A guerra, os retrocessos e a cegueira de Joe Biden, por Maria Luiza Falcão Silva

As autoridades americanas erraram feio. E ao que parece vão persistir no erro porque ameaçam a Rússia com mais embargos e sanções.

Agência Xinhua

A guerra, os retrocessos e a cegueira de Joe Biden

por Maria Luiza Falcão Silva

Quatro meses após o início da guerra na Ucrânia, os países alinhados contra a Rússia, enfrentam crescentes problemas econômicos e sociais.  As sanções e os embargos, o confisco das reservas internacionais, mostraram pouco impacto nos planos do presidente russo, Vladimir V. Putin, ou em sua popularidade política em casa. Em parte, como resultado dessas ações, os preços da energia dispararam nos Estados Unidos e na Europa, com a gasolina ficando mais cara no mundo inteiro e afetando de forma catastrófica, países emergentes e em desenvolvimento, na África, América Latina e Ásia. Como subproduto da guerra, à inflação de energia somou-se a de alimentos. Rússia e Ucrânia são dois grandes produtores de alimentos e de petróleo e gás, portanto, global players nos dois mercados. Escassez de energia e fome representam retrocesso civilizatório. Será que caminhamos para barbárie?

Os líderes europeus reunidos em Bruxelas, semana passada, estavam mais preocupados em conceder à Ucrânia o status de candidata à União Europeia (UE), alimentando a fúria da Rússia, do que em resolver problemas urgentes relacionados à guerra. A Rússia vem fechando, lentamente, a torneira do gás. A redução do gás para a Alemanha, nos últimos dias, forçou o país, o motor econômico da Europa, a intensificar seu protocolo de emergência energética e conclamar os alemães a economizar energia. O próximo passo é o racionamento. O inverno da Europa se aproxima.

A UE impôs sanções aos combustíveis fósseis exportados pela Rússia, incluindo uma ampla proibição das importações de petróleo que entrará em vigor no final do ano. Não conseguiu fazer o mesmo com o gás russo, do qual é muito dependente. Ainda não surgiram alternativas viáveis. Os preços do gás dispararam, custando caro aos compradores europeus e suavizando o efeito das restrições sobre a Rússia.

As falas do presidente Biden de que as penalidades estavam “esmagando a economia russa” e que “o rublo havia sido reduzido a escombros” não se confirmaram. As receitas de petróleo e gás russos bateram recordes com o aumento dos preços. Sua moeda, o rublo, depois de se desvalorizar em fevereiro, logo após as sanções, no final de junho de 2022, experimentava uma alta espetacular em relação ao dólar norte-americano. Simplesmente disparou. Foi negociado em seu nível mais forte, desde junho de 2015, sete anos atrás. O efeito foi o inverso do esperado por Biden. O rublo, após despencar em queda livre nas semanas após a invasão da Ucrânia e o bloqueio da Rússia das transações financeiras realizadas via o Swift – o principal sistema internacional de pagamentos, se recuperou. De US$ 0,007 por um rublo ( 143 rublos por US$1 dólar, em março de 2022), a taxa de câmbio entre as duas moedas passou para  US$ 0,0164 ( 61 rublos por US$1). Uma valorização extraordinária. O melhor desempenho entre todas as moedas do mundo em relação ao dólar.

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Uma combinação de três fatores levaram a esse resultado: i) controles de capital – incluindo os que forçaram os exportadores a receber em rublos, aumentando a demanda pela moeda russa; ii) exportações crescentes, resultado de preços maiores, compensando os embargos e, principalmente, de vendas de petróleo e gás para a Ásia (beneficiando a China e a Índia pela compra de grandes quantidades de petróleo e gás com enormes descontos), e iii) importações em queda devido à saída de muitas empresas multinacionais de território russo, como forma de punição.

O horizonte de inflação de dois dígitos e perspectivas de recessão são vislumbrados para a economia russa, mas também o são para o resto do mundo.

As autoridades americanas erraram feio. E ao que parece vão persistir no erro porque ameaçam a Rússia com mais embargos e sanções. A Europa acata as ordens dos Estados Unidos sem questionar, com poucas exceções como foi o caso da Turquia que ameaçou não seguir as sanções e bloquear a entrada da Suécia e Finlândia na Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte). Os dois países nórdicos anunciaram sua disposição de candidatura conjunta à aliança enfurecendo o dirigente russo.

Na Rússia, com os obstáculos ao comércio internacional, os estoques de suprimentos e peças sobressalentes, que mantêm os negócios funcionando, tendem a acabar. Ao mesmo tempo, a falta de tecnologia sofisticada e investimentos estrangeiros podem prejudicar sua capacidade produtiva no futuro. 

Banco Central da Rússia previu uma taxa de inflação entre 14 e 17 por cento este ano, e uma queda na produção total de algo em torno de 10 por cento. A taxa de juros que se encontra em trajetória de queda, já esteve em 20% para fortalecer o rublo, deve ficar entre 10,8% e 11,4%, em 2022,  com perspectivas de, ainda no segundo semestre desse ano, ficar em média entre 8,5% e 9,5% – movimento inverso do resto do mundo que projeta taxas crescentes de juros -, mirando o fortalecimento da produção nacional por meio de um processo de substituição de importações.

A decisão do Banco Central da Rússia de reduzir a taxa básica de juros visa aumentar a disponibilidade de recursos de crédito e limitar a recessão. A capacidade de resistência da economia russa foi, também, subestimada pelos “aliados”. Por enquanto, a população temerosa tem consumido menos e a poupança das famílias vem crescendo. Nos Estados Unidos a demanda reprimida e a economia aquecida alimentam a fúria inflacionária. A taxa básica de juros americana está aumentando, levando à desvalorização das moedas dos emergentes que começam a sentir o resultado da fuga de capitais na propagação da inflação. Nada simples administrar essa situação.

Na Ucrânia, território onde a guerra é travada, a situação é devastadora. Além dos sofrimentos e tragédias humanas ocasionadas pelo conflito, a economia do país vem sofrendo pela destruição, pelas mortes, pela emigração em massa. A impossibilidade de escoar suas exportações de grãos – trigo e milho – penaliza a economia do país e eleva os preços internacionais, impactando a inflação de alimentos em todo o mundo, com resultados catastróficos para as pessoas em estado de insegurança alimentar. A corda sempre arrebenta do lado dos mais fracos. A fome avança, sem clemência, atingindo centenas de milhões de pessoas.

“Poeira de carvão e metano abaixo, bombas acima” estampa, em 25 de junho,  Finbarr O’Reilly, no The New York Times, em referência à triste situação da Ucrânia. De acordo com O’Reilly, “espera-se que o consumo global de carvão atinja um recorde de mais de oito bilhões de toneladas métricas em 2022, e deve permanecer assim até pelo menos 2024, conforme dados da Agência Internacional de Energia. O preço do carvão atingiu uma alta histórica de mais de US$ 400 a tonelada, em março. Este mês, a Alemanha disse que reiniciaria as usinas a carvão para economizar o gás natural depois que a Rússia cortou as entregas de gás para a Europa”. O carvão mineral é o combustível fóssil mais poluente do mundo. Prejudica o meio ambiente desde a sua extração até a produção de derivados por meio da combustão. Mais um subproduto da guerra: o retrocesso nas medidas de combate ao aquecimento global. Já nem se fala em “retomada verde”. Uma tragédia!

Desde o primeiro momento a China mostrou-se contra as sanções e “alertou que o efeito delas corria o risco de se espalhar pelo resto do mundo, levando a guerras cambiais, comerciais e financeiras, além de poder comprometer a cadeia de suprimentos, a cadeia industrial, a globalização e até mesmo a ordem econômica estabelecida desde a Segunda Guerra Mundial” conforme expressou  Wang Lutong, diretor-geral do departamento da Europa do Ministério das Relações Exteriores da RPC, após a reunião de cúpula da China e a União Europeia, em abril desse ano. A China acertou!

A guerra entre EUA/Otan/ Ucrânia e a Rússia hoje é insana. Sem perspectiva de acordo diplomático no curto prazo, maltrata o mundo inteiro e, via os canais de transmissão da globalização e financeirização das economias, se alastra e nos ameaça com inflação, desemprego, fome, eventos climáticos extremos, poluição e alto grau de contágio, como o que ocorreu com o vírus da Covid-19. Já é quase uma pandemia, agora pelo vírus Joe Biden-22. Resta saber como sobreviveremos.  

Maria Luiza Falcão Silva é economista (UFBa), MSc pela Universidade de Wisconsin – Madison; PhD pela Universidade de Heriot-Watt, Escócia. É pesquisadora nas áreas de economia internacional, economia monetária e financeira e desenvolvimento. É membro da ABED. Integra o Grupo Brasil-China de Economia das Mudanças do Clima (GBCMC) do Neasia/UnB. É autora de Modern Exchange-Rate Regimes, Stabilisation Programmes and Co-ordination of Macroeconomic Policies: Recent experiences of selected developing Latin American economies, Ashgate, England/USA. 

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  1. A maré de sorte, aliada à malandragem e à violência gratuita contra nações fracas bateu de frente com poderes reais. Pior é que estão nos arrastando – todo o Ocidente – a uma nova Idade Média. Com fundamentalismos religiosos, inclusive.

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