A decadência da democracia no Brasil, por Rômulo de Andrade Moreira

No ano passado, e pela quinta vez consecutiva, o número de países rumo ao autoritarismo foi maior que o de estados em fase de democratização, situação nunca vista desde o início das pesquisas da Internacional Ideal, nos anos 1970.

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A decadência da democracia no Brasil

Rômulo de Andrade Moreira[1]

“Na psicodinâmica do ´caráter autoritário`, parte da agressividade precedente é absorvida e transformada em masoquismo, enquanto outra parte é deixada ao sadismo, que busca uma saída em direção àqueles com quem o sujeito não se identifica: em última instância, o outgroup.”[2]

Foi publicado ontem, 22, o relatório anual do Instituto Internacional para a Democracia e a Assistência Eleitoral (International Idea), com sede em Estocolmo, trazendo como “novidade” este ano o aparecimento dos Estados Unidos, pela primeira vez, como uma “democracia em retrocesso”, fato motivado, particularmente, pela “deterioração do sistema político durante a segunda metade do mandato de Donald Trump.”

Para Alexander Hudson, um dos coautores do estudo, apesar de serem ainda “uma democracia de alto nível”, houve nos Estados Unidos um visível retrocesso democrático, especialmente em razão da queda dos indicadores em matéria de “liberdades civis e de controle do governo.”[3]

O estudo cita expressamente os questionamentos, sem nenhuma base, de Donald Trump à higidez da eleição presidencial de novembro de 2020, além da redução do controle político – especialmente pelo Senado, de maioria republicana –, o que impedia qualquer investigação mais séria sobre as ações do presidente entre os anos de 2018 e 2020.

A propósito, Levittsky e Ziblatt já observavam que Donald Trump preservava “o apoio de sua base e, como outros demagogos eleitos, dobrou a aposta, declarando que sua administração estava sendo acossada por forças poderosas, e dizendo a formandos da Academia da Guarda-Costeira dos Estados Unidos que ´nenhum político na história, e digo isso com muita segurança, foi mais maltratado nem mais injustiçado do que eu`.”

Conforme analisam os autores, em obra de referência sobre a derrocada das democracias contemporâneas, o ex-presidente norte-americano “exibiu claros instintos autoritários durante o seu primeiro ano de mandato”, utilizando-se três estratégias, a saber: a) Capturar o árbitro, afinal, “para autoritários potenciais, as instituições judiciárias e policiais representam tanto um desafio quanto uma oportunidade”; b) Tirar da partida pelo menos algumas das estrelas do time adversário, e c) Reescrever as regras do jogo em seu benefício, invertendo o mando de campo e virando a situação de jogo contra seus oponentes.[4]

No ano passado, e pela quinta vez consecutiva, o número de países rumo ao autoritarismo foi maior que o de estados em fase de democratização, situação nunca vista desde o início das pesquisas da Internacional Ideal, nos anos 1970.

A pesquisa ainda apontou para a existência de apenas 98 democracias, o mais baixo índice em vários anos, além de 20 regimes híbridos, como Rússia, Marrocos e Turquia, e 47 regimes autoritários, como China, Arábia Saudita, Etiópia e Irã.

Conforme afirmou o secretário-geral da International Idea, Kevin Casas-Zamora, apesar dos Estados Unidos terem sido assim classificados pela primeira vez – como uma democracia em retrocesso -, o certo é que “os dados sugerem que o episódio de deterioração começou em 2019, pelo menos, tendência crescente ao serem questionados os resultados eleitorais, com os esforços para suprimir a participação em eleições e com a polarização galopante, uma das evoluções mais preocupantes para a democracia em escala mundial.”

Ainda segundo Casas-Zamora, “somando-se as democracias em retrocesso e os regimes híbridos e autoritários, chega-se a 70% da população mundial, e isso mostra que algo grave ocorre no que se refere à qualidade democrática.” Para ele, “a pandemia claramente acelerou algumas tendências negativas, especialmente nos países onde a democracia e o Estado de direito já sofriam antes.[5]

Aliás, tais conclusões, de certa maneira, já eram prognosticados no relatório anterior (2020), segundo o qual “mais de seis em cada dez países aplicaram medidas problemáticas para os direitos humanos, e o respeito às regras democráticas nas ações contra a Covid-19, ações ilegais, desproporcionais, sem limite de tempo ou supérfluas”.

Ainda segundo o informe, “mais de um quarto da população mundial vive agora em democracias em retrocesso, sendo que cerca de 70% estão sob regimes autoritários ou ´híbridos`, com tendência à degradação democrática.”

O Brasil, que já fazia parte da categoria desde 2016, foi apontado agora como o país que registrou o “maior declínio democrático” ao longo do ano passado, dentre todos os 150 países avaliados, confirmando-se a visível e notável decadência da democracia brasileira, mostrando-se como diretamente responsável pelo débâcle o atual presidente brasileiro.

Segundo consta do relatório, “a gestão da pandemia foi tomada por escândalos de corrupção e protestos, enquanto o presidente Jair Bolsonaro menosprezava a crise sanitária e testava abertamente as instituições democráticas, acusando magistrados do Tribunal Superior Eleitoral de preparar fraudes para as eleições de 2022, atacando a mídia e declarando que não obedeceria as regras do Supremo Tribunal Federal, que o estava investigando por divulgação de fake news em relação ao sistema eleitoral do país.”[6]

Portanto, e para concluir, com Agamben, é preciso atenção, pois “o estado de exceção tende cada vez mais a se apresentar como o paradigma de governo dominante na política contemporânea e esse deslocamento de uma medida provisória e excepcional para uma técnica de governo, ameaça transformar radicalmente – e, de fato, já transformou de modo muito perceptível – a estrutura e o sentido da distinção tradicional entre os diversos tipos de constituição.”[7]


[1] Rômulo de Andrade Moreira, Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia e Professor de Direito Processual Penal da Universidade Salvador – UNIFACS. Pós-graduado pela Universidade de Salamanca.

[2] ADORNO, Theodor. Estudos sobre a personalidade autoritária. São Paulo: UNESP, 2019, p. 544 e 545.

[3] Disponível em: https://www.afp.com/pt. Acesso em 22 de novembro de 2021.

[4] LEVITTSKY, Steven e Daniel ZIBLATT. Como as democracias morrem. Rio de Janeiro: Zahar, 2018, pp. 81, 169 e 170.

[5] Disponível em: https://www.idea.int/. Acesso em 22 de novembro de 2021.

[6] Disponível em: https://www.idea.int/gsod/. Acesso em 22 de novembro de 2021. Segundo a pesquisa, estão na lista das “democracias em retrocesso”, a Índia, Filipinas, Polônia, Hungria e Eslovênia.

[7] AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo Editorial, 2014, p. 13.

Redação

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  1. A tática de tomada de poder pela extrema direita em diversos países, parece ser muito parecida: intenso bombardeio psicológico de notícias falsas sobre os eleitores.

    A maioria dessas notícias é facilmente comprovada como falsa, mas o efeito sobre parcelas significativas do eleitorado pode provocar marés inesperadas na virada da opinião pública, ainda que a falsidade das notícias venha a ser posteriormente comprovada.

    Isso não parece ser obra de amadores.

    A possibilidade de estar sendo gestado em laboratório é grande. Somos todos cobaias.

    Muita atenção em Steve Bannon e companhia.

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