É assim que radicalizamos o mundo, por Ryan Broderick

Lourdes Nassif
Redatora-chefe no GGN
[email protected]

Miguel Schincariol / AFP / Getty Image

É assim que radicalizamos o mundo

No domingo, o evangélico de extrema direita Jair Bolsonaro foi eleito presidente do Brasil. O momento de ser surpreendido com esse tipo de política acabou. Agora temos que viver com o que fizemos.

por Ryan Broderick

BuzzFeed News Reporter

Reportando a partir de São Paulo

SÃO PAULO, Brasil – Da varanda do escritório do BuzzFeed em São Paulo, agora, você pode ouvir os gritos de “Ele Não” ecoando pelas avenidas sinuosas da cidade. É a mesma frase que eu vi grafitada em toda a cidade este mês. O mesmo que ouvi em restaurantes e bares durante toda a tarde. Significa “não ele” – sendo ele Bolsonaro. Mas a vitória dele hoje à noite não é uma surpresa. Ele é apenas mais um produto das novas forças estranhas que ditam o próprio tecido de nossas vidas.

Faz uma década desde que eu senti que algo estava mudando na forma como interagimos com a Internet. Em 2010, como um jovem estagiário de um site agora extinto chamado Awl, um dos primeiros artigos que eu fiz foi explicar como os trolls do 4chan estavam tentando tirar o agora também extinto website Gawker da Internet através de um ataque distribuído de negação de serviço (DDOS). Era um mundo que eu conhecia. Eu era um rapaz de 19 anos que passava a maior parte do meu tempo fazendo o que hoje reconhecemos como “shitposting”. Era o começo de uma era em que nossas velhas ideias sobre informação, privacidade, política e cultura estavam começando a se deformar.

Eu tenho acompanhado essa evolução sombria da cultura da Internet desde então. Eu tive o privilégio – ou maldição profundamente estranha – de perseguir o crescimento da guerra política global em todo o mundo. Nos últimos quatro anos, estive em 22 países, seis continentes e participei de cerca de uma dezena de plebiscitos e eleições. Eu estava em Londres para cobrir o ataque de nervos do Reino Unido sobre o Brexit, em Barcelona para as tentativas fracassadas da Catalunha de secessão da Espanha, na Suécia, quando uma marcha de neonazistas tentou avançar sobre a maior feira de livros do país. E agora estou no Brasil. Mas esta era de se surpreender com o que a Internet pode e vai fazer conosco está acabando. O dano está feito. Estou tentando assimilar o fato de que provavelmente vou passar o resto da minha carreira cobrindo as consequências.

Em 2010, quando eu lancei a história do 4chan, eu estava sentado em um futon do dormitório, soltando um e-mail para a redação a partir de um laptop quebrado. Mas essa nova escuridão vive quase exclusivamente em nossos smartphones e quase sempre envolve a exploração de algum plataforma de uma empresa norte-americana. Cerca de 70% dos usuários de smartphones têm um telefone Android; os 30% restantes estão na Apple. Existem 2 bilhões de usuários ativos mensais do Facebook, 2 bilhões de usuários ativos mensais do YouTube e 1,5 bilhão de usuários ativos mensais do WhatsApp. E quando se trata de mídia digital, o Facebook e o Google controlam quase 60% do mercado de publicidade digital, com a Amazon num distante terceiro lugar.

A maneira como o mundo está usando seus telefones é quase completamente dominada por algumas empresas do Vale do Silício. O abuso que está acontecendo é devido à sua incapacidade de gerenciar essa responsabilidade. Tudo isso se tornou tão normalizado nos três anos desde que começou a se manifestar, que acabamos de assumir que plataformas como Facebook, YouTube, WhatsApp e Twitter vão exacerbar a instabilidade política e social. Já pressupomos que elas sejam abusados por trolls ultranacionalistas. Sabemos que serão explorados por empresas de dados. Esperamos que elas ajudem a lançar as carreiras de líderes populistas.

Com certeza, o populismo, o nacionalismo e a guerra de informação existiam muito antes da Internet. O arco da história nem sempre se inclina em direção ao que eu considero o progresso. As sociedades regridem. A diferença agora é que tudo isso está sendo hospedado quase inteiramente por um punhado de corporações. Por que uma empresa norte-americana como o Facebook colocaria anúncios em jornais em países como Índia, Itália, México e Brasil, explicando aos usuários locais da Internet como se resguardar contra abuso e desinformação? Porque nossas vidas, sociedades e governos foram amarrados a ciclos de feedback invisíveis, on-line e off-line. E não há um caminho claro para nos desvencilharmos deles.

A pior parte de tudo isso é que, em retrospecto, como chegamos aqui não é nenhum grande segredo.

É 2013 e um anúncio aparece em redes sociais da Rússia: “Procura-se operadores de Internet! Trabalho em escritório chique em Olgino!!!, salário 25.960 rublos por mês. Tarefa: postar comentários em sites de perfil na Internet, escrevendo posts temáticos, blogs, redes sociais. Relatórios via captura de tela.” As pessoas que respondem ao anúncio são colocadas em um porão em São Petersburgo e se tornam a primeira iteração da agora infame Agência de Pesquisa pela Internet da Rússia – ou exército de trolls.

Em 2014, o nacionalista hindu, Narendra Modi, e o partido de direita, Bharatiya Janata, arrasaram nas eleições gerais na Índia. A eleição é vista como a primeira eleição Facebook do país. Modi se torna o segundo político mais curtido no Facebook, atrás do presidente Obama. A mesma onda de nacionalismo hindu com que Modi subiu ao poder começa a inspirar o “vigilantismo de vacas” e linchamentos na Índia rural.

Um mês depois, as ruas de Mandalay, Myanmar, estão se enchendo de pessoas. Uma multidão está se formando em torno de uma loja de chá cujo dono e muçulmano. Um post no Facebook que acusava o dono da loja de estuprar uma funcionária budista era compartilhado por um monge ultranacionalista chamado Wirathu. Revoltosos começam a incendiar carros e destruir lojas e, por fim, o gabinete do presidente precisa bloquear o acesso ao Facebook para frear a violência.

É 2015 e 270.000 usuários do Facebook estão permitindo que um aplicativo de terceiros no Facebook chamado “This Is Your Digital Life” acesse não apenas seus dados, mas os dados de seus amigos, também – cerca de 87 milhões de usuários. Os dados são coletados e analisados pela empresa de dados britânica Cambridge Analytica e usados para um processo chamado “microssegmentação comportamental”.

Em maio de 2016, o candidato da extrema direita, Rodrigo Duterte, acaba de se tornar presidente das Filipinas. O papel do Facebook na eleição é inegável. Dois meses antes, a empresa declarou o ex-prefeito “o rei indiscutível das conversas no Facebook”. Um elenco de celebridades da Internet, de extrema direita, começa a criar uma rede de propaganda ad hoc em torno dele.

Um mês depois, numa daquelas raras manhãs ensolaradas do começo do verão em Londres, a calma na cidade me deixa nervoso. Na noite anterior, 52% do Reino Unido votaram pela sua saída da União Europeia. Acabaríamos finalmente ouvindo alegações de que um grupo de campanhas pró-Brexit chamado Leave.EU (Deixa.UE) vinha, há meses, usando os métodos de microssegmentação da Cambridge Analytica. Bots e trolls ligados à Agência de Pesquisa na Internet da Rússia tinham passado as últimas 48 horas postando mais de 45.000 tweets sobre o Brexit em uma tentativa de dividir eleitores.

É janeiro de 2017 e Donald Trump acaba de se tornar o 45º presidente dos Estados Unidos. Em sua posse, Trump promete que “essa carnificina americana para aqui e para agora”. O Escritório do Diretor de Inteligência Nacional concluirá que o presidente russo Vladimir Putin ordenou uma campanha de inteligência para “solapar a fé pública no processo democrático dos EUA”.

Em abril de 2017, a política de extrema-direita Marine Le Pen passa para o segundo turno das eleições presidenciais francesas. Seu oponente, Emmanuel Macron, foi alvo de um ataque de hackers “massivo e coordenado” alguns minutos antes do blecaute de mídia que precede a votação. Estou em Paris enquanto suas ruas estão tomadas por enormes nuvens de gás lacrimogêneo. Os manifestantes usando toucas ninja entoam “O mundo inteiro odeia a polícia” e arrancam postes da calçada. Um carrinho de compras repleto de coquetéis Molotov surge da multidão de antifascistas e se choca com a linha da polícia antimotim. Uma das pernas da minha calça pega fogo brevemente depois de eu ser atingido por um sinalizador.

Um mês depois, um grupo de YouTubers de extrema-direita é detido pela polícia italiana depois de transmitir ao vivo no Periscope a partir do Mar Mediterrâneo, onde estavam atirando sinalizadores contra um navio de resgate de refugiados chamado Aquarius. Estavam usando comunidades de extrema-direita no Reddit e 4chan para fazer crowdfunding desse ato descabido, empurrando uma teoria conspiratória de que organizações não-governamentais como os Médicos Sem Fronteiras, na verdade, não estão salvando refugiados no mar, mas sim fazem parte de uma operação ilegal de tráfico de pessoas. Quando chego em Catania, na Itália, para entrevistá-los, um dos YouTubers, Lauren Southern, me envia uma mensagem. Ela diz que já deixaram a cidade. “Há um risco de segurança e a mídia causou isto e eles podem – sério – levar um grupo de jovens de 20 anos a serem mortos”, escreve ela.

Em agosto, a manifestação “Unite the Right”, organizada por nacionalistas brancos no aplicativo de chat Discord, Reddit e 4chan, abre caminho em Charlottesville, Virgínia. Um supremacista branco, chamado James Alex Fields Jr., que participa do comício, dirige cerca de um quilômetro, jogando o carro contra uma multidão de manifestantes contrários, matando uma ativista chamada Heather Heyer.

Um mês depois, a Alternativa para a Alemanha (AFD) fica em terceiro lugar na eleição geral, tornando-se o primeiro partido de extrema-direita, em meio século, a entrar no parlamento alemão. Nas últimas horas da eleição, um botnet russo começa a impulsionar propaganda de extrema-direita no Twitter. A AFD também estava trabalhando em estreita colaboração com uma empresa de mídia digital ligada às campanhas Trump e Le Pen. Sinto gotas de chuva pingar em meu rosto enquanto a polícia de choque trava seus escudos, criando uma barreira entre 1.000 manifestantes antifascistas em frente ao terraço do Clube de Trânsito de Berlim, na Alexanderplatz, e membros da AFD na varanda acima. Eu assisto aos membros do AFD mastigarem charutos, tilintarem seus copos de coquetel e gritarem insultos anti-gay para a multidão abaixo.

Alguns dias depois, Julian Assange faz uma videoconferência com estudantes catalães do lado de fora da Universidade de Barcelona. Ele os ensina a usar aplicativos como o WhatsApp e o Telegram. Eles usarão esses aplicativos para realizar um referendo ilegal sobre a independência catalã. A polícia federal espanhola atacará os votantes. Nos dias que se seguem à votação, os manifestantes de extrema direita anti-independência irão gritar Sieg Heil e entoar hinos fascistas enquanto marcham sobre a cidade. Eu vou percorrer as ruelas da cidade velha de Barcelona, tentando ficar à frente da multidão que está se formando no Arc de Triomf. Estarei pendurado num poste quando o presidente catalão, Carles Puigdemont, anuncia a uma multidão de milhares de independentistas que não haverá secessão imediata da Espanha. Políticos catalães serão presos. Puigdemont fugirá para a Bélgica.

É novembro de 2017 e as ruas de Varsóvia se enchem de foguetes vermelhos, bandeiras polonesas e faixas antissemitas. Uma semana depois, estou no frio congelante em uma colina banhada pela luz vermelha do mesmo tipo de foguetes em uma pequena cidade chamada Częstochowa, enquanto hooligans de futebol têm seus clubes locais abençoados por um padre. Avançam de braços dados com nacionalistas brancos e neonazistas, bebendo garrafas de uísque, cantando mais canções racistas. Algumas semanas depois, o Senado polonês aprovará uma proposta que tornaria ilegal reconhecer o papel da Polônia no Holocausto.

É fevereiro de 2018 e estou usando duas camadas de roupa íntima térmica, correndo pelas colinas de Pyeongchang, na Coreia do Sul. Estou tentando contornar o enorme congestionamento que leva ao Estádio Olímpico. O sol está se pondo quando a cerimônia de abertura começa. Nacionalistas sul-coreanos queimam fotos de Kim Jong Un e lutam com policiais. Uma mulher fica em cima de um pequeno palco improvisado e bate um tambor enquanto a multidão grita acompanhando o tambor. Um dos manifestantes me pede para noticiar que a Coreia do Sul precisa de Donald Trump para bombardear a Coreia do Norte. Eles levantam bandeiras americanas e fotos do rosto de Trump e me agradecem por tê-lo eleito.

É março de 2018 e está nevando massas de gelo lamacento em uma biblioteca antifascista que foi recentemente bombardeada. Vejo voluntários varrerem o que resta da sala. Eles me dizem que estão com medo de que isso seja apenas o começo da violência política que ainda está por vir. Estão certos. Poucos dias depois, o movimento antissistema Cinco Estrelas, liderado por Luigi Di Maio, ganha o maior número de assentos nas eleições gerais italianas. On-line, um enorme botnet de extrema direita está em pleno andamento. O Movimento Cinco Estrelas vai formar uma coalizão com o partido de direita de Matteo Salvini. Salvini, encorajado pela onda populista de apoio, vai passar o verão bloqueando os navios de resgate de refugiados.

É em junho de 2018 e um influente britânico de extrema direita, chamado Tommy Robinson, é preso após transmitir no Facebook do lado de fora do Leeds Crown Court, em desacato ao tribunal britânico. Centenas de seus apoiadores se reunem em Whitehall para apoiar a visita do presidente Trump ao Reino Unido e protestar contra a prisão de Robinson, estimulados pela cobertura ofegante de um canal canadense de extrema-direita chamado Rebelde. Os fãs de Robinson lutam contra a polícia, invadem o pub Cruz de Prata e gritam insultos racistas contra os centenas de manifestantes anti-Trump que os cercam. Exigem que Robinson seja libertado. Um deles pergunta por que a mídia não os está cobrindo. Digo a ele que estou com a mídia e os estou cobrindo e ele diz que se referia à BBC e me chama de fake news.

Um mês depois, estou em pé em cima de um banco em uma calçada mexicana, tentando ver por cima do fluxo de partidários do populista de esquerda, Andrés Manuel López Obrador (AMLO), que corre pelas ruas do lado de fora do Hotel Hilton na Cidade do México. No seu interior, López Obrador diz: “A transformação que vamos realizar consistirá basicamente em expulsar a corrupção do nosso país.” Online, milhares de bots estão impulsionando tópicos populares pró-AMLO no Twitter e inundando o Facebook News Feeds com notícias falsas sobre o novo presidente.

E agora, essa semana, Bolsonaro venceu as eleições presidenciais brasileiras usando uma mistura de evangelismo, nacionalismo e pose de homem forte tóxica e perfeitamente otimizada para as redes sociais para criar um culto à personalidade que ameaça mandar o país de volta para uma ditadura militar. Parece que ele decidiu usar o WhatsApp como sua ferramenta preferida de propaganda on-line. Nos últimos dias antes do segundo turno, foi revelado que empresas de marketing brasileiras têm usado o WhatsApp para inundar os celulares dos eleitores com propaganda contra a esquerda. Então ele anunciou em um vídeo no Facebook, vários dias depois, que se ele se tornar presidente, pretende mudar uma regra criada pelo WhatsApp que limita o número de mensagens que o usuário pode enviar simultaneamente.

Mas realmente não importa em que país você esteja. A dança é a mesma em todos os lugares para onde você vai.

É provável, a essa altura, que o seu país tenha alguns, senão todos, dos seguintes. Primeiro, provavelmente tem algum tipo de problema local com trolls na Internet, como o MAGAsphere nos EUA, o Netto-uyoku no Japão, o Fujitrolls no Peru ou os AK-trolls na Turquia. Seus trolls devem ter sido radicalizados online através de algum tipo de comunidade para rapazes, como Gamergate, Jeuxvideo.com (“videogames.com”) na França, ForoCoches (“Cars Forum”) na Espanha, Ilbe Storehouse na Coréia do Sul, 2chan in Japão, ou páginas banter no Facebook no Reino Unido.

Influenciadores de extrema-direita começam a aparecer, auxiliados por algoritmos que recomendam conteúdo que captura o usuário online por mais tempo. Eles usarão o Facebook, o Twitter e o YouTube para transmitir e amplificar o conteúdo e organizar campanhas de assédio e intimidação. Se esses influenciadores se tornarem sofisticados o suficiente, tentarão organizar protestos ou manifestações. Os minicongressos de HQ fascistas que eles organizam serão transmitidos ao vivo e funcionarão como um jogo de realidade aumentada para as pessoas que assistem em casa. Violência e doxxing os seguirão.

Alguns desses trolls e influenciadores criarão grupos de extrema-direita mais sofisticados dentro do movimento maior, como os Proud Boys, a Generation Identity ou o Movimento Brasil Livre. Ou alguns ressuscitarão instituições de extrema-direita ou nacionalistas mais antigas, como o Nordic Resistance Movement, Football Lads Alliance, United Patriots Front ou PEGIDA.

Enquanto uma comunidade de extrema direita esteja sendo construída em seu país, um ataque massivo de notícias falsas geralmente inunda as redes sociais. Pode ser uma cultura de desinformação baseada em rumores, como as fraudes localizadas que circulam em países como Índia, Mianmar ou Brasil. Ou pode ser a mais tradicional “propaganda falsa” ou propaganda hiper-partidarizada que vemos em países predominantemente de língua inglesa como os EUA, Austrália ou o Reino Unido.

Tipicamente, grandes canais de notícias de direita ou tabloides conservadores vão tomar essas histórias que estão viralizando no Facebook, e reapresentá-lás para públicos mais idosos e tradicionais. Dependendo do cenário de mídia do seu país, os trolls e os influenciadores de extrema direita podem tentar sequestrar esse pipeline de mídia social para jornal impresso de deste para a televisão – o que então cria mais conteúdo para captura de tela, meme e compartilhamento. É um ciclo de feedback.

Os líderes populistas e as legiões de influenciadores sabem que podem criar filtros bolha dentro de plataformas como Facebook ou YouTube, que prometem um tempo mais seguro, que nunca existiu antes dos protestos, da violência, as crises em cascata e intermináveis ciclos de notícias. Donald Trump quer tornar Américan grande novamente; no Brasil, Bolsonaro quer trazer de volta a ditadura militar; Shinzo Abe quer recapturar o passado imperial do Japão; a AFD da Alemanha teve o melhor desempenho com os eleitores mais idosos da Alemanha Oriental que ansiavam pelos dias de autoritarismo. Todos esses líderes prometem fechar as fronteiras, para tornar as coisas seguras. O que, é claro, exacerbará os problemas que eles prometem fazer desaparecer. Outro loop de feedback.

Em agosto, Alex Stamos, ex-diretor de segurança do Facebook, publicou um artigo dizendo que já era tarde demais para o Facebook proteger as eleições de 2018 dos EUA das campanhas de desinformação da Rússia e do Irã. Talvez possamos consertá-lo até 2020. Há também uma chance, para os países mais desenvolvidos ou para os cidadãos mais ricos, de que as coisas se estabilizem.

Na maioria dos países, o acesso às publicações confiáveis é pago. Mais serviços como o Amazon Prime e o Netflix estão bloqueando o acesso ao entretenimento premium por meio de assinaturas. O que significa que tudo isso – os trolls, os abusos, as notícias falsas, os vídeos de conspiração, os vazamentos de dados, a propaganda – acabará por deixar de ser um problema para as pessoas que podem pagar.

O que provavelmente deixará os pobres, os idosos e os jovens caírem num abismo de informação de segunda categoria. Isso já está acontecendo. Um estudo publicado este mês no Reino Unido descobriu que os leitores britânicos mais pobres recebem menos notícias e de pior qualidade do que os leitores mais ricos. E de acordo com um novo estudo do Pew Research Center, apenas 17% das pessoas com mais de 65 anos foram capazes de distinguir entre fatos e opiniões. As comunidades de bem-estar para adolescentes no Instagram já estão se transformando, estilo Infowars, em mini impérios de poções mágicas.

Há desertos de informações onde pessoas comuns recebem memes, artigos de notícias fragmentadas e vídeos do YouTube entregues por algoritmos sem supervisão editorial ou regulamentação. Este mês, os verificadores de fatos no Brasil reclamaram, antes da eleição, que a maioria dos eleitores confia mais no que seus amigos e familiares enviam pelo WhatsApp do que veem na TV ou nos jornais.

Mas esse tipo de pilhagem otimista americano em nome do progresso tecnológico não é particularmente novo, especialmente para um país como o Brasil. Há uma cidade no norte do país chamada Fordlândia. Foi construído na década de 1920 por Henry Ford. A Ford estava tentando descobrir uma maneira de contornar o monopólio inglês da borracha. Ele fez um acordo com o estado brasileiro do Pará por 2,5 milhões de acres. O Pará receberia 9% de seus lucros e todas as exportações da Ford estariam isentas de impostos.

Os jornais locais ficaram extremamente animados com a chegada da Ford. A empresa Ford prometeu salários justos. Os trabalhadores começaram a migrar de todo o país para trabalhar e morar em Fordlândia.

O projeto todo foi um desastre imediato em quase todos os aspectos imagináveis. A Ford construiu a Fordlândia para se parecer com uma cidade americana e alimentou seus empregados com comida americana, que os novos funcionários brasileiros odiavam. Os administradores da cidade tentaram banir álcool, mulheres, tabaco e futebol. Trabalhadores começaram a trazer contrabando para a cidade. Então os trabalhadores começaram a contrair febre amarela e malária. Os gerentes da Ford não tinham ideia de como cultivar seringueiras em climas tropicais. A maioria de suas árvores acabou morrendo de praga ou foi devastada por parasitas.

Na década de 1930, os trabalhadores começaram a se revoltar. Os gerentes foram perseguidos na selva. Os militares brasileiros acabaram tendo que intervir. A cidade foi finalmente abandonada em 1934. A empresa Ford acabou aprendendo como fazer borracha sintética e percebeu que não precisava de borracha brasileira. A cidade ficou em ruínas até 2017, quando um município próximo decidiu tentar transformá-la numa cidade funcional.

As Fordlândias de mídia social que estão acontecendo neste momento em todo o mundo provavelmente não durarão. Os danos que causam provavelmente durarão. As democracias que elas desestabilizam, as pessoas que radicalizam e a violência que inspiram provavelmente deixarão sequelas duradouras. No entanto, esperamos que não levemos cem anos para tentar de fato reconstruir sociedades funcionais depois que as grandes empresas forem embora.

Atualizado em 29 de outubro de 2018, às 7:02 horas ET Postado em 28 de outubro de 2018, às 18h35. ET

Lourdes Nassif

Redatora-chefe no GGN

0 Comentário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você pode fazer o Jornal GGN ser cada vez melhor.

Apoie e faça parte desta caminhada para que ele se torne um veículo cada vez mais respeitado e forte.

Seja um apoiador