A macroeconomia do genocídio, por Nathan Caixeta

Analisando a conjuntura da sociedade brasileira em suas variadas dimensões de sociabilidade e acesso às oportunidades, verifica-se um país sem rumo, navegando pelos ventos trazidos do exterior, desfalecendo em meio a fumegante crise socia


Por Nathan Caixeta
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Os recentes resultados publicados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) sobre o desempenho do PIB no primeiro trimestre de 2021, enfeitaram os animados discursos sobre a recuperação da Economia Brasileira cujas projeções superam as barreiras do senso comum, como quem encontra a luz no fim do túnel.

A elevação dos investimentos, os bons resultados do setor agropecuário e os bons ventos soprados pelo exterior a partir do anúncio do plano presidente estadunidense Joe Biden e de um vigoroso ciclo de liquidez, apontam para o ânimo de que a economia recupere as perdas trazidas pelo contexto pandêmico.

Entre idas, vindas e viradas do avesso, a administração da crise pandêmica do ponto de vista econômico reuniu tantos aspectos que todas as calistenias estatísticas realizadas pelos analistas econômicos fizeram a vez de uma moeda jogada para cima, a cada rodada no ar, apontava, ora para o caos, ora para a gloriosa recuperação da Economia Brasileira “puxada”, ou pela atração de investimentos externos, grande plataforma governista para sustentar sua agenda de reformas, ou pela recuperação do consumo das famílias a partir de elevações reais na massa de rendimentos ampliada, isto é, somados os rendimentos dos trabalhos e as transferências de renda, principalmente, aquelas derivadas do auxilio emergencial.

Somam-se aos argumentos anteriores, a esperança na vacinação e as vacilantes medidas de afrouxamento do isolamento social, bem como uma tardia remontada do setor de serviços.

Aqueles que dispõem de uma calculadora, ou de lápis e papel, já lançam seus sonhos para o findar do ano, especialmente se os cálculos corroborarem menores pressões sobre a política monetária, uma onda de valorização cambial que feche o ano revertendo atual, tateante entre 5 e 6 reais por dólar. Nos sonhos mais dignos das 120 noites que ainda restam para nosso ano, se as contas públicas puderem fechar “no azul”, revertendo a pressão sobre a relação dívida/PIB, o banquete oferecido aos ególatras do saber econômico será insuficiente para abarrotar sua sede pela “verdade” dos números.

Nebuloso e recheado de incertezas, eis o cenário que estaremos a assistir: tanto no refrear das políticas econômicas de “impulso” à demanda por parte do governo, no retorno do esquema “arrocha que vai”, quanto pelas descontinuidades na oferta de energia por insuficiência da matriz hídrica, ameaçando barrar as safras na agricultura e elevar os custos industriais. Ainda assim, não há como avaliar as reais extensões do positivo ciclo de liquidez que se avizinha, tampouco da capacidade que o endividamento norte-americano remende suas alianças com a expansão da demanda chinesa. Em suma, os primeiros resultados de 2021 apontam para cima, e os possíveis desvios no potencial de recuperação do PIB anual, para mais ou para menos, dependerão da interação desses fatores.

Mais a frente, assistiu-se um “choque de juros” operado pelo Banco Central que elevou sequencialmente a meta para a taxa de juros básica de 2% para 5,25% ao ano em 5 meses. A ideia é simples: conter o consumo das famílias, aliviando a pressão sobre a oferta pelos bens componentes do “núcleo” inflacionário recheado de bens primários. O que passou longe da análise da autoridade monetária e seu conselheiro fiel, o mercado financeiro, é que a origem da elevação inflacionária assistida no último semestre não guarda raízes na explosão da demanda por bens, mas de outra explosão, duplamente ativada pela desvalorização cambial ao longo de 2020 e do “boom” no preço de certas commodities que impactam os preços dos bens primários com velocidade muito maior que qualquer “farra” consumista. Tal movimento expressa menos uma estratégia para romper a escalada inflacionária, pois os efeitos da política monetária sobre uma inflação marcada à mercado pelos fatores externos tem pouca eficiência, senão acenando para uma tenra revalorização cambial, incapaz de reverter às tendências à saída especulativa de capital estrangeiro. Neste cenário, não é possível avaliar o movimento como um jogo de soma-zero, mas como um desastre diagnostico sobre as origens da inflação. Entretanto, nem tudo está perdido, se vitoriosa a estratégia reconduzirá a inflação à meta mediante o custo de “jogar água no chopp” da recuperação econômica.  

O que descrevi até aqui é apenas um olhar à primeira vista, estampado por qualquer jornal mais honesto nas análises sobre os dados do primeiro trimestre, colecionando as contribuições de colegas que em muito enriqueceram minha compreensão sobre esses aspectos.

Contudo, depois dessa apresentação sumária, gostaria de apontar “o outro lado” do crescimento econômico, mais especificamente, o caminho pelo qual foi construído e suas prováveis repercussões sobre a estrutura social. Não pretendendo esticar a analise ao cadafalso da crítica rasa e politicamente viesada, empreenderei apenas uma interpretação que vai à contravento do discurso que entorpece o ânimo até cegar os sentidos.

Qual crescimento, cara pálida?

Propositalmente provocativa, esta sessão analisará a qualidade do crescimento econômico em termos de suas fontes de dinamismo. No ano de 2020, o efeito mais proeminente sobre a atividade econômica foi aquele causado pelo auxílio emergencial, ainda que em suas versões desfiguradas (a partir de setembro de 2020), esse programa não apenas salvou da fome mais de 43 milhões de famílias brasileiras, como contrariou entre o segundo e o terceiro trimestre do ano passado à debacle anunciada pelos níveis de investimento. No quarto trimestre de 2020 e no primeiro trimestre de 2021, os impactos do auxilio foram reduzidos, notadamente, pelo remodelamento do programa, entregando a “bandeira de salvação” do PIB aos investimentos cuja contabilidade na inclusão dos efeitos do REPRETRO, foi nada menos que o alivio de quem se mantem segurado em um galho podre ao cair do abismo.

Sem pretender fazer grandes incursões pela aritmética da macroeconomia, afirmo aquilo que já denunciavam há quase dois terços de século John Maynard Keynes e Michal Kalecki: o que move a economia de um país são os investimentos realizados pela classe empresarial e pelo Estado (na construção de fabricas, infraestrutura, aquisição de maquinas etc.), ao elevarem o nível de emprego e, subsequente ativarem o efeito multiplicador sobre o consumo das famílias. Num país como o Brasil, com elevada desigualdade, meia andorinha faz verão ao elevarem-se os níveis de emprego e as rendas derivadas dos salários serem altamente sensíveis a se converterem em consumo com a devida adição do crédito. Este esquema tão simples quanto minha didática permite explicar ficaria lindo num gráfico que anuncia-se, tudo mais constante, o acrescimento de capital novo via investimentos pelo mero efeito da confiança, mediante uma simplória teoria dos ciclos econômicos, ou uma espalhafatosa sujeição do retorno dos investimentos sujeitados a continuidade das reformas liberais.

Contudo, receio que o buraco não apenas seja mais embaixo, como também não apresente profundidade visível nem para o caleidoscópio mais bem calibrado pelas estatísticas. A questão do crescimento econômico, tão mal tratada pela literatura econômica, submetida à modelos impávidos de dar inveja para qualquer estatua, não deve ser olhado nem do ponto de vista paradigmático das contas nacionais, tão pouco de indicadores pouco aderentes à realidade social. Por exemplo, o crescimento do PIB no primeiro trimestre de 2021 foi de 1,2%, acumulando uma queda de 3,8% nos últimos 4 trimestres. Isso quer dizer o que, efetivamente? Recheio às manchetes dos jornais? Alimento para os modelos de previsão de grandes empresas? No fim das contas, o conceito de crescimento econômico se perdeu no tempo, ao ser desvinculado da temática do desenvolvimento econômico.

Crescimento refere-se à conjuntura, tão variante quanto os saltos de um átomo nas composições orgânicas. Desenvolvimento econômico refere-se à dinâmica das estruturas (surrupiando um termo de nosso mestre João Manuel Cardoso de Mello), capturando o movimento histórico-concreto das transformações do capitalismo, desde o panorama geral aos aspectos específicos centrados no tempo-espaço. Qual a conjunção entre crescimento e desenvolvimento? É a observância da qualidade do crescimento econômico, isto equivale dizer: a dinâmica de transformação das estruturas em determinada direção rumo à modernização econômica (incorporação do progresso técnico) e social (equalização das oportunidades de acesso às fontes de bem-estar e fruição do tempo-livre pelos indivíduos).

Falar quanto cresceu o PIB, a produção industrial, o comercio, e todos os outros índices divulgados como “Proxy” da realidade social dizem tanto sobre ela quanto um mapa do Brasil diz sobre a estrutura topográfica do Monte Sião. O que proponho é falar sobre a qualidade do crescimento, isto é, sobre o potencial de desenvolvimento econômico que o momento atual aponta para o futuro do país.

Qualidade do crescimento econômico: desenvolvimento e desigualdades sociais

A literatura sobre desenvolvimento econômico remonta aos alfinetes de Adam Smith, afunilando-se por vezes, ao esforço especifico de compreensão das especificidades dos espaços nacionais e regionais, como no caso do emérito esforço da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), de Raúl Prebisch a Celso Furtado e outros, no caso da América Latina. Contudo, recortar a temática do crescimento e de sua qualidade enquanto agente indutor da redução das desigualdades sociais requer a previa definição, para além, das distinções sobre o que entende-se por desigualdade social.

Por suposto, o termo “desigualdade social” é tão elástico que para esforço de recorte teórico, a literatura econômica do século XX em grande parte o resumiu às disparidades de propriedade, renda e riqueza. Contudo, são crescentes e fecundas as incursões em outras frentes da desigualdade, de raça, gênero, credo, etc. Na verdade, a unidade entre todos os debates sobre desigualdade, bem como, sobre as disposições propositivas para suas eliminações encontra-se na contradição entre abundância potencial e escassez real dos meios de fruição das oportunidades de bem-estar e tempo livre, dando vazão aos ideais da liberdade e da igualdade, por si, sustentáculos dos avanços sociais nos últimos três séculos.

Partindo desse ponto de vista, definir o desenvolvimento econômico parece-me adequado conjugando: 1) inovação, expansão e incorporação do progresso técnico e material na direção de diminuir as disparidades nascidas do regime de propriedade privada; 2) Promoção da igualdade de oportunidades aos atores sociais independentemente de suas origens, crenças, raça, ou gênero, o que equivale dizer, ampliar o reconhecimento das diferenças guiado pelo ideal da igualdade.

Apenas a partir dessa noção que pode-se enfrentar o espinhoso dilema da qualidade do crescimento que passa longe dos índices estatísticos e está a vários anos luz de distância da mera “igualdade jurídica” entre os atores sociais. Portanto, avaliar a qualidade do crescimento econômico, portanto, das vias de desenvolvimento requer perguntar: sob as presentes feições da estruturação social, da distribuição da riqueza e da efetivação dos direitos humanos, qual o potencial do avanço material no tocante à geração de mobilidade social, reconhecimento das diferenças e, sobretudo, fruição do tempo-livre pelos indivíduos?

O Brasil, dentro de si, fora do mundo

Analisando a conjuntura da sociedade brasileira em suas variadas dimensões de sociabilidade e acesso às oportunidades, verifica-se um país sem rumo, navegando pelos ventos trazidos do exterior, desfalecendo em meio a fumegante crise social. É indevido atribuir ao atual governo, ou mesmo ao contexto pandêmico tal cenário, concedendo a esses fatores o desfavor do agravamento da crise social.

Recorrendo à história, colecionamos 30 anos de desindustrialização, eliminação da pobreza aos solavancos, um incesto de arrancar os olhos entre a classe política, as entidades jurídicas e as grandes corporações, ausência de mobilidade social associada à cristalização da miséria de tipo “não-econômico”, e sim existencial dada a criação de dois mundos: aquele habitado pelos sujeitos adequados à concorrência pelo Status social, e aquele abarrotado de seres humanos descartados, empilhados no sistema carcerário, esquecidos nas comunidades e nas várias veredas dos muitos sertões.

Esse diagnostico sintético, e longe de estar completo, sobre a atuação situação da “questão social” no Brasil, oferece um caminho para avaliar a qualidade do crescimento. Em primeiro lugar, vale lembrar que a década que se encerrou em 2020 foi marcada pela ebulição do ressentimento expresso no revanchismo das urnas, no estupro da ordem republicana pelos três poderes, e por uma estagnação econômica concentradora de renda. O contexto pandêmico, antes de um malogrado exercício da natureza em manifestar sua soberania, trouxe ao Brasil a figura da realidade, dita e dura: meio milhão de mortes pelo vírus. Á quem imputar a culpa? Como criminalizar o curso da natureza? , dizem os ouvidos alegrados do berrante. Contudo, verifica-se que a rota de crescimento alegada pelos analistas econômicos, congraçando a recuperação em “V” tão aguardada pelo mercado, tem sua estrada manchada de sangue, na inaudita preferência pelo salvamento dos CNPJ’s às custas das vidas humanas.

Nublados pelos sinais positivos, os indicadores apontam para um tiroteio de opiniões. O PIB cresce, enquanto o mercado de trabalho avança crescentemente à precarização e ao derretimento dos postos de trabalho. Os tempos de liquidez internacional que se avizinham inflamam até os mais pessimistas. Contudo, qual sociedade Brasileira saíra da pandemia? Quais as mudanças psicossociais sofrerá o “sujeito moderno”? Disso não se fala, nem se vê, pouco se ouve, pois a importância dessas questões passa longe da sacralidade dos superávits fiscais, da revalorização do câmbio, da reforma tributária e dos planos de privatização. Do lado “progressista”, de barbudo à Capitão poucos são os sinais de um plano de revitalização do país. A cena política está bem demarcada, não de hoje, nem da última década, mas da fisiológica relação do homem cordial de Sergio Buarque com a “coisa pública”: Sem apoio do rentismo, da grande propriedade, “do centrão” não se faz progresso.

Entretanto, há que se apontar os resultados concretos da tendencia à recuperação econômica no biênio 2021-22: concentração de renda, aprofundamento do revanchismo político, barrigas vazias estofadas pelo abandono, desalento total e completo à miséria nascida do contexto pandêmico. Para além disso, lembremos, o teto de gastos retornará, como regra irremediável, genocídio escrito pelas canetas destiladas com sangue dos mais humildes. Aos que querem se animar com o “crescimento”, ou apostar ingenuamente numa nova onda progressista devoto meus sentimentos de ilusão, sem querer que o pessimismo metodológico atrapalhe o sorriso da parcela mais rica da sociedade que vê no contexto de crise, o melhor dos mundos, pois o Brasil está barato para quem quiser compra-lo.

Relembrando Renato Russo, “Que País é este”? respondendo a Cazuza, “Brasil, qual é o teu negócio, o nome do seu sócio?”, terminando mediante o sonho glorioso de Darcy Ribeiro destaco a utopia: construir uma democracia multirracial nos trópicos.

Qual a qualidade de um crescimento concentrador de renda? Aprofundador da miséria e da fome? Qual rota enunciasse mediante este estilo de desenvolvimento?

Perguntas que, em tom de despedida, dou-lhes a “explicação”, lembrando Carlos Drummond de Andrade: “Se meu verso não deu certo, foi seu ouvido que entortou.”

Sobre o Autor: Graduado em Economia pela FACAMP, Mestrando em Desenvolvimento Econômico pelo IE/Unicamp e Pesquisador do Núcleo de Estudos de Conjuntura da FACAMP (NEC/FACAMP).

OBS: Esse texto é de total responsabilidade do autor e não reflete a opinião das instituições citadas.

Este texto não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

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