Blog: Democracia e Economia – Desenvolvimento, Finanças e Política
A desigualdade econômica como reflexo da crescente desigualdade política nas democracias contemporâneas.
por Pedro M. R. Barbosa
O livro Unequal Democracies sustenta que as democracias contemporâneas têm se caracterizado por um crescente viés de representatividade em prol dos interesses dos mais ricos. Resta, contudo, desvendar se é a desigualdade política que gera a desigualdade econômica ou o inverso.
Lançado em 2024[1], o livro “Unequal Democracies: public policy, responsiveness, and redistribution in an Era of Rising Economic Inequality”[2] se insere em um amplo debate sobre desigualdade política nas democracias contemporâneas. Nesse debate, argumenta-se que a democracia representativa não tem respondido de forma equitativa às preferências dos diversos grupos sociais, mas tem privilegiado os interesses dos mais ricos. O título do livro é uma referência à obra do cientista político estadunidense Larry Bartels, Unequal Democracy,que introduz essa reflexão a partir da análise da democracia nos Estados Unidos (EUA). Unequal Democracies busca, por sua vez, ampliar esse debate para as chamadas democracias ricas (Austrália, Canadá, países europeus e Nova Zelândia). Resultado da colaboração de diversos autores, o livro organizado possui uma interessante característica de abranger um debate plural interno com capítulos apresentando argumentos divergentes entre si.
A motivação central dos organizadores do livro, Lupu e Pontusson, é apontar que o viés pró-ricos não constitui uma particularidade da democracia estadunidense, como diagnosticado por Bartels, mas tem se revelado uma característica sistemática nas democracias representativas. A fim de demonstrar essa tese, o livro recorre a uma ampla gama de métodos investigativos. Lupu e Pontusson, por exemplo, argumentam que o aprofundamento da desigualdade econômica, testemunhado nas últimas décadas, evidencia a prevalência dos interesses dos mais ricos nas democracias. É interessante observar que esse argumento tem por base a premissa de que a democracia possui mecanismos redistributivos intrínsecos.
Essa premissa inspira-se numa teoria clássica da economia política, de Meltzer e Richard (MR), segundo a qual, sob o sufrágio universal, o aumento da desigualdade inclina a estrutura de preferências do eleitorado em favor dos interesses dos mais pobres, pressionando os governos a serem responsivos à pauta de redistribuição. Em outras palavras, o aprofundamento da desigualdade impulsionaria os governos a promoverem redistribuição, uma vez que a parcela decisiva do eleitorado (o chamado eleitor mediano) figuraria com renda abaixo da renda média da sociedade. Sob esse ponto de vista, as dinâmicas da desigualdade e da redistribuição observadas nos últimos anos indicariam algo disfuncional nos mecanismos de representação. A teoria MR é uma perspectiva altamente influente na grande área de economia política e dispõe de diferentes versões, incluindo uma de Lupu e Pontusson. Paradoxalmente, sua validade é no mínimo controversa, na medida em que se pauta em premissas já refutadas empiricamente como a de que os indivíduos têm a plena percepção do perfil de distribuição de renda na sociedade, bem como eles têm consciência em qual posição desta distribuição estão situados. A debilidade das premissas do modelo MR são, inclusive, exploradas ao longo do próprio livro.
De todo modo, é preciso dizer que a dinâmica de aprofundamento da desigualdade em curso difere-se daquela sobre a qual a teoria MR se atém. Como dito, tal teoria se foca no chamado eleitor mediano, sublinhado o papel da perda de renda nos setores do meio para a base da distribuição, ao passo que o padrão de desigualdade testemunhado a partir do fim do século XX concerne à concentração no topo; concentração esta que pode ter repercussões heterogêneas para o resto da distribuição. Se a teoria MR não oferece respostas para o processo de concentração de renda no topo, logo não há quebra de expectativa teórica. Na verdade, a literatura sobre a economia política de redistribuição no topo é inconclusiva, quando não se argumenta que apenas crises sistêmicas e guerras são capazes de promover desconcentração nesta parcela da sociedade. Trata-se de uma pauta ainda em debate, em grande medida porque, devido ao contexto de ampla mobilidade de capital alentado pela globalização, é provável que soluções domésticas sejam limitadas, suscitando medidas coordenadas em âmbito internacional. Portanto, é equivocado supor que a democracia, a partir de seus mecanismos mais elementares como o sufrágio universal, seria uma condição suficiente para exercer tal redistribuição.
Além da questão da desigualdade econômica, o livro explora a congruência entre as preferências dos distintos setores sociais – classe baixa, média e alta – e a implementação das políticas públicas em diversos contextos. As análises constatam que as preferências dos setores mais ricos são desproporcionalmente mais contempladas no desenvolvimento destas políticas. Adicionalmente, os resultados apontam para uma tendência sistemática de os governos, independentemente de sua orientação ideológica, priorizarem os interesses dos segmentos sociais de maior renda.
Constatação tal significa a ruptura com um ideal pluralista de democracia, relacionado à constituição de sistemas como poderes difusos, compostos por uma pluralidade de grupos cujas capacidades de pautar suas agendas são relativamente equânimes. Expoente dessa perspectiva, o cientista político Robert Dahl opta por empregar o termo poliarquia a fim de destacar essa característica de difusão de poder, embora o autor discorra amplamente sobre certas condições necessárias para que os regimes políticos se concretizem como tal. O pluralismo contrapõe-se ao modelo elitista de Wright Mills para o qual elites econômicas e políticas concentram poder de tal maneira que pulverizam a influência de outros setores da sociedade. Em certo sentido, Unequal Democracies argumenta que, em vez de poliarquia, a democracia tem se aproximado de um modelo elitista, ou nas palavras de Becher e Stegmueller (2024) um “pluralismo enviesado”.
É interessante recordar que parte das críticas às perspectivas pluralistas, sobretudo às mais idealistas, acusam-nas de desconsiderar elementos estruturais, externos às instituições políticas, que condicionam a capacidade desigual de certos setores sociais influenciarem o poder. Em particular, atores com poder econômico têm maior capacidade de influência ao financiar campanhas eleitorais, exercer lobby e ter a propriedade de meios de comunicação. Sob essa linha de raciocínio, é possível questionar uma dimensão chave da tese de pluralismo enviesado: é a desigualdade política que provoca a desigualdade econômica ou o contrário? O livro sugere a primeira hipótese, mas não se ocupa em refutar a explicação alternativa.
Além disso, como debatido em um dos capítulos do próprio livro, Bartels aponta limitações nas análises de desigualdade política e de responsividade. A principal delas é pressupor que responsividade implique congruência entre as preferências dos eleitores e a atividade do representante. Essa premissa viola uma das definições mais difundidas de representação política que envolve o princípio de independência parcial do representante. Historicamente, a representação política não consiste no espelhamento entre as demandas dos eleitores e a atividade do representante político. Fosse assim, a representação perderia a sua função para se tornar um mecanismo direto de democracia. Mais do que isso, tal espelhamento é inexequível, tendo em vista que os desejos dos eleitores não são homogêneos, sobretudo considerando todas as áreas de políticas públicas sobre as quais representantes precisam deliberar. Na maioria das vezes, ainda, representantes precisam negociar pautas no parlamento, envolvendo um jogo de barganha que redunda em certa modificação das pautas originais. No lugar de desigualdade de responsividade, Bartels propõe o conceito de desigualdade de influência, mas que não parece resolver grande parte dos desafios analíticos apontados pelo próprio autor.
Em suma, o livro estabelece um debate crucial sobre a evolução recente da igualdade política, sugerindo que as democracias têm se caracterizado por um “pluralismo enviesado”. Contudo, o diagnóstico apresentado padece de limitações, sobretudo porque parte de premissas problemáticas. A análise de congruência entre preferências dos eleitores e a dinâmica da agenda política ancora-se numa percepção equivocada da representação e da responsividade. Outra premissa equivocada relaciona-se à expectativa de que o sufrágio universal seria um mecanismo suficiente para exercer redistribuição de tal maneira a atingir inclusive os mais ricos que estão no topo. Se é verdade que democracias tendem a ser menos desiguais do que regimes autoritários, o seu grau de redistribuição potencial depende de outros fatores. Por exemplo, estruturas sociais importam, uma vez que condicionam as correlações de forças manifestadas nos sistemas políticos. Ou seja, há uma dinâmica relacional entre sistema político e sociedade que problematiza o argumento central do livro: é a desigualdade política que gera a desigualdade econômica ou o inverso?
Pedro M. R. Barbosa – Pesquisador de Pós-doutorado do Centro de Estudos da Metrópole/USP
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O Grupo de Pesquisa em Financeirização e Desenvolvimento (FINDE) congrega pesquisadores de universidades e de outras instituições de pesquisa e ensino, interessados em discutir questões acadêmicas relacionadas ao avanço do processo de financeirização e seus impactos sobre o desenvolvimento socioeconômico das economias modernas. Twitter: @Finde_UFF
O Grupo de Estudos de Economia e Política (GEEP) do IESP/UERJ é formado por cientistas políticos e economistas. O grupo objetiva estimular o diálogo e interação entre Economia e Política, tanto na formulação teórica quanto na análise da realidade do Brasil e de outros países. Twitter: @Geep_iesp
[1] O livro está com acesso aberto disponível em: https://www.cambridge.org/core/books/unequal-democracies/5544C1CE53545F4094B21E03B90D2F1D
[2]Tradução livre: Democracias desiguais: políticas públicas, responsividade e redistribuição em uma era de desigualdade econômica ascendente.
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Parabéns ao GGN,
na reportagem, nos debates inclusive os acadêmicos. E a opão clara – mas adimitindo a crítica quando necessária – por quais políticas e políticos se esforçar para compreender e defender o projeto e valor democrático.
ignacio c bulhões
A desigualdade econômica é uma herança milenar, instituída por meio da violência e da corrupção (conseguindo-se mais aliados que adversários). E o Poder Econômico é o Poder que corrompe. Corrupção política é a compra de Poder Político pelo Poder Econômico. E com mais Poder Político, maior enriquecimento!… (Círculo vicioso).