Porões, Becos e Metrôs: a simbologia da caverna

A simbologia da caverna tem uma longa história que envolve não só a filosofia e o desenvolvimento da racionalidade ocidental mas, inclusive, o destino da experiência do sagrado na atualidade. Isso vai se refletir numa variada simbologia e iconografia presentes em filmes dos mais variados gêneros. (Foto: “Cloverfield” – 2008)

A tradição das cavernas como ante-câmera de um mundo subterrâneo, terra dos mortos, o meio do caminho para o contato com deuses em uma realidade separada da humana, está presente desde tempos arcaicos. Filósofos gregos pré-socráticos, por exemplo, estavam fundamentados numa tradição da busca da sabedoria na escuridão, e não na luz, através da incubação de sonhos em cavernas. Aqueles que se iniciavam nesses lugares sagrados participavam de uma jornada no reino dos mortos na esperança de encontrar uma divindade que se tornaria seu amigo ou mentor. Tais cultos apresentavam a caverna como lugar de cura e conexão com o transcendental mundo para além dos nossos sentidos.

 

A partir de Platão e Sócrates temos uma virada: a caverna será apresentada como uma parábola da limitação da percepção derivada da experiência sensorial, portanto, um lugar de onde devemos escapar para encontrar a verdade. Essa parábola mostra a visão de mundo do ignorante, que vive no senso comum, e do filósofo na eterna busca da verdade. Aprisionado no interior de uma caverna, limita-se a ver sombras nas paredes projetadas do mundo exterior (o Mundo das Idéias, oposto ao mundo das coisas sensíveis).

 

Seis séculos depois, a crença em um mundo superior escondido por trás das formas transitórias dos sentidos continua presente nos antigos cultos helenísticos, escolas filosóficas e novas religiões, mais notadamente o Cristianismo. Esse abandono da tradição das cavernas, corresponderá a uma oposição entre as formas da busca da Verdade: espisteme versus gnosis, fé versus mística, razão versus intuição. O mundus subterraneus, local dos mistérios, sonhos e da morte, canal de conexão com o transcendente, é recalcado pela simbologia da Luz que desvenda todos os mistérios e ilumina a ignorância.

 

Este modelo de um cosmos construído em dois níveis (o mundo superior onde reside o criador e um mundo inferior, cópia deteriorada das instâncias superioras) é secularizado pelo racionalismo científico e pelo protestantismo. A decretação do fim dos milagres pelo protestantismo (ou o fim do contato direto com os reinos espirituais) e a redução do mundo a um único nível pela ciência (o mundo empírico) nada mais faz do que secularizar a antiga dualidade helenística em uma moderna dualidade: sujeito e objeto, ego e id, cultura e natureza etc.

 

Mas a luz da episteme cria sombras. O mundo subterrâneo não está realmente morto. Uma espécie de “sub-zeitgeist” surgirá na cultura popular onde o sobrenatural somente se manifestará em reinos escuros, demonizados.

“Pense na mais profunda garagem de veículos nos últimos dez filmes de ação que tenha assistido, sempre mostrado como lugar de perigo e discórdia, onde o herói ou a heroína é atacado pelo vilão, onde perseguições de carros terminam em destruição em massa. Ou as misteriosas regiões em metros onde almas mortas se manifestam como hordas de sem-tetos. Ou os labirintos desses filmes sempre localizados sob ficcionais Chinatowns. Ou os numerosos mundos alternados ou secundários dos filmes de ficção-científica, incluindo as cavernas de misteriosos planetas como no filme Alien (1979) repletos de sinistros ovos que infectam a tripulação da nave Nostromo com um destrutivo e agressivo organismo que mata cada organismo que o hospeda. Ou a idéia, repetida de uma maneira ou outra em quase toda ficção em realidade virtual ou filme de que o que vemos em torno de nós é uma ilusão criada para mascarar uma outra realidade que reside abaixo ou acima de nós.” (NELSON. Victoria. The Secret Life of Puppets. Havard University Press, 2001, p.6)

Com a revolução científica do século XVII acompanhado pelas primeiras expedições polares, o mundus subterraneus passou a não ser mais aceito como uma real locação e foi transformado em um fictício local transcendental e psicológico na literatura e nos filmes. A tradição das cavernas como o local para o impulso da busca pelo sagrado na escuridão e nos sonhos é demonizado na moderna cultura como locais perigosos onde habita o Mal. E o mago ou mentor desse reino (dos zoroastras padres da antiga Persia aos medievais alquimistas) é transformado no estereótipo do cientista louco cujas energias que tenta manipular provém das trevas subterrâneas.

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Luis Nassif

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