Reforma ou desestruturação administrativa?, por Rodrigo Medeiros e Luiz Henrique Faria

Uma reforma administrativa eficaz deveria seguir a lógica de buscar, em parceria com os servidores públicos, sem exceções para as “carreiras típicas”, entregar mais e melhores serviços para a cidadania

Arte na Rua – Alex Senna

Reforma ou desestruturação administrativa?

por Rodrigo Medeiros e Luiz Henrique Faria

A nota técnica de número 69, de 19 de maio de 2021, da Consultoria de Orçamentos, Fiscalização e Controle do Senado Federal, trouxe análises relevantes sobre a PEC 32/2020, que versa sobre a “reforma administrativa”. A nota ressalta que considera inadequada a denominação de reforma administrativa, visto que a PEC 32/2020 busca promover “alterações nos regimes jurídicos de servidores e empregados públicos, assim como no regramento da organização administrativa do Estado brasileiro”. Há a previsão de um período de transição, com a aplicação imediata de algumas regras.

Tendo em vista a centralidade da argumentação fiscalista, é bem estranho que o Poder Executivo não tenha divulgado as estimativas do seu impacto fiscal. De acordo com a nota técnica, “o Poder Executivo julgou não ser viável realizar qualquer estimativa de impacto fiscal no presente momento, dada a dependência de regulamentações futuras”.

A nota técnica, por sua vez, apresentou alguns impactos fiscais identificados na PEC 32/2020. Segundo consta no documento, “o primeiro impacto fiscal que vislumbramos com a aprovação da PEC 32/2020 é o aumento da corrupção na administração pública”. São citadas a eliminação das restrições atualmente existentes à ocupação de cargos em comissão e funções de confiança, além de novas possibilidades para os contratos de gestão.

Restrições existentes à ocupação de cargos em comissão e funções de confiança seriam eliminadas, permitindo a sua ocupação, sem limites, por pessoas sem vínculos com a administração pública. Seria essa a legalização da tradição clientelista e patrimonialista brasileira, com repercussões públicas a partir de escândalos de corrupção evitáveis?

Há ainda a previsão da expansão de funções de confiança e cargos em comissão para mais de 200 mil postos adicionais. Consta na nota técnica que “a possibilidade de cada órgão estabelecer normas próprias para a gestão das receitas próprias e para a exploração do patrimônio próprio também causa preocupação, pelo aumentado risco de descontrole e malversação da coisa pública”. A PEC traz riscos de retrocesso para a transparência orçamentária, “dificultando enormemente o controle parlamentar e social e abrindo portas para todo tipo de abuso”.

O documento também tratou da captura do Estado por interesses privados, que, no entender da nota técnica, será facilitada pela aprovação da PEC 32/2020. A ampliação da contratação de pessoal sem concurso público, por exemplo, é citada. Como é de conhecimento público, o clientelismo é uma velha prática política no Brasil para garantir as governabilidades e a permanência de grupos políticos no poder. 

Segundo a nota técnica, “a PEC 32/2020, assim, permitirá um nível inédito de aparelhamento”. A proposta de limitação do instituto da estabilidade no cargo público também é outro fator que fragiliza o serviço público. Ela impactará na fragilização e na redução da resistência da burocracia profissional em se opor a ordens que visem a satisfação de interesses privados de grupos políticos e econômicos.

Afinal, imerso ainda em um quadro dramático da pandemia de Covid-19 e na antessala de uma terceira onda, seria essa a real prioridade da democracia brasileira? Pelo jeito, busca-se insistentemente um Estado mínimo para o cidadão, algo que vem sendo objeto de muitos questionamentos no Chile, o projeto piloto histórico do neoliberalismo, preservando um núcleo duro de “carreiras típicas” que o sustentem, institucionalmente, a partir da interpretação da legalidade e do uso da força física repressora. Deve-se destacar que o programa de Estado mínimo também vem sendo socialmente questionado nas ruas da Colômbia.

O piso da estimativa da nota técnica é que a aprovação da PEC 32/2020 poderá gerar um dano anual aos cofres públicos da ordem de R$ 115 bilhões pela captura do Estado por interesses privados. Destaca-se no documento que “o risco central é a desestruturação dos órgãos públicos, que se tornariam muito mais vulneráveis à interferência política, pois sua força de trabalho poderia ser em grande parte substituída a cada ciclo eleitoral”.

Em termos estruturais, não se deve negligenciar o processo de “uberização” da força de trabalho, que poderia ser contratada sob demanda. Os efeitos da precarização laboral feita na reforma trabalhista são conhecidos em termos da semiestagnação da renda, do alto desemprego, da dramática informalidade e da elevada subutilização da força de trabalho. Com a pandemia, piorou o que já estava ruim.

Como síntese, a nota técnica apontou que “estimamos que a PEC 32/2020, de forma agregada, deverá piorar a situação fiscal da União, seja por aumento de despesas ou por redução de receitas”. Há também a perspectiva de efeitos que aumentam as despesas dos governos subnacionais no documento.

A nota técnica trouxe propostas de melhorias para a gestão das despesas públicas com pessoal, apontando que “o descumprimento da legislação existente é, em nosso entendimento, o problema mais grave a ser enfrentado na gestão das despesas com pessoal”. Desrespeitar a exigência de autorização específica na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e não contar com dotação orçamentária adequada são atos que estão em desconformidade com a Constituição. A efetivação de um teto remuneratório constitucional é medida necessária e moralizadora.  

Uma reforma administrativa eficaz deveria seguir a lógica de buscar, em parceria com os servidores públicos, sem exceções para as “carreiras típicas”, entregar mais e melhores serviços para a cidadania, a partir do mapeamento e da redução dos desperdícios nos seus processos, estimulando a profissionalização contínua e o maior controle social na prestação desses serviços. A onda da transformação digital, por sua vez, é bem promissora em termos de ganhos de produtividade e eficiência para a administração pública, para as atividades-meio e fins.

No entanto, a lógica regressiva das reformas desde 2016 é a de redução dos gastos públicos na ponta com a população. Busca-se reformar para prestar menos serviços públicos e abrir mais espaços para os negócios privados, sendo que alguns destes possuem a expectativa de serem remunerados diretamente a partir dos gastos públicos. Essa lógica segue a ideologia ultraliberal, em xeque em muitos países, e os preconceitos contra os serviços e os servidores públicos.

Em recente entrevista ao Valor Econômico, no dia 25 de maio, a economista Rosa Maria Marques, professora titular da PUC de São Paulo, afirmou que “o que foi feito no Brasil não tem paralelo no mundo. Em nenhum lugar congelou-se o gasto fiscal por tanto tempo [revisão em dez anos]; em nenhum lugar foram considerados os gastos sociais como objeto de congelamento e excluídos os serviços da dívida pública; em nenhum lugar inscreveu-se o regime fiscal na Constituição do país”. A prioridade é a transferência concentradora de rendas por meio do mecanismo de rolagem eterna da dívida pública, enquanto os serviços públicos oferecidos ao povo definham por asfixia orçamentária.

Desde a eclosão da crise financeira mundial, a partir de setembro de 2008, a recessão democrática vem descrevendo bem o fim do processo de ampliação das democracias no mundo. O livro “Como as democracias morrem” (Zahar, 2018), de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, professores da Universidade de Harvard, merece atenção. Logo no prefácio da edição brasileira do livro é feita a seguinte pergunta: “Democracias tradicionais entram em colapso?”

Os professores buscam responder a esta questão a partir de exemplos históricos ao longo do livro. A reflexão metodológica proposta de como os regimes democráticos podem ser enfraquecidos “por dentro”, dentro da “legalidade”, “com as instituições funcionando”, é fundamental para todos os países. Segundo ponderam os professores, “desde o fim da Guerra Fria, a maior parte dos colapsos democráticos não foi causada por generais e soldados, mas pelos próprios governos eleitos”. A erosão da democracia seria, portanto, um processo gradual, quase imperceptível.

Rodrigo Medeiros e Luiz Henrique Faria são professores do Instituto Federal do Espírito Santo (Ifes)

Este artigo não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

Rodrigo Medeiros

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