Crédito, o lado escuro da lua, por Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva

É o setor privado precisando de recursos para se manter funcionando, o Estado precisando liberar recursos para investimento público e o mercado financeiro dando as cartas.

Crédito, o lado escuro da lua

por Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva

Contam-se nos dedos, mesmo entre economistas, as pessoas que conhecem todo o significado de capital. Para entender bem, imaginemos que, em uma dada sociedade, um indivíduo plante alfaces. Provavelmente, ele vai colher muito mais do que precisa para sobreviver. Então, ele troca o excedente com seus vizinhos, tal que suas necessidades sejam satisfeitas.

Entre as trocas, vem junto um arado. Com ele, o camarada vai produzir muito mais alfaces, que trocará com seus vizinhos. Entre as trocas, vem um cavalo que puxa o arado com muito mais força que o homem, aumentando a área plantada, consequentemente, aumentando muito a produção. O cavalo aprende a fazer o serviço e não precisa de alguém guiando o tempo todo. Por causa disso, o homem pode trocar alfaces por outro arado, que ele mesmo puxará. No ano seguinte, ele consegue um segundo cavalo; no período seguinte, ele põe uma pessoa para cuidar dos dois animais e dos dois arados, enquanto ele mesmo vai fazer outra coisa. Nesse momento, estabeleceu-se o capitalismo.

Dessa simplificação, depreende-se que o capital é o trabalho cristalizado, ou seja, é a capacidade de o ser humano valer-se do trabalho anterior, ou de outra pessoa, para ampliar sua produção futura, seja com o mesmo esforço, seja com esforço menor. Um cavalo, um arado, uma roçadeira e um trator são exemplos de bens de capital. Só que o trabalho também se pode cristalizar como tempo ou dinheiro.

Como tempo é quando o produtor consegue prazo para pagar seus fornecedores, ou ainda, concede prazo a seus clientes. Todo o bom administrador financeiro calcula o prazo médio com que paga seus fornecedores e a média ponderada por valor com que recebe de seus clientes. Se o prazo médio de compra for maior que o de venda, acrescido o tempo de produção, ele estará trabalhando com capital dos fornecedores; caso contrário, estará financiando seu clientes.

Como dinheiro é quando o mercado financeiro envolve-se no ciclo de negócio. Quando um empresário toma um empréstimo para produzir, está trabalhando com capital de terceiros que, provavelmente, ele não conhece porque houve uma instituição financeira intermediando a transação. Pode-se dizer que há uma antecipação de receita. Já uma pessoa, quando compra um bem a prazo, antecipa consumo, ou seja, dispõe-se a abrir mão de renda futura para ter, hoje, a satisfação que o bem lhe pode trazer. Ambas situações são benéficas para a economia. Por um lado, o produtor pode trabalhar com margens menores, mesmo pagando juros, visto que não  há capital a recuperar. Pelo lado do consumo, amplia-se temporariamente o poder de compra do consumidor, consequentemente, o mercado para o produtor. Dessa forma, o lado monetário e o real conversam o tempo todo, pelo menos, deveriam conversar.

É que existe uma terceira entidade, além do produtor e do consumidor, que é o Estado, que obtém receita pelos impostos cobrados e consome bens especificamente destinados ao aparelho público, a diferença é que o Estado sempre paga, enquanto os particulares nem sempre. Assim, para os intermediários financeiros, que sempre trabalham com o trabalho cristalizado por terceiros, emprestar para o Estado é mais confortável porque, não correndo riscos, várias atividades inerentes à concessão de crédito são mitigadas. Resumindo, mesmo que as migalhas que sobram sejam menores que as deixados por particulares, o Mercado, como os intermediários gostam de se intitular, fazem de tudo para que o Estado tenha endividamento crescente, pois o volume é enorme e a chance de perda é mínima.

É nesse ponto em que a conversa vira briga. É o setor privado precisando de recursos para se manter funcionando, o Estado precisando liberar recursos para investimento público e o mercado financeiro dando as cartas. Do Estado, o mercado quer que o custo de carregamento da dívida pública seja o mais alto possível. Do setor privado, o mercado, além de garantias, exige um prêmio capaz de cobrir o risco. A isso, chamaremos de grau de antagonismo entre os dois lados da economia. Ele pode ser medido dividindo-se a receita proveniente dos papéis da dívida pública pelo resultado antes dos impostos das instituições financeiras. Esse valor varia entre zero, toda a receita é proveniente do lado real da economia, até 1, que corresponde a tudo advir dos papéis de risco-zero, ou seja, com o mercado financeiro não contribuindo para “lubrificar” a economia, como exposto em alguns modelos de desenvolvimento. O que não se sabe é até onde propalada defesa da austeridade fiscal visa contribuir para a redução desse grau ou garantir que o risco dos papéis públicos continue sendo zero. Cabe ao governo construir políticas que visem a equilibrar esse grau, tal que não se comprometa o carregamento da dívida pública e, ao mesmo tempo, não faltem recursos para que o setor privado desfrute do que há de melhor no capitalismo, trabalhar com capital de terceiros.

Luiz Alberto Melchert de Carvalho e Silva é economista, estudou mestrado na PUC-SP, é pós-graduado em Economia Internacional pela Columbia University (NY) e doutor em História Econômica pela USP. No terceiro setor, sendo o mais antigo usuário vivo de cão-guia, foi o autor da primeira lei de livre acesso do Brasil (lei municipal de São Paulo 12492/1997), tem grande protagonismo na defesa dos direitos da pessoa com deficiência, sendo o presidente do Instituto Meus Olhos Têm Quatro Patas (MO4P). Nos esportes, foi, por mais de 20 anos, o único cavaleiro cego federado no mundo, o que o levou a representar o Brasil nos Emirados Árabes Unidos, a convite de seu presidente Khalifa bin Zayed al Nahyan, por 2 vezes.

Este texto não expressa necessariamente a opinião do Jornal GGN

Redação

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