A semente do Totalitarismo, por Luiz Claudio Tonchis

A semente do Totalitarismo

por Luiz Claudio Tonchis

A vida em sociedade e as consequentes relações interpessoais implicam na formulação de regras de conduta que disciplinem a interação entre as pessoas. As imperfeições da condição humana, o cardápio de defeitos da personalidade, de cunho moral ou “maldade”, são obstáculos para a boa convivência, exigindo, evidentemente a formulação de regras básicas de conduta que disciplinem o comportamento das pessoas. Tais regras, chamadas normas morais, traduzem-se implicitamente e explicitamente naquilo que a sociedade estabelece como aceitável ou inaceitável, certo ou errado, o que pode ou o que não pode, o que deve e o que não deve ser feito, o proibido e o permitido. Essas regras, geralmente, são transformadas em leis e, obviamente, tornam passíveis de punição aqueles que as transgridem.

No entanto, as normas morais ou sociais nem sempre serviram para disciplinar as boas relações entre os seres, visando ao Bem coletivo, pois durante toda a História da humanidade foram permeadas de ideologias e serviram para justificar os instrumentos de dominação e a manutenção do poder através do controle da população. De acordo com Michel Foucault (1926-1984), não há poder sem mecanismos ideológicos. O controle é exercido através de instituições presentes no cotidiano do cidadão, e que vão moldando o caráter e conduta do indivíduo ao longo de sua vida. Instituições como a Família, a Religião, a Escola, o Exército, o Governo, o Trabalho e até mesmo a Moral, exercem o que o autor chama de “Poder Disciplinar” que, por sua vez, fabrica a identidade do ser humano, domesticando-o, moldando sua forma de pensar e agir.

Para Foucault, o que define a Moral não é essa prescrição obscura de regras transmitidas de maneira difusa. Com certa reserva, esse conjunto prescritivo pode ser chamado de “Código Moral”. Porém, por “Moral” entende-se o comportamento real das pessoas em relação a essas regras e os valores que são realmente incorporados em suas vidas: designa, assim, como as pessoas se comportam diante dos “Códigos Morais” e como agem – a conduta em si, o modo de ser. Além disso, como representa como se manifestam em relação às ideologias no sentido de obediência, resistência ou outra reação.

Tanto a Moral como a Ética estão interligadas e ambas são inseparáveis da vida social. Ambas tanto emergem das relações sociais como são aperfeiçoadas em sociedade. Por outro lado, o ser humano não é mero produto da sociedade, apesar de ser imensa a influência que o meio social exerce sobre ele. Em todo ser humano existe um núcleo de sua personalidade que é autônomo, livre e irredutível. Temos que reconhecer que os ditames da consciência apresentam certas variações resultantes do jeito de ser de cada um. E essa forma de ser é o que caracteriza a Estética do caráter, a sua beleza interior.

Como a moral particular é aprendida, absorvida e executada pelo indivíduo? Evidentemente pelos diversos contextos da “vida educativa”, “a soma de tudo”. Estas maneiras devem ser entendidas como um conjunto de práticas refletidas e voluntárias através das quais as pessoas fixam as regras de conduta, procurando igualmente, como disse Foucault: “se transformar, modificar-se em seu ser singular e fazer da sua vida uma obra que seja portadora de certos valores estéticos e responda a certos critérios de estilo”.

As reações aos códigos morais (ideológicos) são responsáveis pelas mudanças históricas. A mutabilidade no campo da Moral e da Ética advém dessa resistência que passa a construir aquilo que na prática é melhor para o ser humano, seja no campo individual, ou seja no campo social. Ela se apresenta de forma decisiva nas conquista sociais e na construção do Estado democrático de direito, entre tantas outras conquistas importantes.

No Brasil, nos últimos tempos emergiu um “movimento” que está na contramão dos movimentos com ideais humanitários e que ameaça incisivamente a Moral e a nossa Democracia. O ranço, o ressentimento e o ódio são ingredientes que conduzem a essas ideologias de retrocesso. Digo da reação a um “mal” que tem como proposta um “mal” maior. Por exemplo, aqueles que se revelam indignados contra a corrupção passam a defender modelos de governos totalitários, como por exemplo o de regime militar e faz dos líderes extremistas seus ídolos preferidos. Neste contexto, surgem movimentos explícitos que alinham e fortalecem esses movimentos (pró-ditadura) a exemplo do frenesi da “Escola Sem Partido” que pretendem implantar a “neutralidade” do ensino no país.

Esses movimentos estúpidos, do “mal”, historicamente surgem em momentos de crise. A Alemanha nazista de Adolf Hitler e a União Soviética de Joseph Stalin são os modelos clássicos de totalitarismo, segundo Hannah Arendt, nos quais estão claros os elementos constitutivos e as condições sociais e tecnológicas para seu surgimento. No Brasil, essa estupidez surge em virtude da corrupção generalizada que envolve a maioria expressiva dos políticos, a crise econômica e a derrota sucessiva da oposição que levou a uma bipolarização política.

Existem várias formas do sujeito reagir frente ao que está moralmente errado, e isso depende de cada um:  a pessoa pode ser simplesmente passiva, ignorar a realidade, ser pessimista ou conscientemente lutar contra o que considera errado, mas também existe o comportamento estúpido que sabe somente ameaçar aquilo que construímos às custas de muito sacrifício. A ação do indivíduo molda a moral individual, que ganha força no campo social, seja para o Bem comum, seja para o mal.

Tanto a Moral quanto a Ética são referências da ação humana no mundo e, por isso, jamais pode ser dispensadas. A Moral representa as normas sociais nas suas mais diferentes configurações, e sendo “normativa”, sua palavra de ordem é “cumpra-se”. Já a Ética é a reflexão sobre a melhor forma de agir, inclusive sobre os Códigos Morais e o comportamento moral real, portanto sua palavra de ordem é “pense”. Mas, cegos de ódio, cidadãos comuns tornam-se incapazes de pensar.

É neste contexto que o ódio e a falta de reflexão fazem surgir uma modalidade de delinquente: o criminoso em potencial.  O autoritarismo, em suas diversas formas, ganha voz, é potencializado e multiplicado pelas redes sociais com um tempero fascista e ameaça aquilo que a resistência sadia construiu ao longo da História. Aliás, essa é a semente do totalitarismo: a impossibilidade de pensar, o despreparo, o ressentimento contra o pensamento e, por fim, o ódio contra aquele que pensa.

Ao discutir sobre os valores morais e a própria Ética é conveniente não perder de vista a sua mutabilidade. Muitas conquistas humanas foram obtidas desrespeitando princípios e ordens que antes eram consideradas como corretas, eternas. Para exemplificar, basta observar a luta dos direitos de igualdade entre homens e mulheres, baseadas em prescrições discriminatórias e exclusivistas que serviram de instrumento de consolidação da desigualdade e assimetria na relação entre homens e mulheres, pois as sociedades mantinham a mulher em um patamar de inferioridade e submissão em relação ao homem. O que era rebeldia e imoralidade, hoje está, de certa forma, consolidado, apesar de ainda termos muito em que avançar.

As resistências e as práticas conscientes de si se fazem sempre em ruptura com os poderes atuais. Resistimos e exercitamos a nós mesmos sempre em relação aos poderes e aos saberes do nosso tempo. Essa prática passa pelo conhecimento, sobretudo pela História, e não permite retrocesso. Pensar a moral e praticá-la num sentido ético significa a construção de uma sociedade mais livre, igualitária, enfim, uma sociedade melhor em todos os sentidos.

 

Luiz Claudio Tonchis é Professor e Gestor Escolar, bacharel e licenciado em Filosofia, com pós-graduação em Ética pela UNESP e em Gestão Escolar pela UNIARARAS e pela Universidade Federal Fluminense (MBA). Escreve regularmente para blogs, jornais e revistas, contribuindo com artigos em que discute questões ligadas à Política, Educação e Filosofia.

Contato: [email protected]

 

Referências:

Foucault, M., História da Sexualidade I, A Vontade de Saber. Rio de Janeiro, Ed. Graal, 1979.

Foucault, M., História da Sexualidade II, O Uso dos Prazeres. Rio de Janeiro, Ed. Graal, 1984.

Foucault, M., História da Sexualidade III, O Cuidado de Si. Rio de Janeiro, Ed. Graal, 1985.

Redação

1 Comentário

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  1. Esta história de escola sem

    Esta história de escola sem partido ou educação neutra é velha como o totalitarismo. Aqui, durante a ditadura militar não se usava a expressão escola sem partido, mas outras do mesmo matiz: educação neutra, sem contaminação ideológica etc Todo pensamento único se impõe pelo silenciamento dos diferentes, diversos ou antagônicos. No golpe militar, os mais idosos, como eu, lembram perfeitamente das fogueiras na rua com os livros de filosofia e mais das bibliotecas, quem fez graduação naquela época lembra perfeitamente que estudou em apostilas porque livros eram coisas meio raras ou objeto de contrabando. No entanto, inventou-se uma disciplina para os escolares chamada Moral e Cívica, engembrada a partir do pensamento raso da Escola Superior de Guerra. Portanto foi uma época de escolaridade extremamente politizada, apenas em torno do pensamento vigente durante o golpe militar.

    Por sinal nada é novidade, é a repetição das mesmas tecnologias políticas sem o uso das tecnologias físicas que hoje dominam o que é chamado de comunicação em sites e redes sociais, Inclusive a mentalidade escravagista/escrava continua a mesma da parte de dominantes e dominados. Por isso é tão fácil prever o futuro.

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