2024, Lula e a economia
por Paulo Kliass
O fim de semana foi carregado de eventos com forte capacidade de influenciar a dinâmica política interna em nosso País, em particular os interesses das forças progressistas que defendem a inclusão e o desenvolvimento. No cenário externo, por exemplo, dois momentos nos afetaram de forma direta. Para além das imensas dificuldades em conseguir avançar – por alguns milímetros que seja – na agenda da sustentabilidade durante a realização da COP 28 em Dubai, nos Emirados Árabes, cabe ressaltar também a realização da cerimônia de posse de Javier Milei como Presidente da Argentina.
A realização de um evento da ONU de tal magnitude e importância, durante uma conjuntura marcada pelo aprofundamento mais do que evidente da crise climática, em um país que tem na extração de petróleo uma de suas maiores fontes de riqueza é uma contradição monumental. A aceitação por parte dos nossos representantes do convite para integrar a OPEP+ deixou mais dúvidas do que garantias a respeito do gesto. Por outro lado, as declarações do Presidente da Petrobrás de que o Brasil deveria ser um dos últimos países do mundo a encerrar as linhas de exploração do petróleo foram muito mal recebidas fora do círculo dos setores que lucram com as atividades da indústria petroleira.
De todas as maneiras, as possíveis linhas de solução desta complexa equação estratégica oferecem impacto direto sobre o futuro da economia brasileira. Não fosse por outras razões, que seja apenas pela importância exercida ainda hoje pelo potencial da capacidade de investimento da nossa principal empresa estatal. A famosa rubrica “formação bruta de capital fixo” das Contas Nacionais apuradas pelo IBGE ainda é fortemente influenciada pelo volume de investimentos da Petrobrás. Realizar por aqui a tão falada transição energética envolve redefinir o espaço da empresa, que vai completar sete décadas de existência no ano que vem. Isso significa restabelecer objeto de sua atividade, transformando-a em geradora de energias no plural e não apenas permanecer como produtora de petróleo e seus derivados.
Brasil, COP 28 e Milei.
O segundo evento mencionado refere-se ao convescote da extrema direita internacional que se reuniu Buenos Aires, em torno da posse do novo presidente argentino. Lula tomou uma decisão bastante sensata e correta ao não comparecer, uma vez que os xingamentos proferidos contra ele pelo então candidato à época da campanha expressaram de maneira bastante autêntica e sincera seu pensamento e suas intenções. Tanto que ele mesmo convidou Bolsonaro para o evento, em uma clara provocação e um flagrante desrespeito às tradições da diplomacia. O ex presidente carregou consigo um séquito de admiradores, incluindo três governadores de estados. A presença de líderes da extrema direita de vários países e regiões deixa claro o risco colocado pela ascensão do extremismo filo-fascista pelo mundo afora.
No caso brasileiro, as bravatas de Milei quanto a cortar relações comerciais com nosso País e as ameaças de sair do Mercosul dificilmente serão cumpridas ao pé da letra. No entanto, apenas a declaração explícita de tal desejo do novo mandatário coloca em marcha lenta os projetos de aprofundamento da integração econômica na região. Além disso, as dúvidas quanto às eleições do governo norte-americano no ano que vem recolocam a possibilidade de um eventual retorno de Donald Trump à Casa Branca. Esse quadro tornaria ainda mais complexa e debilitada a paleta de opções à disposição do governo brasileiro.
Além disso, durante esse mesmo fim de semana ocorreram em Brasília dois eventos vinculados ao Partido dos Trabalhadores (PT). E ambos devem deixar marcas mais sérias para os próximos momentos da política econômica em nosso País. O primeiro deles foi a realização de uma reunião do Diretório Nacional do partido. O outro foi uma conferência eleitoral para discutir estratégias para o pleito municipal de 2024. Nos dois encontros estiveram presentes as principais lideranças do PT no governo federal e também dirigentes partidários que estão fora do Executivo.
Brasil, Gleisi e Haddad.
O ponto mais polêmico foi o debate travado entre a Presidenta do PT e o Ministro da Fazenda. A deputada federal Gleisi Hoffmann vem apresentando há um certo tempo suas diferenças para com os rumos definidos pelo comando da economia no governo. Na condição de dirigente máxima do partido do Presidente da República, ela tem buscado um caminho próprio para expressar os desacordos e sugerir propostas de novos rumos. Pela importância do cargo que ocupa, suas opiniões necessitam muita cautela e mediação. Mas ela não tem se esquivado de tal reponsabilidade, uma vez que vocaliza a opinião da maioria da agremiação. Assim foi com a polêmica em torno do reajuste do salário mínimo, da revisão das metas de inflação, do desenho do Novo Arcabouço Fiscal, dentre outros pontos em que o rumo da austeridade fiscal terminava por comprometer a execução do programa do governo eleito e as necessidades de desenvolvimento do País.
A questão do momento é a insistência de Haddad com a manutenção da meta de equilíbrio fiscal primário para o exercício do ano que vem. Esse é o seu desejo, tal como exposto no artigo 2º do projeto da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO). No entanto, há um amplo consenso transpartidário quanto à impossibilidade de tal meta ser cumprida no ano que vem. Lembremos que o resultado fiscal primário para 2023 deve fechar com valores superiores a um déficit de R$ 200 bilhões. Ora, parece evidente que transformar esse movimento em “zero” em poucos meses implica um cavalo de pau na política fiscal e na capacidade de realizar gastos e investimentos públicos não-financeiros.no ano que vem. Isso porque o conceito de “despesa primária” é uma verdadeira malandragem, onde o adjetivo nada mais faz do que eliminar do cálculo os gastos financeiros. Com isso, os mais de R$720 bi que foram despendidos ao longo dos últimos 12 meses com o pagamento de juros da dívida pública não são uma “despesa problemática”. Segundo essa lógica austericida, a compressão e o contingenciamento devem ficar apenas na “gastança” com rubricas tais como saúde, assistência social, salários de servidores, educação, previdência social e similares.
Frente a tal quadro, as manifestações de discordância com a obsessão haddadiana ganhou ares de amplo consenso no interior do próprio PT. A reunião do Diretório Nacional votou uma resolução condenando o que o texto preliminar chamava de “austericídio” da equipe econômica e alertando para os riscos políticos que tal estratégia provoca ao partido e ao País. Já na plenária principal da conferência eleitoral houve um confronto direto e delicado entre Gleisi e Haddad a respeito do mesmo tema. A líder partidária argumentava que conviver com um déficit em 2024 não seria o fim do mundo e que a despesa pública é um componente importante para propiciar condições de alavancar o crescimento das atividades econômicas. Haddad manteve-se fiel aos seus princípios austericidas e buscou, mais uma vez, desqualificar as observações de Gleisi.
Brasil, Lula e déficit fiscal.
Os grandes meios de comunicação já escolheram seu lado nessa contenda. Assim, saíram em defesa da política de austeridade do Ministro e condenaram a “irresponsabilidade gastadora” de Gleisi e do PT. Assim,os campos começaram a demarcar suas posições. Até mesmo as alas mais conservadoras do PT, como vocalizam os deputados federais Washington Quaquá (RJ) e José Guimarães (CE), recomendam que o governo deve abandonar a ideia fixa de uma meta zero para o resultado primário em 2024. Saindo da esfera petista, mesmo as forças do fisiologismo no Congresso Nacional não acham essa uma boa estratégia para um ano eleitoral.
Lula parece acompanhar tudo à distância. Já teve a oportunidade de se manifestar a respeito, reconhecendo de público que o governo “dificilmente” alcançaria essa meta de um no resultado primário. Mas posteriormente se recolheu e não mais falou sobre eventual alteração no dispositivo da LDO. O Presidente conhece muito bem o “ânimo” que ronda os parlamentares nos anos em que o conjunto do sistema político deve se envolver em disputas eleitorais em cada um dos mais de 5.570 municípios.
A questão que se coloca é se ele continuaria a assistir, de forma passiva, a esse risco envolvendo a estabilidade política de seu governo em 2024. Ele sabe muito bem que a economia é um dos fatores que mais pesam nas pesquisas de opinião e na avaliação de seus dirigentes por parte da população. E as últimas enquetes que foram divulgadas recentemente não têm se revelado lá muito favoráveis a Lula e à sua equipe. A decisão é relativamente simples: bastaria indicar a Haddad que aceite a emenda que sugere um déficit fiscal primário para 2024 antes da votação definitiva da LDO. O ambiente no parlamento baixaria de temperatura. O governo não ficaria obrigado de arrochar ainda mais os gastos a partir do janeiro que vem. Enfim, ganharíamos todos os setores da sociedade, à exceção do financismo e Haddad.
Paulo Kliass é doutor em economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental do governo federal.
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