
A Política Monetária e a Medicina Medieval I
por Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva
Até o fim do século XIX, sempre que um médico se deparava com algo nunca visto, ou com um sintoma cujo tratamento não se dominava, fazia-se uma sangria no paciente, levando-o muitas vezes à morte. Era a ideia do sangue ruim, que Ludwik Fleck, médico polonês, descreveu como segunda etapa do conhecimento em seu livro “A Gênese de Um Fato Científico”.
Aqui se deve um parêntese acerca do cientista acima porque também ele foi atingido pela precariedade do pensamento humano, que ele mesmo escreveu e combateu em sua vasta obra. Como sua especialidade era a imunologia e o carniceiro de Auschwitz, Mengele, fizesse experimentos que exigem conhecimentos em sua área, sendo judeu, Fleck ficou preso no campo até a libertação da Polônia. Por causa de ter permanecido vivo durante o holocausto, foi tido por muitos como um capo injustamente. Ao contrário de ser entendida como uma bênção para a humanidade, sua sobrevivência deu-lhe o epíteto de traidor. Sua contribuição só teve o merecido destaque anos depois.
Para ele, o pensamento coletivo acerca dos males que afligiam a humanidade seguiam três passos principais, sendo o primeiro subdivido em dois tempos distintos. A primeira etapa é o castigo divino, pois os males dos filho seriam causados pelos desvios de comportamento dos pais, pensamento este substituído, em um segundo tempo, pelo mal comportamento do próprio indivíduo. A segunda etapa é a do sangue ruim que, ao ser expurgado e substituído por um sangue novo e bom, seria o início da cura. Na terceira etapa, já no conhecimento científico, conhece-se a causa e estuda-se a melhor forma de cura. Na verdade, o que ele queria introduzir era a ideia de paradigma como pretendia Tomas Kuhn, ou de epistème como considerava Michel Foucault, ou, como está na moda, main stream. Naturalmente, como ocorre em toda a evolução humana, a passagem de uma etapa para outra não é repentina. Há um período em que o pensamento coletivo a ser substituído convive com o novo modo de pensar. Assim, a ideia do castigo e a do sangue ruim conviveram por largos períodos.
Um bom exemplo disso foi a evolução da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida. No início, era tida como a Peste Gay; em seguida, estendeu-se o conceito de mal comportamento aos devassos em geral. A seguir, chegou-se à conclusão de que o mal poderia estar na genética do indivíduo, portanto, em seu sangue ruim. Foi em 1983, menos de dez anos depois de os primeiros casos serem diagnosticados, que Luc Montagnier, médico francês, isolou o HIV, tornando a AIDS objeto de estudo científico. Por sorte, as sangrias perpetradas pelos barbeiros medievais e físicos da Idade Moderna já não se usavam, caso contrário, os contaminados morreriam ainda mais rapidamente e o vírus nem seria isolado.
A política monetária baseada na taxa de juros de risco-0 é uma mostra que a Economia está entre a primeira e a segunda etapa da evolução do pensamento científico. É que a inflação é tida como vinda do mal comportamento do Governo, vulgarmente chamada de gastança, e a cura só pode ser a sangria dos cofres públicos via juros sobre a dívida pública. Essa ideia não tem a menor comprovação empírica. É mais ou menos como um charlatão sentir com a palma da mão a temperatura do paciente, concluir que ele está com febre e receitar uma sangria. O charlatão sequer usa um termômetro confiável, não conhece a causa da pretensa febre e, justamente por não conhece-la, atribui ao mal comportamento do indivíduo e receita-lhe uma bela sangria.
A carta aberta do Banco Central ao Ministério da Fazenda traz todos os indícios do charlatanismo. Em primeiro lugar, é preciso alterar profundamente a forma de medir a inflação, considerando que cada grupo de itens tem sua volatilidade típica o que permite constituírem-se carteiras com base nas categorias de bens e serviços. Outra coisa é medir a variação do poder de compra, esta sim sujeita ao peso de cada categoria de bens e serviço no orçamento da população, respeitando sua pirâmide de renda. De posse desse conhecimento é que se pode estabelecer um diálogo entre o mercado financeiro e os interesses da população como um todo. Enquanto povo e mercado não tiverem um tradutor fidedigno, não vai haver acordo. Isso será esmiuçado nas próximas matérias.
Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva é economista, estudou o mestrado na PUC, pós graduou-se em Economia Internacional na International Afairs da Columbia University e é doutor em História Econômica pela Universidade de São Paulo. Depois de aposentado como professor universitário, atua como coordenador do NAPP Economia da Fundação Perseu Abramo, como colaborador em diversas publicações, além de manter-se como consultor em agronegócios. Foi reconhecido como ativista pelos direitos da pessoa com deficiência ao participar do GT de Direitos Humanos no governo de transição.
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