Consumo das famílias desaba aos níveis de 2013

Perda de poder de compra, inflação elevada, crise hídrica, desorganização das cadeias produtivas e alta dos juros derrubam as chances de crescimento na economia

Foto: Tanio Rego/Agência Brasil

Por Lauro Veiga Filho

O grande motor da economia parou de rodar. Tropeçou em mais uma onda da pandemia, na lentidão das vacinas, no desemprego elevado, na alta dos preços dos alimentos, do gás de cozinha, da energia elétrica, na incerteza em relação ao futuro. O consumo das famílias enfrentou o segundo trimestre consecutivo de crescimento nulo ou muito perto disso, contribuindo para a estagnação virtual do Produto Interno Bruto (PIB), a soma de todos os bens e serviços produzidos pela economia, no segundo trimestre deste ano, numa tendência evidente de desaquecimento em meio à crise instalada desde a chegada do Sars-CoV-2 em março do ano passado.

Na comparação com o trimestre imediatamente anterior, os gastos de consumo das famílias já haviam registrado variação muito próxima de zero nos três primeiros meses deste ano – numa visão condescendente, “subiram” 0,1% frente ao último trimestre de 2020, já com os devidos ajustes à sazonalidade do período, marcado pelos feriados do Natal e do réveillon, com gastos típicos dessa fase do ano. No segundo trimestre, nem isso. A variação foi zero mesmo.

A série ajustada de dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que nesta semana divulgou os números mais recentes do PIB, mostra que o consumo das famílias acumulou queda de 3,0% frente ao trimestre final de 2019 e encontrava-se, no segundo trimestre deste ano, perto de 4,4% abaixo de seu melhor momento, alcançado no quarto trimestre de 2014. Conforme as mesmas estatísticas, os gastos das famílias praticamente repetiram o volume consumido no primeiro trimestre de 2013, há pouco mais de oito anos, portanto. A população cresceu desde então, assim como suas necessidades, o que permite concluir que, pelo menos para as milhões de famílias situadas na base da pirâmide da renda, essas necessidades não foram atendidas integralmente, agravando o quadro de desigualdades e de exclusão.

A participação dos gastos de consumo das famílias brasileiras no PIB vem encolhendo mais recentemente, desabando de 64,5% no primeiro semestre de 2019 para 59,3% na primeira metade deste ano, o que corresponde a uma perda de 5,2 pontos de porcentagem sobre o volume das “riquezas” produzidas pela economia. Como o PIB atingiu R$ 4,191 trilhões no acumulado dos seis primeiros meses deste ano, pode-se estimar que as famílias foram privadas de um consumo equivalente a quase R$ 218,0 bilhões, dinheiro que deixou de circular, de gerar produção e empregos, que ajudariam, mais adiante, a produzir novos empregos, mais renda e mais consumo. Esse será mais um fator a inibir todo o restante da economia nos próximos trimestres, somando-se aos riscos de novo agravamento na pandemia, associado ao surgimento de novas variantes do vírus, à crise hídrica, que já encarece os custos da energia e vai gerar mais inflação adiante, levando o Banco Central (BC) a promover novos aumentos dos juros básicos, com efeitos mais uma vez depressores sobre a atividade econômica. Por óbvio, a crise política e institucional armada pelo desgoverno instalado em Brasília reduz ainda mais as possibilidades de crescimento, pelo nível dramático de incertezas que acrescenta ao cenário político, com impactos sobre decisões de investimento, consumo e produção em toda a economia.

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O Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (Iedi) agrega mais um fator aos já apontados neste espaço. Ao analisar o número negativo do PIB no segundo trimestre, o instituto acrescenta ao atraso da vacinação e à piora da pandemia, à aceleração inflacionária e ao “ambiente de alto desemprego”, o “desarranjo persistente” entre as cadeias do setor produtivo, o que “continua impondo gargalos na obtenção de insumos”. Ainda na leitura do Iedi, a paralisia observada para o consumo das famílias nos dois primeiros trimestres deste ano “tem sido o maior obstáculo para um desempenho superior do PIB”. Na visão do instituto, dado o cenário de desemprego em níveis historicamente elevados e de corrosão “há meses” do poder de compra das famílias “pela inflação de bens essenciais, como alimentos, gás e combustíveis e, agora, energia elétrica”, os números consolidados para a atividade econômica não poderiam ser diferentes. A situação piora ainda em função “da própria dinâmica da pandemia” e da “reedição (tardia) do auxílio emergencial” em valores muito mais baixos do que em 2020.

Desmanche no mercado de trabalho

O avanço das ocupações neste ano tem sido puxado quase exclusivamente pelos empregos informais, que pagam salários relativamente mais baixos, derrubando o rendimento médio dos trabalhadores – que já vem sendo corroído pela inflação crescente, gerando carestia e inibindo o consumo das famílias, como já mostram os dados do PIB. A massa de rendimentos efetivamente recebidos pelos trabalhadores, ainda de acordo com o IBGE, despencou 15,4% entre o primeiro trimestre de 2020 e o segundo trimestre deste ano, saindo de R$ 254,344 bilhões para R$ 215,084 bilhões em valores reais (quer dizer, descontada a inflação), numa perda de R$ 39,260 bilhões.

O avanço da informalidade, na esteira da crise sanitária, foi também promovido pelas reformas sequenciais das leis trabalhistas, com flexibilização de direitos a pretexto, ironicamente, de favorecer a criação de empregos formais, o que, de fato não tem ocorrido. Os dados oficiais mostram uma precarização crescente das contratações. De fato, a celebrada recuperação do emprego no País tem sido sustentada pela volta dos informais às ruas, literalmente invadidas por milhões de trabalhadores sem direito a férias, 13º salário, Previdência, ao Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS). Mais claramente, sem apoio de políticas públicas, sem garantias e, portanto, sem emprego real. Essa invasão de desvalidos tem sido apontada como sinal de uma retomada por economistas, consultores a soldo dos mercados e parte do empresariado identificado com a agenda liberaloide do senhor Paulo Guedes, ocupante ocasional do Ministério da Economia.

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Nos últimos quatro trimestres, como mostram as séries estatísticas da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNADC), realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a economia como um todo abriu 4,444 milhões de vagas, elevando o total de pessoas ocupadas de 83,347 milhões no segundo trimestre de 2020 para 87,791 milhões em igual período deste ano, numa elevação de 5,3%. O número de trabalhadores empurrados para a informalidade por falta de opções no setor dito formal avançou ainda mais rapidamente, saltando de 30,768 milhões para 35,618 milhões, numa variação de 15,8%. Desembarcaram nesse mercado mais 4,850 milhões de trabalhadores sem carteira, sem registro no Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica (CNPJ) ou para prestar serviços não remunerados a suas respectivas famílias.

Feitas as contas, todo o restante do mercado, que envolve empregados dos setores público e privado com carteira assinada, trabalhadores domésticos também com registro em carteira, trabalhadores por conta própria com inscrição no CNPJ e empregadores igualmente inscritos no mesmo cadastro, encerrou 406,0 mil vagas, em grandes números. Eram 52,579 milhões entre abril e junho de 2020 e passaram a somar 52,173 milhões no mesmo trimestre deste ano. Ou seja, a tal retomada não teve fôlego sequer para sustentar o mesmo número de empregos formais registrado há um ano.

Numa comparação com o primeiro trimestre de 2020, quando a pandemia iniciou sua trajetória dramática no Brasil, o mercado de trabalho hoje ainda conta 4,432 milhões de empregos a menos, considerando os 92,223 milhões de trabalhadores ocupados nos primeiros três meses do ano passado, numa queda de 4,8%. O total de informais, que era de 36,806 milhões lá atrás, encolheu 3,2%, significando o fechamento de 1,188 milhão de ocupações. Mas, no segmento formal, o corte deixou 3,244 milhões de trabalhadores em colocação, o que correspondeu a uma redução de praticamente 5,9% no número de vagas nesta área, saindo de 55,417 milhões para aqueles 52,173 milhões já mencionados. Os números da PNADC novamente colocam em cheque a recuperação sugerida pelos dados do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged).

Os dados do desemprego têm sido de certa forma camuflados pelo número ainda muito elevado de pessoas fora do mercado, como já anotado neste espaço. A taxa de participação dos trabalhadores na força de trabalho (empregados e desempregados) em relação ao total de pessoas em idade de trabalhar, baixou de 62,1% no segundo trimestre de 2019 para 57,7% no mesmo trimestre deste ano. Mantida a mesma participação de dois anos atrás, a força de trabalho teria subido de 102,24 milhões para pouco mais de 110,0 milhões. Como o total de ocupados atingiu 87,791 milhões no trimestre encerrado em junho deste ano, o número de desempregados subiria quase 54,0%, saindo daqueles 14,444 milhões para 22,219 milhões, com a taxa de desocupação avançando de 14,1% para 20,2%.

E o desmonte da indústria

A queda sofrida pelo PIB no segundo trimestre deste ano não foi um “evento fora da curva”, como gostam de afirmar economistas e quejandos. A pesquisa mensal sobre a produção industrial de julho mostra que as dificuldades para engrenar uma retomada continuam vigorando no começo do terceiro trimestre e sugerem que deverão perdurar por mais tempo do que gostariam o ministro dos mercados e sua equipe econômica. A queda persistente na produção do setor industrial pode refletir ainda problemas nas cadeias de suprimento de insumos e matérias-primas, desorganizadas em função das medidas para tentar conter a pandemia, mas essa parece ser uma parte dos problemas, engrossados pela falta de demanda expressa na estagnação dos gastos das famílias e agravados pela crise hídrica.

Nos primeiros sete meses deste ano, a indústria apresentou números negativos em cinco deles, avançando com certa modéstia em um deles e registrando estabilidade em outro (0,2% em janeiro), acumulando perdas em torno de 5,2% entre dezembro do ano passado e julho deste ano, segundo indicadores dessazonalizados pelo IBGE – quer dizer, com a exclusão de fatores específicos de cada mês do ano (como festas e feriados, por exemplo) para permitir uma comparação adequada e com menores distorções.

Na comparação com o mês imediatamente anterior, a produção sofreu baixa de 1,3% em julho, depois de recuar 0,2% em junho. A indústria de transformação, por sua vez, registrou seis meses de queda e apenas uma alta entre janeiro e julho, ao avançar 1,2% em maio. Para reforçar: houve perdas em todos os demais meses, o que levou o setor de transformação a acumular retração de 7,0% desde dezembro passado, com recuos de 0,7% e de 1,2% em junho e julho respectivamente.

As taxas estrondosamente elevadas anotadas pela pesquisa na comparação entre o ano passado e este ano estão severamente distorcidas pela base de comparação muito achatada. Mesmo neste caso, esse efeito vem se esgotando ao longo dos meses. Esse “fenômeno” torna-se mais nítido quando se observa a série estatística do IBGE. O “melhor” resultado do ano, até aqui, foi capturado em abril pela pesquisa, quando a produção experimentou salto de impressionantes 34,8%. O problema é que a indústria havia encolhido 27,7% em abril do ano passado, comparado a igual mês de 2019. Essa comparação explica em parte o salto observado neste ano.

Na sequência, em maio, a produção cresceu em ritmo ligeiramente menor, saltando 24,1% sobre o mesmo mês de 2020, quando havia despencado 21,9%. O efeito já havia sido menor em junho deste ano, com a produção aumentando 12,0% sobre o sexto mês de 2020 (quando havia sofrido redução de 8,7%). Em julho, finalmente, a elevação bem mais comedida de 1,2% ocorreu sobre uma baixa de 2,7% em igual mês do ano passado. Como se pode observar, as altas mensais têm perdido fôlego na medida em que as perdas em 2020 seguem desacelerando, refletindo a revisão das medidas de distanciamento social adotadas nas primeiras semanas da pandemia. Comportamentos semelhantes podem ser anotados em relação a todos os grandes setores da indústria, abrindo-se exceção para o desempenho muito débil das indústrias de bens duráveis e de produção semi e não duráveis.

A indústria fabricante de bens duráveis havia sofrido perdas de 85,0% e 69,7% em abril e maio do ano passado e cresceu extraordinários 432,4% e 150,8% nos mesmos meses deste ano, sempre em relação a períodos idênticos do ano imediatamente anterior. Em junho deste ano, a produção no setor aumentou 31,4%, mas havia caído 34,8% no mesmo mês de 2020. Em julho passado, o “padrão” foi alterado e, embora a indústria de duráveis tenha sofrido perda de 16,5% em 2020, a produção despencou 10,3%, com tombos de 10,8% para a indústria de automóveis e de 14,4% no setor de eletrodomésticos.

Na indústria de bens de consumo semi e não duráveis, a tendência foi semelhante. O ritmo aqui já vinha desacelerando, saindo de altas de 18,3% e 14,2% abril e maio para uma variação de 2,1% em junho, o que se compara, pela ordem, com reduções de 25,9%, de 19,3% e de 5,0% naqueles mesmos meses de 2020. Os resultados de julho mostram queda de 4,7% em 2020, quase no mesmo nível daquela observada um mês antes, e redução de 1,9% em julho deste ano, influenciada pelos recuos de 5,0% e de 11,4% colhidos pelos setores de abate de suínos e aves e de produção de laticínios.

A indústria de alimentos, que havia se saído melhor na primeira metade do ano passado, aparentemente estaria neste ano sendo mais afetada pelo desemprego persistente e pela perda de renda das famílias, influenciada também pelo encarecimento da alimentação. A produção nesta área vem tropeçando desde setembro do ano passado, acumulando um retrocesso de 13,1% até julho deste ano. Em junho e julho, na comparação com os meses imediatamente anteriores, a produção caiu 2,0% e 1,8%.

Na comparação com 2020, as baixas na produção de alimentos têm se mostrado crescentes, com perdas de 5,4% em maio, de 8,4% em junho e finalmente de 10,3% em julho. Em relação a fevereiro de 2020, o setor apresentou recuo de 7,4% – muito acima da redução observada em média para o conjunto da indústria, que passou a apresentar queda de 2,1% frente ao último mês sem pandemia. Para completar, a indústria de produtos alimentícios demonstra dificuldades até mesmo para retomar os níveis observados em outubro de 2012, quando a produção atingiu seu melhor momento na série estatística do IBGE. Em julho deste ano, os volumes produzidos no setor encontravam-se 15,4% abaixo daqueles processados em outubro daquele ano.

A indústria de bens de capital, que de certa forma sinaliza os rumos do investimento na economia, tem sido destaque desde o final do ano passado, com taxas de dois e até três dígitos – desempenho igualmente explicado, ao menos em parte, pela base de comparação muito achatada. Além disso, mais recentemente, a velocidade de crescimento tem perdido ímpeto, saindo de 124,8% em abril para 33,1% em julho, sempre em relação aos mesmos meses de 2020.

Mês a mês, a comparação tem sido menos lisonjeira para o setor, que tem concentrado seu crescimento nos setores mais relacionados à construção e ao agronegócio. Entre janeiro e julho deste ano, a produção recuou 4,1%, mantendo-se ainda 16,4% acima de fevereiro do ano passado. Neste caso, deve ser levado em conta que os níveis registrados no segundo mês de 2020, anterior à chegada da pandemia por aqui, já estavam 23,1% abaixo da produção realizada na média de 2012. Desde setembro de 2013, quando atingiu seu recorde histórico, a indústria de bens de capital perdeu um quarto de sua produção, num tombo de 25,3%.

Lauro Veiga Filho – Jornalista, foi secretário de redação do Diário Comércio & Indústria, editor de economia da Visão, repórter da Folha de S.Paulo em Brasília, chefiou o escritório da Gazeta Mercantil em Goiânia e colabora com o jornal Valor Econômico.

Este texto não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

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