindo cenários futuros para o uso e ocupação dos 164,5 hectares da área. O Cadastro Ambiental Rural (CAR) foi feito, como prevê a lei florestal. Também começou um projeto de fortalecimento comunitário, o que atraiu jovens que haviam ido para cidades maiores em busca de emprego. Os quilombolas comercializam sua produção agrícola via Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e para locais como o Mercado de Pinheiros, em São Paulo. Essas iniciativas, porém, estão ameaçadas pela falta de regularização fundiária.

“A falta de acesso a terra tem levado as famílias a abandonarem o campo”

“Na região do Vale do Ribeira, os principais conflitos são com os chamados ‘terceiros’, ocupantes das terras que ainda não foram indenizadas pelo Estado. São fazendeiros ou posseiros que permanecem na área, impedem a passagem dos quilombolas com cercas, desmatam de forma irregular a floresta, degradam o solo com pecuária e plantam monoculturas com uso intensivo de agrotóxicos. Ainda há os casos de territórios sobrepostos a UCs, os quais sofrem ainda mais com restrições de uso e dificuldades para o reconhecimento oficial. A falta de acesso a terra tem levado as famílias a abandonarem o campo em busca de alternativas de renda na cidade.”

Raquel Pasinato, coordenadora do Programa Vale do Ribeira do ISA

Redação

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