Desoneração da Folha das empresas: eficiente para transferir renda para os ricos, por Lauro Mattei

Que determinava a extinção da contribuição previdenciária patronal, a extinção da contribuição da CIDE e para o Sistema S.

Desoneração da Folha das empresas: política cara, porém eficiente para transferir renda para os ricos

por Lauro Mattei[1]

No início de 2024 o assunto da desoneração da folha de pagamento das empresas de 17 setores de atividades econômicas[2] que, segundo eles são os que mais geram emprego no país, voltou ao centro do debate político nacional. Este é um sistema tributário que estava em vigor desde 2012, cuja vigência acabou em 31.12.2023. Ao longo desse período passou por diversas alterações, chegando ao ponto de ter sido alterado no primeiro ano do segundo Governo Dilma para 59 setores. Mas em 2018 o Governo Temer reduziu para os atuais 17 setores, estipulando que tal política terminaria ao final de 2020. Desde então tal benefício vinha sendo concedido anualmente, sendo que ao final de 2022 o mesmo foi ampliado até dezembro de 2023. De um modo geral, essa desoneração da folha determinava a extinção da contribuição previdenciária patronal, a extinção da contribuição da CIDE (Contribuição de Intervenções no Domínio Econômico) e extinção da contribuição para o Sistema S.

Tal medida reduzia a contribuição previdenciária das empresas desses setores econômicos de 20% para uma alíquota que variava de 1% a 4,5% (no segundo período do programa) sobre a receita bruta de cada empresa. Somente nos primeiros quatro anos do programa (2012-2015) essa renúncia tributária atingiu a cifra de R$ 25 bilhões, com impactos diretos sobre o sistema de financiamento da Previdência Social. Dados relativos apenas ao ano de 2023 revelaram que a queda na arrecadação do Governo Federal foi da ordem de R$ 9,2 bilhões.

Antecipando-se ao fim da política de desoneração da folha previsto para ocorrer em 31.12.2023, lideranças dos setores empresariais beneficiados retomaram seus lobbies junto aos deputados e senadores ainda em meados de 2023. A partir daí o Senador Efraim Filho (União Brasil-PB) apresentou em julho de 2023 o Projeto de Lei (PL 334/23) propondo a prorrogação das isenções em vigor naquela data até 31.12.2027. E a partir de 01.08.23, com uma celeridade nunca vista, o referido projeto passou a tramitar por todas as comissões do CN sempre em regime de urgência. Com isso foi possível que o mesmo fosse aprovado ainda em agosto de 2023.

Enviado para sanção presidencial, o mesmo foi vetado integralmente pelo Presidente Lula em 23.11.2023. Segundo a Presidência da República, o governo considerou o projeto inconstitucional porque ele não apresentava os impactos financeiros da renúncia fiscal (desoneração da folha das empresas contempladas). Para o Ministro da Fazenda, a renúncia implicaria em um montante aproximado de R$ 9,4 bilhões no período definido pela nova lei (31.12.2027), o que comprometeria o equilíbrio das contas públicas, meta perseguida pela atual gestão econômica.

Com isso, o assunto retornou ao Congresso Nacional para serem analisados os vetos presidenciais. Em reuniões realizadas no dia 14.12.2023, tanto no Senado da República quanto na Câmara dos Deputados, foram derrubados todos os vetos do Presidente por ampla maioria nas duas casas parlamentares. A partir daí o assunto virou a Lei Ordinária n. 14.784, publicada no Diário Oficial da União em 28.12.2023.

A reação do governo foi imediata. Em 29.12.2023 foi lançada uma Medida Provisória (MP 1202/23) com o objetivo de reduzir a perda de receita e, com isso, atingir a meta de déficit zero das contas públicas. Para tanto, a MP alterava as regras de desoneração que tinham sido aprovadas pelo CN, com destaque para: a)A MP 1202 propôs que a partir de abril de 2024 vigorasse uma alíquota menor somente para um salário mínimo por trabalhador. Registre-se que, embora a MP entre imediatamente em vigor após ser editada, algumas mudanças propostas só passariam a valer a partir de 90 dias após a publicação da mesma; b)A revisão do Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos (PERSE) criado em 2021 para socorrer esse setor com desoneração total de impostos durante a pandemia, sendo que tal programa deveria durar apenas dois anos. Todavia, em meados de 2023 o CN prorrogou essa política até o final de 2025.

Diante das repercussões políticas negativas por parte de segmentos do CN, o governo editou uma nova medida (MP 1208/24) em 28.02.2024 revogando a reoneração dos 17 setores prevista pela MP 1202/23. Com isso, esses setores voltaram a ser desonerados conforme foi aprovado pela Lei 14.784/23. Essa decisão de retroceder do governo derivou de acordos celebrados com lideranças políticas do CN, as quais impuseram suas forças ao governo, tornando-o quase que refém dos interesses desses segmentos majoritariamente identificados com as bases políticas conservadoras que atualmente dominam o CN. Finalmente, em 28.02.24 o Presidente Lula encaminhou ao Congresso Nacional um projeto de lei (PL 493/24) com o objetivo de se definir uma reoneração gradual da folha de pagamento dos 17 setores contemplados pela Lei 14.784/23.

Ao longo desse período, cabe lembrar que o lobby desses setores articulado no Congresso Nacional tentou passar para o conjunto da sociedade a ideia de que o fim da desoneração da folha de pagamento reduziria fortemente o crescimento econômico desses setores com implicações negativas sobre o nível de emprego, ao mesmo tempo em que estimularia a informalidade nas relações de trabalho e diminuiria a competitividade econômica do país. Para tanto, apresentaram dados precários sobre os efeitos benéficos desse processo sobre a arrecadação federal no período 2012-2019, sem mostrar, todavia, quais foram os impactos dessa política sobre o mercado de trabalho e o nível dos salários ao longo de toda sua vigência.

De um modelo geral, as entidades representativas dos setores econômicos beneficiados por essa política tributária construíram uma narrativa que vem sendo fartamente divulgada pelos meios de comunicação[3] sem qualquer questionamento. Nesse debate, aliás, qualquer voz discordante da narrativa predominante dificilmente tem espaço para questionar e colocar seus argumentos. O discurso lobbista se assenta, basicamente, na temática do emprego. Neste caso, convencionou-se afirmar que os setores beneficiados são os maiores geradores de emprego no país e que, caso a desoneração fosse extinta, poderiam ser reduzidos milhares de empregos até 2026; que haverá aumento do custo laboral e com isso cortes de profissionais qualificados; que a produção desses setores entrará em estagnação; e que os níveis de atividades desses setores poderão regredir ao patamar de 2012. Além disso, alguns estudos sobre setores específicos mostram dados pontuais que tentam comprovar que a contribuição desses setores aumentou, porém sempre sem mencionar qualquer informação relativa ao mercado de trabalho, em especial aos empregos gerados. Portanto, segundo esses argumentos empresariais, bastava reduzir os tributos que os empregos surgiriam automaticamente. Na prática, todavia, o que se viu foi uma explosão do desemprego a partir de 2014 até 2016, conforme está fartamente documentado na literatura especializada sobre mercado de trabalho no Brasil.

Para se contrapor a esse lobby dominante, há uma vasta literatura especializada sobre o assunto, destacando-se Takada et all (2015), Dallava (2014), Do Carmo (2012), Baumgartner (2017), Garcia, Sachsida e Carvalho (2018), Freitas e Paes (2018), dentre outros. Todos esses estudos contêm pontos convergentes entre si que podem ser sistematizados da forma que segue: a) a desoneração não gerou impactos positivos nem no grau de formalização do mercado de trabalho e nem na realocação entre setores de atividades econômicas; b) não houve efeitos expressivos da política pública de desoneração sobre o conjunto do emprego formal no país; c) não houve efeitos positivos da política de desoneração, tanto para emprego como para salários, nos setores desonerados em função do produto; d) ao se avaliar o efeito de longo prazo da desoneração da folha se constatou que os níveis de crescimento do emprego ficaram muito aquém do esperado, ao mesmo tempo em que a arrecadação previdenciária sofreu quedas sequenciais; e) apenas em 2 setores (call Center e tecnologia da informação) dos 17 beneficiados foram observados efeitos positivos[4].

Dentre as principais conclusões desses estudos se pode destacar: a) a falta de um critério uniforme para inclusão dos beneficiários, levando a inclusão quase que aleatória de setores sem qualquer estudo prévio; b) o modelo de desoneração implantado se restringiu a poucos contribuintes, representando uma violação da equidade, uma vez que o custo desse benefício para o sistema público teve que ser suportado pelo conjunto da sociedade; c) a política adotada tornou o sistema tributário ainda mais regressivo porque se trata de um tributo indireto e que incide sobre o consumo, penalizando bem mais as camadas de renda inferior da sociedade; d) o sistema de financiamento da Previdência Social sofreu desequilíbrios porque a renúncia tributária impactou de forma negativa o resultado fiscal da União.

Durante as discussões no Congresso Nacional sobre a prorrogação das desonerações até 2027, surgiu um importante estudo de autoria do pesquisador do IPEA Marcos Hecksher (2023). Utilizando dados da PNAD Contínua entre 2012 a 2022 o autor mostrou que a População Economicamente Ativa (PEA) do país cresceu de 89,6 milhões (2012) para 98,0 milhões (2022), significando uma variação positiva da ordem de 9,4%. Além disso, indicou que 7 setores (nenhum deles vinculados à política de desoneração da folha) eram responsáveis pela geração de 52,4% do total de ocupados, fato que nega o principal argumento dos defensores da desoneração da folha.

Quanto aos 17 setores que foram desonerados, o autor verificou as seguintes situações: a)nenhum deles figurou  entre os  setores responsáveis por 52,4% dos ocupados; b)o conjunto dos setores desonerados reduziu a participação no total de ocupados do país de 20,1% (2012) para 18,9% (2022); c)dentre os ocupados nos setores desonerados apenas 54,9% contribuíam para a previdência, contra 63,7% na média dos trabalhadores do país; d)os empregados com carteira de trabalho assinada caíram de 22,4% (2012) para 19,7% (2022); e)os ocupados contribuintes da previdência caíram de 17,9% (2012) para 16,2% (2022); f)empresas privadas de outros setores aumentaram em 6,3% os empregos com carteira (1,7 milhões); g)empresas privadas desoneradas reduziram em 13% os empregos com carteira (-960 mil trabalhadores).

Visando contribuir com esse debate, elaborei o quadro abaixo com os dados da Relação Anual de Informações Sociais (RAIS). Quanto ao primeiro período (2011-2014), observa-se que em termos absolutos ocorreu uma expansão de 174.942 postos de trabalho, sendo que oito setores desonerados reduziram seus níveis de emprego, enquanto outros nove ampliaram. Mesmo assim, o percentual de participação dos setores desonerados no total do país caiu de 16,5% (2011) para 15,8% (2014).

No caso dos setores que expandiram o emprego, ocorreu uma concentração de aproximadamente 90% em quatro deles: transportes rodoviários de cargas, call center, TI e transportes rodoviários coletivos. Já no caso dos 8 setores que excluíram vagas não houve grandes dispersões, com concentração nos setores de calçados, construção civil, couro e fabricação de veículos e carrocerias.

No período 2014-2021 notou-se uma redução de 873.943 postos de trabalho em relação ao montante existente em 2014. Com isso, o percentual de participação desses setores no emprego do país se reduziu para 14,3%, dando continuidade ao que foi observado no período anterior. Em termos setoriais, verifica-se que 12 setores sofreram redução, enquanto outros 5 aumentaram seus níveis de emprego. No caso dos setores que reduziram seus níveis de emprego, destacam-se Confecção e vestuário (-128.733), Construção civil (-203.932), Construção e obras de infraestrutura (-219.031) e Transportes rodoviários coletivos (-215.935). Embora em patamares baixos, também merece destaque as reduções ocorridas nos setores de couro, fabricação de veículos e carrocerias, jornalismo e radiodifusão e têxtil. Já no caso dos setores que expandiram os níveis de emprego, destacam-se os setores de TI (190.784) e de Transportes de cargas (129.401). Na verdade, esses dois setores responderam por 93% da expansão do emprego no período 2014-2021. Já os setores de call center, proteína animal e transportes metroviários de passageiros apresentaram pequenas oscilações positivas que podem ser consideradas inexpressivas diante dos dois primeiros.

Quadro 1: Postos de trabalho gerados pelos 17 setores com desoneração da folha entre 2012 e 2021, segundo a RAIS/MT

Setores2011%*2014%*2021%*
1)Calçados319.3634,2287.6363,7251.2103,6
2)Call Center391.2175,1489.5556,3498.6807,2
3)Confecções e Vestuário666.6828,7651.7728,3496.2517,1
4)Construção Civil1.150.28515,11.114.38314,3747.16710,7
5)Construção e Obras de Infraestrutura920.17012,1889.16411,4670.1339,6
6)Couro408.7615,4372.4994,8321.7724,6
7)Fabricação de Veículos e Carrocerias526.0996,9489.2796,3425.0036,1
8)Jornalismo de Radiodifusão94.0671,296.2611,276.6221,1
9)Máquinas e Equipamentos402.8825,3408.1185,2383.8435,5
10)Proteína Animal50.8630,759.8620,874.9511,1
11)Têxtil302.2624,0296.0283,8266.6203,8
12)Tecnologia de Informação (TI)278.4873,6341.1734,4531.9577,6
13)Tecnol. de Inform. Comunicação (TIC)532.5727,0534.3556,8533.9367,7
14)Projeto de Circuitos Integrados42.2670,642.0800,530.8980,4
15)Transporte Metroviário de Passageiros29.1830,432.8600,435.5820,5
16)Transportes Rodoviários Coletivos716.8679,4770.9109,9554.9758,0
17)Transportes Rodoviários de Cargas803.67110,5934.67512,01.064.07615,3
Total dos 17 setores7.635.698 7.810.610 6.936.676 
Total do país**46.310.63116,549.571.51015,848.728.87114,3

               Fonte; RAIS- Elaboração: NECAT

               *percentual do setor dentre os 17 setores ** percentual dos 16 setores no país

Finalmente, é importante analisar o período completo de vigência da política de desoneração da folha (2012-2021), à luz dos dados disponibilizados pela RAIS (2021 é último ano com dados disponíveis). Inicialmente, é importante destacar que o percentual de participação desses 17 setores no conjunto do emprego gerado no país caiu de 16,5% (2011) para 14,3% (2021). Em termos absolutos, verifica-se que ao longo da série temporal considerada ocorreu uma redução de 699.022 postos de trabalho, sendo que apenas seis dos 17 setores desonerados elevaram seus níveis de emprego em 2021, comparativamente ao ano de 2011.

Na sequência destacamos a quantidade de postos de trabalho reduzidos nos onze setores: calçados (-68.153), confecções e vestuário (-170.431), construção civil (-403.118), construção e obras de infraestrutura (-250.037), couro (-86.989), fabricação de veículos e carrocerias (-101.096), jornalismo e radiodifusão (-17.445), máquinas e equipamentos (-19.039), têxtil (-35.642), projeto de circuitos intergados (-11.369) e transportes rodoviários coletivos (-161.892). Isso significou uma redução de 1.325.211 postos de trabalho. Desse total, cinco setores (confecções e vestuário, construção civil, construção e obras de infraestrutura, fabricação de veículos e carrocerias transportes rodoviários coletivos) foram responsáveis por 82% de todas as reduções de postos de trabalho no período considerado.

Do ponto de vista dos setores que expandiram os postos de trabalho, verifica-se o seguinte cenário: transportes rodoviários de cargas (+260.405), TI (+253.470), call center (+107.463), proteína animal (+24.088), transportes metroviários de passageiros (+6.399) e TIC (+1.364). Isso significa que os três primeiros setores foram responsáveis por 95% da expansão dos postos de trabalho.

Em síntese, pode-se resumir esse movimento no mercado de trabalho desses dezessete setores da forma que segue: em apenas três setores (transportes rodoviários de cargas, TI e call center) houve expansão expressiva de postos de trabalho, enquanto que em outros cinco setores (construção civil, construção e obras de infraestrutura, confecções e vestuário, transportes rodoviários coletivos e  fabricação de veículos a carrocerias) ocorreu uma retração expressiva do volume de emprego em 2021 comparativamente ao nível existente em 2011. No restante dos setores desonerados ocorreu redução de postos de trabalho, fato que fez a participação dos desonerados no emprego total do país cair de 16,5% para 14,3%, o que implicou em uma redução de aproximadamente 700 mil postos de trabalho. Por fim, deve-se mencionar que os empregos gerados apresentaram uma concentração expressiva em apenas três setores desonerados (cal center, TI e transportes rodoviários de cargas). Portanto, pode-se afirmar que a política de desoneração – no que tange ao mercado de trabalho – não promoveu a expansão da formalidade e nem estimulou a realocação da mão de obra entre os diversos setores de atividades econômicas.


[1] Professor Titular do Curso de Economia e do Programa de Pós-Graduação em Administração, ambos da UFSC. Coordenador Geral do NECAT-UFSC e Pesquisador do OPPA/CPDA/UFRRJ. Email: [email protected]. Versão resumida do TD 057/2024. www.necat.ufsc.br/TextoparaDiscussão n.057/24.

[2] Confecção e vestuário, calçados, construção civil, call center, comunicação, construção e obras de infraestrutura, couro, fabricação de veículos e carrocerias, máquinas e equipamentos, proteína animal, têxtil, tecnologia da informação, tecnologia da informação e comunicação,  projeto de circuitos integrados, transporte metro-ferroviário de passageiros, transporte rodoviário coletivo e transporte rodoviário de cargas.

[3] Vide manchete do Portal R7, Brasília (19.11.2023): “estudo mostra que segmentos desonerados empregam mais e pagam melhor”.

[4] Provavelmente essa expansão tenha mais a ver com os novos parâmetros estruturais da economia brasileira do que propriamente em função da política de desoneração.

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